PELÉ E O FUTEBOL BRASILEIRO MERECEM RESPEITO
por Paulo-Roberto Andel
Vivemos tempos estranhos, onde volta e meia há quem queira reescrever a História, com as mais variadas intenções.
Conversando com meu amigo Marcelo Lessa, discutimos sobre as seleções mundiais de futebol de todos os tempos, divulgadas por publicações realizadas. E, fato mais recente, sobre as tentativas midiáticas de fazer com que craques como Cristiano Ronaldo e Lionel Messi sejam “superiores” a Pelé. Entre aspas mesmo, pois simplesmente não faz sentido.
Numa bela sacada de meu amigo, que a imprensa europeia, sempre engasgada com o fato do trono do futebol pertencer ao Brasil – não por hoje, mas pelo conjunto da obra -, tente promover a diminuição do tamanho dos nossos feitos, é explicável ainda que injustificável. Agora, duro de entender é quando os brasileiros caem em tal esparrela.
Bem antes de colocar as cinco estrelas no peito, a Seleção Brasileira já tinha posições respeitáveis no mundo do futebol, vide as Copas de 1938 e 1950. A derrota para o Uruguai, transformada exageradamente em desgraça nacional, levou muitos brasileiros ao suicídio – um fato silenciado pelos tempos -, quando na verdade tínhamos um timaço com jogadores espetaculares. E quando chegou o fim dos anos 1950, aí o Brasil não deixou barato: virou o jogo para cima de Uruguai e Itália, ambos bicampeões mundiais, conquistou três Copas em quatro disputadas e arrebatou para sempre a Taça Jules Rimet – ao menos simbolicamente, já que a mesma acabou surrupiada da sede da CBF.
Entre os anos 1950 e 1970, há uma era de absoluto predomínio do futebol brasileiro. Basta dizer que depois do tri no México, nossos grandes desastres foram um quarto lugar em 1974 e um terceiro em 1978, este sob circunstâncias já muito discutidas da partida Argentina 6 x 0 Peru. Em duas décadas e meia, quando o Brasil não foi supremo, esteve entre os melhores do mundo.
Tivemos uma safra de jogadores que nenhum país conseguiu, mesmo quando venceu uma Copa do Mundo. São tantos e tantos nomes que fica difícil listar, mas uma coisa é certa: num Olimpo de craques fantásticos, brilhou o nome de Pelé. Num tempo de equipes brasileiras com cinco, seis, sete craques em campo, ele conseguiu o título de Rei do Futebol e, já aposentado, de Atleta do Século XX. Atleta, concorrendo com monstros de todas as modalidades esportivas.
No mundo atual, o marketing é uma ferramenta fundamental para o aumento das arrecadações e, no futebol, isso não seria diferente. Assim, CR7 e Messi precisam ser exaltados à enésima potência, imortalizados, falados o tempo todo. Não existe dúvidas de que estão entre os maiores jogadores do século XXI. O problema acontece quando, para valorizá-los ao máximo, é preciso diminuir a imagem não somente de Pelé, mas a de Garrincha, Didi, Nilton Santos e de todo o futebol brasileiro.
Cada vez mais, somos reféns do capitalismo global, que fortalece algumas equipes européias e tira do Brasil seus melhores jogadores, às vezes com 19 ou 18 anos de idade. Não temos tempo para ter ídolos – as promessas se vão até mesmo sem ter jogado no time principal. Isso já nos coloca em franca desvantagem. Agora, querer apagar a História e reescrever os fatos é uma canalhice que os brasileiros não devem ou, ao menos, não deveriam referendar.
Para louvar Messi, Cristiano, Lewandowski ou qualquer outra fera do futebol mundial, não é preciso diminuir a figura de Pelé. Seus números e feitos estão disponíveis com facilidade no Google e no YouTube. Quem tiver preguiça de ler, basta ver. Não são fake news, está tudo lá. Números assombrosos, títulos incontáveis, partidas monstruosas. Para quem tem dúvidas sobre a genialidade de Pelé, basta consultar a lista dos maiores artilheiros da história do Santos: praticamente todos jogaram ao lado do Rei e, muitas vezes, receberam passes açucarados do camisa 10 para marcarem seus gols. Não é exagero dizer que, além dos mil e duzentos e tantos gols, Pelé deu passes para outros mil.
Os brasileiros precisam parar de fazer o jogo internacional de demolição da importância do nosso futebol no mundo.
Não está em jogo falar sobre a vida pessoal dos craques. Se estivesse, teríamos problemas no debate. Pelé, envolvido em situação polêmica com o rompimento com sua filha falecida, é pior do que CR7, que respondeu a processo por acusação de estupro? Ou de Messi, condenado por sonegação fiscal? Precisamos falar de Neymar? Essa vai ser a régua de avaliação? Não.
O futebol brasileiro vive a maior crise de identidade de sua história. Outrora famoso pela qualidade e talento, tem ficado cada vez mais medíocre pela opção da parte física acima de tudo. Os 7 a 1 de 2014 ainda doem no queixo, mas é inaceitável que os brasileiros diminuam o valor de jogadores que, décadas atrás levaram ao mundo inteiro o nosso nome como símbolo de vitória.
Pelé, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Vavá, Rivellino, Gerson, Paulo Cezar Lima, Carlos Alberto Torres, Gilmar, Félix e tantos outros nomes escreveram as páginas de ouro do futebol no mundo. Anos depois, foram sucedidos por Bebeto, Romário, Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho e outros – vivemos um outro ciclo entre 1994 e 2002, disputando três finais de Copas do Mundo e vencendo duas. O que dizer de tantos craques que tiveram chances reduzidas ou até mesmo nenhuma na Seleção Brasileira? A lista é imensa. De cara, Ademir da Guia, Dicá, Aílton Lira, Afonsinho, Carpeggiani, Cláudio Adão, Reinaldo, Zé Sérgio, Deley, Andrade, Geovani, Mauricinho, Robertinho, Enéas, Neto, Edmundo, Marcelinho Carioca. Mais no passado, Evaristo de Macedo, Dida, Canhoteiro, Zózimo, Marco Antônio, Edu, Coutinho, Pepe. No século XXI, Felipe, Roger, Alex. Se pararmos para fazer uma lista séria de 1958 para cá, passaremos de cem nomes com facilidade. Até aqui, não falei da Copa de 1982 e nem precisava: apesar de nosso “péssimo” quinto lugar, ali estavam alguns dos maiores jogadores da era moderna, com um time falado até hoje.
Pelé fez oitenta anos. É um ser humano, não Deus. Todos os que o viram jogar ficaram embasbacados. É assustador pensar que, com todo o seu talento inigualável, ele se divertia em peladas jogando como goleiro – e ainda defendendo pênaltis em jogos profissionais! Há sessenta anos ele é uma personalidade nas vidas brasileiras e mundial. Não se sabe de um único episódio público onde ele possa ter sido grosseiro ou deselegante – pelo contrário: nunca reagiu aos milhões de impropérios que sempre ouviu. Nunca se viu aspereza em suas declarações. Nunca faltou com o respeito aos brasileiros. Não preciso ter alinhamento político algum com Pelé para respeitá-lo como o maior jogador de futebol de todos os tempos, o Atleta do Século XX, o paradigma do futebol que todos os jogadores a seguir buscaram, nem monstros supremos como o já saudoso Diego Maradona, feras como Michel Platini, Zinedine Zidane, Johann Cruyff, Rummenigge, Matthaus e mais uma velha lista telefônica inteira.
Para finalizar, gostaria de contar uma pequena história sobre Pelé fora do campo, porque não adianta brigar com os fatos que ele construiu dentro das quatro linhas, ao menos para quem pretenda ser levado a sério. Meu amigo Marcelo Lessa, que inspirou esse texto, por muitos anos foi vizinho de Altair, prócer multicampeão do Fluminense e campeão mundial em 1962 no Chile. Altair teve uma linda filha que acabou falecendo jovem, vítima de leucemia. Ela teve um tratamento prolongado e caro, com medicações importadas regulamente, caríssimas, que o lateral não tinha como arcar financeiramente. Nunca se disse uma linha sobre o assunto, mas Altair nunca escondeu de ninguém que o tratamento de sua filha, que permitiu sua sobrevida, foi custeado integralmente e importado por Pelé. Apesar dos apedrejamentos e cancelamentos nas redes sociais, o Rei marcou golaços fora do campo também.
Ainda há tempo. Vamos respeitar os jogadores que ergueram o nome do nosso país frente ao mundo. Vamos respeitar Pelé. Vamos respeitar Garrincha. Vamos respeitar Didi e Nilton Santos. Carlos Alberto Torres. Vamos respeitar Félix. Não precisamos desprezá-los para admirar os craques das novas gerações, nem rasgar a História para justificar investimentos de marketing. Vamos respeitar os fatos, os dados, os campeões, o futebol brasileiro que já nos orgulhou muito.
@pauloandel
RECEITA PARA SE FAZER UM HERÓI EM VILA BELMIRO
por Marcelo Mendez
“Torna-se um homem
Feito de nada como nós…”
Em São Paulo, durante um tempo, a banda de rock IRA perpetuou clássicos que cantaram a realidade de toda uma geração sedenta por muitas coisas ali naquele princípio de anos 80, um tempo em que o Brasil começava a se abrir para viver todas as coisas que o mundo estava propondo naquela época.
“Receita para se fazer um herói”, de onde vem os versos dessa música citada, é um desses clássicos. Nela estão propostas algumas das formas de onde pode-se surgir um herói improvável e de onde vem nossos heróis de hoje. O Santos é bem assim.
Não se sabe de onde começou a fazer dos seus meninos, homens candidatos a heróis de um título que nem no maior dos delírios lisérgicos, dos mais apaixonados torcedores, poderia se imaginar que o Santos poderia disputar. Mas vai disputar. O Alvinegro da Vila Belmiro chega para decisão da Libertadores da América em pé de igualdade com o Palmeiras e tem muita coisa para comemorar nesse resultado.
O Santos viveu de tudo nesse último ano. Teve um Presidente afastado, punição da Fifa, falência quase decretada, técnico demitido, técnico doente, surto de Covid e o diabo a quatro. Em detrimento a isso tudo, foi até as suas origens e buscou na base seus Meninos em mais uma reinvenção de elenco e eis que surgem Kaio Jorge, Lucas Braga, Jobson, Pituca, Jon, João Paulo e tudo mais. De maneira quase que comovente, esses meninos assumiram a responsabilidade e carregaram na boa o peso de representar a história de um dos maiores times do futebol mundial.
Resultado:
A molecada do Santos passou o trator no Boca Juniors. Boca, esse que não se sabe por que ainda carrega a fama de “papão”, mesmo tendo vencido seu último título no continente em 2007, tomando sapecos sequentes nesses últimos 14 anos, como essa jantada de ontem na Vila. Foi um 3×0 porque a molecada quis fazer apenas esses três. Senão poderia ser cinco, seis ou quantos quisessem. Uma vitória parruda de uma molecada grande, que são os mais belos e improváveis heróis que se possa ter.
São muitos os símbolos desse feito do Santos. Mas ver Lucas Veríssimo de testa rachada, colorindo de sangue a camisa do Santos tem a cara da Libertadores da América. Taí a receita, caros amigos.
Na Vila Belmiro, herói se faz assim.
CRITÉRIOS DE ARBITRAGEM
por André Luiz Pereira Nunes
Houve um tempo em que o quadro de árbitros do Campeonato Carioca era formado por elementos indicados pelos clubes então filiados à Liga Metropolitana de Desportos Atléticos. Ainda que os times tivessem a primazia de escolha, a escalação de juízes, embora em comum acordo, se tornava um verdadeiro nó cego. Não raro, eram necessários três dias para a escolha de um juiz. Quando as agremiações não chegavam a um consenso, o encontro ficava sem árbitro. Fazia-se então a chamada “pescaria” pelas arquibancadas. As agremiações apresentavam vários nomes de cavalheiros que iam assistir ao cotejo e, quando não chegavam a um acordo, ocorria então um sorteio.
Um saudoso cronista acabou sendo vítima desse rudimentar critério de escalação. Certa feita, o ilustre Zé de São Januário estava no campo do Vila Isabel, onde se localizava o antigo Jardim Zoológico, para assistir a uma partida entre a equipe local e o Sport Club Mangueira. O juiz não havia comparecido. O presidente do Vila Isabel, Alberto Silvares, pediu então ao jornalista para que dirigisse a disputa. Ele gentilmente aceitou. Ainda que o jogo tivesse terminado em empate, a diretoria do time mandante, nada satisfeita, resolveu entregar o juiz às feras. Não às do zoológico, mas às que se encontravam na entrada. As manifestações de simpatia foram de tal natureza, que muitos adeptos do Vila Isabel, não tendo flores para jogar, atiraram pedras e guarda-chuvas no pobre cronista e dublê de árbitro por um dia. Dos braços da multidão, o infeliz foi parar na ambulância.
Anos depois, dada a grave situação da arbitragem, os clubes passaram a ser responsáveis pela atuação das partidas. Extinguindo-se o quadro, os times tiveram que indicar nomes. Para exemplificar melhor, em um jogo entre Flamengo e Botafogo, o Vasco poderia ser obrigado a fornecer juízes. Esses nomes tanto poderiam ser conhecidos do público, como serem ilustres desconhecidos. Essa fórmula logicamente fracassou. Na época do comum acordo, todos concordavam antes do jogo, mas no final do encontro o que prevalecia era o desacordo com o árbitro.
Atualmente dispomos da tecnologia e de profissionais preparados e dedicados à função de arbitrar jogos de futebol. Porém, nada disso ao longo do tempo parece ter surtido algum efeito prático. Em 9 de janeiro, a partida entre Sport e Palmeiras, a qual terminou com a vitória dos paulistas por 1 a 0, deu o que falar mesmo após o apito final. Isso porque, aos 49 minutos da etapa final, o juiz Dyorgines José Padovani de Andrade assinalou um penal a favor dos mandantes. Contudo, após a intervenção do VAR e a ida ao monitor, a penalidade acabou anulada.
Após a partida, Augusto Caldas, diretor de futebol do clube pernambucano, insinuou que Botafogo e Vasco, dupla carioca que briga contra o rebaixamento, está sendo ajudada.
Além da insinuação, o dirigente detonou a comissão de arbitragem e o árbitro de vídeo.
– Fico imaginando onde a comissão de arbitragem e o VAR vão parar. É escandaloso. Essa falta de respeito com o Sport e com os times nordestinos nos deixa imaginar a proteção que se tem com esses clubes do Rio. No momento em que Botafogo e Vasco estão na zona, tudo começou a acontecer de uma forma no mínimo estranha, insinuou.
Thiago Neves, um dos atletas mais experientes do Sport, utilizou as redes sociais para demonstrar sua insatisfação. O meia escreveu: ‘Seguimos sendo roubados’. Além do dirigente e do meia, o técnico Jair Ventura também criticou a decisão da arbitragem. Em entrevista coletiva, afirmou que não era a primeira vez que erravam contra o Sport, mas se conteve por conta, como ele mesmo afirmou temer, da possibilidade de ser denunciado ao STJD.
– Não é a primeira vez. Daqui a pouco, o campeonato vai passando, faltam nove jogos, agora, depois que acaba, ninguém vai lembrar dos pontos que foram tirados da gente. É triste, porque a gente trabalha para caramba. Vou seguir, ainda, sem falar de arbitragem. Posso pegar um gancho. Eu estou pendurado, não posso nem falar com o juiz. Estou com dois cartões e eu não posso largar minha equipe”, lamentou.
A NOITE DOS DESESPERADOS EM VERDE E BRANCO
por Marcelo Mendez
Horace McCoy, há muito tempo atrás, mais precisamente em 1935, escreveu o livro “A Noite Dos Desesperados”.
O livro conta a história de um grupo de pessoas que durante a grande depressão americana, pós quebra da bolsa, que tem uma única chance de aliviar a miséria a qual se encontram, num campeonato de dança, onde o vencedor tem que resistir, dançar até as pernas não aguentarem mais pra levar uma grana de prêmio. A partir daí, todo o drama humano começa com as mazelas das pessoas que vivem por ter que aguentar, que tirar do fundo da alma a força para lutar por sobrevivência.
Ontem, evidentemente, guardada as devidas proporções, vimos algo parecido na Arena do Palmeiras durante a semifinal da Libertadores da América, entre Palmeiras e River Plate. O placar final de 2×0 construído pelo time argentino na primeira etapa reserva um recente drama alviverde que há tempos não era vivido pelos seus.
Um time lento, frouxo na marcação e nas atitudes, pesado nas pernas e na mente, não conseguia reagir, não conseguia superar a pequenez sazonal que o acometeu e que fez com que a equipe verde ficasse atrás, recuada, com medo, vendo os argentinos jogarem. O resultado foi catastrófico e se não fosse pelo VAR, que corretamente agiu para corrigir marcações feitas, teríamos ontem uma das maiores derrotas palmeirenses de sua história. Ufa!
Foi um sufoco, mas o apito final com os 2×0 deu a classificação ao Palmeiras para a disputa da decisão da Libertadores de América. Vale a vaga. Vale muito. Todavia, assuntos relativos ao que aconteceu ontem precisam ser tratados. Futebol é um jogo demasiado humano, onde a execução de fatores táticos depende da boa cabeça e da boa preparação desses humanos para tal prática. Não foi isso que constatamos ontem.
O Palmeiras não estava la em seu estádio. As cabeças alviverdes vagaram para um lugar onde o que habita é medo, a descrença, a inoperância e, dessa forma, o time que perdeu para o River não era aquele time vivaz e alegre que vinha desempenhando muito bem as orientações do ótimo Abel Ferreira. Isso precisa mudar.
Seja lá quem vier da decisão de hoje, Santos ou Boca, o Palmeiras não pode mais ir a campo da maneira que foi ontem. Que fique a lição com esse vareio de bola que os argentinos deram nos alviverdes.
Que a noite da desesperança não se perpetue no Maracanã!
FOGO!
por Paulo Roberto Melo
Em 1979, com 13 anos, eu enfrentava alguns desafios. Pelo menos um deles de ordem pessoal: lutava para me aceitar como pessoa. Fisicamente as coisas não iam muito bem. A balança se tornara minha inimiga número 1, teimando em mostrar, através da subida impiedosa dos seus ponteiros, que eu não era mais aquele menino “fofinho” ou o garoto “forte” que alguns familiares e conhecidos carinhosamente ainda me chamavam. A dura realidade se evidenciava sobretudo na minha barriga e nas minhas bochechas. Sim, eu era…gordo!
Era assim que me chamavam no colégio. Depois de estudar minha infância toda em colégios públicos, fui matriculado em uma escola particular, Essa mudança foi particularmente dura comigo. Vim de um colégio pequeno, em que todos me conheciam pelo nome, para um onde eu não era ninguém, ou pior do que isso. Em dois anos, na nova escola, eu só escutei o meu nome ser pronunciado no momento da chamada. Fora isso, eu era o “gordão” ou o “gordinho”, dependendo da afinidade de quem se referia a mim. Mas, no geral, eu era mesmo o “gordo”.
Há algo interessante sobre esses apelidos jocosos. Os que se dizem entendidos no assunto costumam, falar que não se deve ligar para o apelido que quando a pessoa se importa, aí sim o apelido pega. Ok, mas isso é muito cruel. Os catedráticos em apelido certamente não sofreram esse tipo de perseguição, possivelmente estavam do outro lado, se não colocando apelidos, pelo menos incentivando o seu uso, ou não dariam uma recomendação tão simplista. Afinal, em qual página desse manual sobre apelidos, está escrito a forma de não ligar para um chamamento que ignora o seu nome e exalta uma característica no seu corpo, da qual você não gosta – especialmente quando se tem apenas 13 anos?
Agora, como afirmam os mais sábios, não há nada que esteja tão ruim que não possa piorar. Pois bem, em paralelo com meu peso, eu ainda sofria de uma miopia galopante, que me obrigava a usar óculos com lentes muito grossas, que, precisavam, para serem sustentadas, de uma armação igualmente grossa e pesada. Não, não era fácil ter 13 anos em 1979, tendo um apetite voraz, sendo míope e estudando num colégio de burgueses onde ninguém sequer sabia o meu nome.
Outro desafio, este de ordem familiar, era lutar para ficar acordado depois das 22h, a fim de poder ver a programação noturna da TV. Com poucas opções de canais, a TV Globo, com suas novelas (Saramandaia, Nina, etc) séries americanas (Kojak, As Panteras, etc) era a emissora preferida para uma programação, digamos, mais adulta. Mas é claro, isso não me era permitido. Definitivamente, ser o temporão, caçula de dois irmãos, com pais não tão jovens, era um desafio difícil de ser vencido.
No futebol, como torcedor, eu também tinha meus desafios. O principal deles, era ver o Flamengo perder! Sim, desde que o Rondinelli, na final de 1978, subiu para cabecear e dar o título de campeão carioca ao Flamengo, o clube da Gávea ganhava de todos. As péssimas administrações de Vasco, Fluminense e Botafogo haviam enfraquecido os times, enquanto o time rubro-negro se fortalecia para ficar marcado na história com sua melhor geração. Assim, em 1979 ( como seria pelos próximos três anos) o time a ser batido era o Flamengo.
Todas as conversas no colégio, principalmente na segunda-feira, giravam em torno desse assunto. Fiz amizade com alguns pobres coitados, tão rejeitados quanto eu e, juntos, representávamos os quatro grandes clubes do Rio de Janeiro. O Marcelo tinha orelhas de abano e era Flamengo, o Mauro, era incrivelmente feio e torcia pelo Botafogo, o Ricardo, ruivo e sardento era Fluminense e eu… – gordo e quatro olho… vascaíno, claro. As nossas conversas invariavelmente giravam em torno de meninas que nunca conquistaríamos e do bom e velho futebol, abrigo confortável dos mais desafortunados.
Quando falei acima que o Flamengo ganhava de todos, eu não usei de sentido figurado para me expressar. Desde outubro de 1978, o Flamengo não perdia, somando 52 partidas de invencibilidade! Assim, ganhar do Flamengo, nessa época, podia ser comparado a conquistar um título.
Na primeira semana de junho de 1979, em plena disputa da Taça Guanabara, o assunto era o clássico entre Flamengo e Botafogo, que se realizaria no domingo. O jogo tinha um ingrediente a mais: de setembro de 1977 a julho de 1978, o Botafogo também teve uma série de 52 partidas invictas, sendo derrotado pelo Grêmio.
Dessa forma, o jogo do dia 3 de junho de 1979 era uma decisão. Se o Flamengo ganhasse ou empatasse, passava o Botafogo em número de partidas invictas. Por isso, a vitória do Glorioso era importantíssima, para quebrar a invencibilidade rubro-negra e dar a todos nós assunto para algumas semanas.
Mas a semana havia começado mal para o Botafogo. O goleiro titular, Zé Carlos, havia sofrido um acidente e quem vinha jogando era o reserva, Ubirajara. Acontece que o Ubirajara se machucou e quem iria para o jogo era o terceiro goleiro, um certo Borrachinha. Certamente, essa notícia deu à torcida do Flamengo a certeza de que um terceiro goleiro não conseguiria parar o poderoso esquadrão rubro negro, formado por Tita, Claudio Adão, Júlio César, Zico e cia.
No domingo, mais de 100 mil pessoas lotavam o maior do mundo para ver o clássico da invencibilidade. Como todo jogo cercado de expectativa, esse começou tenso e estudado. Mas logo aos 9 minutos, o jogador do Botafogo, Renato Sá, aproveitou uma bola rebatida da defesa e tocou no cantinho do goleiro Raul. Botafogo 1×0! Refeito do susto de um gol sofrido no início da partida, o Flamengo se lançou todo ao ataque.
Pelo velho Spica, o radinho de pilha do meu pai, eu escutava Jorge Curi e Waldir Amaral narrarem o bombardeio à meta botafoguense. O gol de empate parecia uma questão de tempo – mas aquela tarde estava reservada para consagrar outro atleta, não o rei Zico nem algum dos seus companheiros. Com o nome de um improvável filho de super-herói, o goleiro Borrachinha pegou tudo nesse jogo e, garantiu a vitória do time de General Severiano, interrompendo a sequência de partidas invictas do Flamengo.
Um detalhe curioso desse jogo, é que o Renato Sá, autor do gol da vitória, também ajudara a quebrar a longa invencibilidade do Botafogo, dois anos antes, jogando pelo Grêmio, quando marcou dois gols.
Como complemento do grande domingo de derrota do rival, consegui junto ao conselho familiar a graça de poder ficar acordado até mais tarde, para ver o videoteipe do jogo, que começaria perto da meia – noite, na TV Bandeirantes.
Com todos dormindo, sozinho na sala e no mundo, longe dos meus problemas, eu experimentei naquela hora uma sensação diferente. Foi assim, feliz, relaxado, me sentindo adulto, que com todos dormindo, eu escutei a voz do Paulo Stein, começar a narrar o jogo, já pensando nas gozações que faria pela manhã no colégio, com meu único colega rubro-negro.
Mal o jogo havia começado, ouvi, um grito forte, vindo da rua: “Fogo!” Sorri, compreendendo a alegria do torcedor alvinegro. Novo grito: “Fogo!” Dessa vez, eu achei um pouco de exagero, principalmente pelo adiantado da hora. O terceiro grito de, “Fogo!”, me fez levantar do sofá, desconfiado e ir até a janela para conferir aquela súbita alegria botafoguense.
Quando cheguei à janela, ao mesmo tempo vi uma grande labareda tremeluzindo à minha frente e senti um forte calor nas paredes do apartamento. Algumas pessoas, do outro lado da calçada, sinalizavam, nervosamente, apontando na direção do nosso edifício.
Corri para chamar meus pais e meus irmãos, e saímos todos do prédio. O incêndio era em uma loja de tecidos, que ficava ao lado da portaria do prédio, e as chamas rugiam, subindo de forma assustadora. Alguns minutos depois, os bombeiros chegaram, e o fogo enfim foi controlado.
Quando voltamos para casa, meu pai botou suas mãos em meu rosto e me disse:
– Que bom que você estava acordado!
Fui dormir radiante de felicidade naquela noite, com a certeza de que os desafios se apresentam em nossas vidas, para testar o quanto somos fortes e o quanto estamos preparados para enfrentá-los. E tinha no meu peito de adolescente a forte convicção, de que, em algum lugar do Rio de Janeiro, o Borrachinha experimentava o mesmo sentimento.