MEMÓRIAS DO FLA X FLU
por Paulo-Roberto Andel
Depois do expediente, no começo da tarde de sábado, fomos eu, Jocemar e Pimenta num boteco da Praça Tiradentes, famoso por seu bom chope e seus acepipes nem tão bons assim. Três tulipas e, pela margem de segurança, uma porção de queijo prato em cubinhos. Dois tricolores e um flamenguista.
Passamos a manhã falando de música, mas logo após o primeiro brinde o assunto não poderia ser outro: o primeiro Fla x Flu com público em um ano e meio. Logo de cara, tivemos saudades dos velhos tempos em que, no dia do clássico maior, camisas tricolores e rubro-negras se espalhavam pela cidade. É, tudo mudou. Agora a turma se acotovela em frente às tevês dos botequins. Quem governa o futebol chama isso de modernidade: quem não tem dinheiro não vai ao estádio, quem tem não está muito a fim.
Memórias, memórias. Aquele Fla x Flu em que o Cristóvão deixou o Manguito sentado na grama e fez um golaço, que fez o Jocemar enlouquecer na arquibancada abarrotada – no mesmo jogo o Paulo Goulart defendeu um pênalti cobrado por Zico. E outro, quando o Pimenta levou o pai que nunca ia ao Maracanã e, mal sentaram nas cadeiras, o Flu já tinha feito 3 a 0. Ou ainda quando voltavam de uma vitória tricolor e, no carro, o Barata debochava que ele só de todo mundo. Acabamos falando de muito mais vitórias tricolores do que rubro-negras, mas não era uma provocação e sim apenas as lembranças, só que quando todos aqueles assuntos surgiram, minha cabeça foi e voltou num espaço de quarenta anos. Ah, sim, e o empate épico de 1985 com o golaço de Leandro que eu, por azar e sorte, vi atrás do gol, no meio da galera adversária – fui com um amigo flamenguista ao jogo, vimos o primeiro tempo na torcida tricolor e, no segundo, trocamos. Detalhe: já estávamos na boca do túnel da arquibancada, com o Ricardinho já indo embora e eu disse “Espera!”. Deu no que deu. O Flu acabou campeão mas ninguém esquece daquele empate.
Falar de Assis é inevitável, Renato Gaúcho idem, Zico e Júnior, Félix e Raul, Edinho, Pintinho, Adílio, Geraldo, Paulo Cezar Caju e até Pelé, aniversariante do dia e que vestiu as camisas dos dois clubes em amistosos. O Fla x Flu deságua num mar do Rio de Janeiro e, por isso mesmo, estamos loucos para ler o livro do Simas sobre o Maracanã, que acaba de sair. Tempos de glória. Sobrou até para o Botafogo, pois em certo momento rediscutimos a final do Carioca de 1971 que surgiu no caminho – é um jogo interminável.
E quem disse que o Fla x Flu é escrito apenas por craques e jogadores duradouros? Da parte que me toca, é só lembrar de Valtair, Zezé Gomes, Luiz Marcelo, Alexandre, Agnaldo, Ademilson, Fabio Bala, Rodriguinho e tantos outros.
[Depois de uma hora de bate-papo, finalmente entra um flamenguista a caráter no bar, com a devida camisa branca surradíssima, talvez de uns dez ou quinze anos atrás. Nenhum tricolor uniformizado.
Foi minha primeira mesa de botequim em um ano e meio. Talvez o primeiro sábado de tranquilidade no ano, do jeito que tinha de ser, com chope e boa conversa sobre futebol. Me despedi dos amigos, eu fiquei pelo Centro, o Jocemar ia para Niterói e depois Honório Gurgel, o Pimenta para Guadalupe: era o Fla x Flu se espalhando com braços abertos sobre a Guanabara.
Veio a noite e, mantendo a tradição do clássico, onde o melhor no papel nem sempre vence, o Fluminense passou o trator no Flamengo e ganhou com autoridade por 3 a 1, num raro jogo com todos os gols bonitos. Uma noite de contrastes entre a juventude de John Kennedy, autor de dois belos gols, e a talvez despedida do veterano Abel Hernandez, que deixou sua marca em um golaço. O Fla x Flu foi tão elétrico que até o vaiadíssimo lateral Renê fez um gol bonito também. Em tempos de pandemia a casa não podia ficar cheia, mas dez mil maníacos puderam ver de perto o jogo dos jogos.
O Pimenta, rubro-negro de nobreza exemplar, me mandou uma mensagem de parabéns pela vitória. O Jocemar, mergulhado no caldo verde da vitória, não falou nada porque a gente brinca que ganhar Fla x Flu é normal – é o clássico dos clássicos. Não dá para saber o que será daqui por diante – o Fluminense sofre com nove anos sem grandes títulos -, nem as trajetórias dos jogadores, mas uma coisa é certa: John Kennedy e Abel Hernandez vão ficar na memória dos pequenos tricolores para sempre. Eu entendo muito bem: Cristóvão, Valtair e Zezé Gomes continuam comigo. Paulo Goulart também.
No fim das contas, todos vimos mais um capítulo do jogo que nunca termina. É o Fla x Flu, é o Maracanã, são dois gigantes que se digladiam no maior ringue de grama do mundo pela eternidade afora.
@pauloandel
PAULINHO PIRACICABA, O ARTILHEIRO METEÓRICO
por Luis Filipe Chateaubriand
Paulo Luiz Massariol começou no XV de Novembro, da sua cidade natal, Piracicaba.
O jovem centroavante chamou a atenção do Vasco da Gama e, assim, transferiu-se para São Januário – inicialmente, para jogar nos juvenis – em 1976.
Em 1977, devido ao tanto de gols que fez nas categorias de base, já aportava nos profissionais do cruz maltino, ainda reserva da dupla de ataque Roberto Dinamite / Ramon.
No entanto, em 1978, Ramon deixava o Clube da Colina, e a nova dupla de ataque titular era Roberto Dinamite / Paulinho.
Foi “chuva de gols” para cima dos adversários.
O novato Paulinho Piracicaba terminaria o ano de 1978 como nada menos que o artilheiro do Campeonato Brasileiro.
E a toada de fazer gols, em parceria com o Dinamite, seguiu em 1979 e em 1980.
Em 1981, Paulinho é transferido ao Palmeiras e, surpresa, os gols escasseiam.
De 1982 em diante, pouco se ouviu falar de Paulinho Piracicaba, muito menos de gols por ele assinalados.
Foi artilheiro por três temporadas, depois, sumiu.
Futebol tem dessas coisas.
Luis Filipe Chateaubriand é Museu da Pelada!
A APOSENTADORIA SEM ADEUS DE UM GÊNIO DA BOLA
Por Pedro Tomaz de Oliveira Neto
Todo craque fora-de-série deveria ter um jogo de despedida para que a torcida pudesse prestar reverências e agradecimentos pelas jogadas espetaculares, dribles sensacionais, golaços inesquecíveis e pelas glórias alcançadas ao longo de sua carreira. Merecidamente, o Rei Pelé teve não só uma, mas várias despedidas. Garrincha — ainda que numa homenagem tardia —, Zico, Roberto Dinamite, Romário e Ronaldo também ganharam um jogoespecial para congraçamento entre ídolos e fãs.
Surpreendentemente, o craque que herdou a camisa 10 da Seleção Brasileira após o adeus de Pelé não teve um jogo de despedida. Roberto Rivellino, dono da temida Patada Atômica, de dribles desconcertantes como o elástico, de lançamentos longos e precisos, que marcou época defendendo o Corinthians, o Fluminense e, claro, a Pátria de Chuteiras, se aposentou da bola quase que na surdina, sem um jogo festivo para receber os salamaleques e os tributos da torcida brasileira pelos relevantes serviços prestados à causa do futebol. Sem chance de um adeus, até a lembrança do seu último jogo foge a nossa memória.
Com a camisa do Corinthians, Rivellino fez 474 jogos, marcando 141 gols. Não conquistou títulos, porém, com seu futebol exuberante, tornou-se um ídolo da fiel torcida, mantendo acesa, enquanto esteve no Parque São Jorge, a chama da esperança de um grito de campeão que não vinha desde 1954. Mesmo com toda a idolatria, seu último jogo pelo Timão, ao invés de uma festa, foi um dos mais tristes de sua carreira, perdendo a decisão do Paulistão de 1974 para o maior rival e ainda sendo culpado pela derrota, injustiça que o estimulou a aceitar a proposta de transferência para o Fluminense.
No Rio de Janeiro, Rivellino comandou a memorável Máquina Tricolor, sendo bicampeão carioca. Foram 158 jogos, exibindo toda a sua genialidade e técnica refinada, traduzidas em 53 gols e em jogadas de encher os olhos do torcedor. Ainda assim, não teve um jogo para dizer adeus à torcida tricolor e vice-versa. Sua última partida pelo Fluminense ninguém lembra. Aconteceu em fevereiro de 1978, na distante Itumbiara, interior do estado de Goiás, num amistoso contra o time local, informação essa obtida após minuciosa pesquisa de internet. Depois, o craque se apresentou à Seleção Brasileira para a disputa da Copa do Mundo na Argentina e não voltou mais. Foi desfilar seu futebol pelo mundo árabe.
Pela Seleção Brasileira, Riva fez 122 jogos, anotando 43 gols. Desses, três foram “patadas” indefensáveis e muito importantes para a épica conquista do tricampeonato mundial no México, em 1970: contra a Tchecoslováquia, ao empatar o jogo e aliviar a tensão da estreia, abrindo a porteira para a goleada; contra o Peru, ao inaugurar o marcador logo no início da partida; e contra o Uruguai, aofechar o placar de um jogo nervoso do começo ao fim. Sem Pelé, Rivellino passou a ser o astro maior da Seleção Canarinha, jogando mais duas copas do mundo e conquistando a Taça Independência e o Torneio Bicentenário dos Estados Unidos. Com todo esse currículo, fazia jus a um jogo de despedida para receber dos brasileiros os merecidos aplausos. Mas não! O jogo do adeus foi somente seu último jogo pela Seleção, contra a Itália, na decisão do 3º lugar da copa de 1978.
Nem tempos depois, quando Rivellino encerrou seu contrato com os sheiks e retornou ao Brasil, a CBF se dignou a organizar uma homenagem por tudo o que ele representou para o nosso futebol. Fazer o quê? Resta-nos apenas parabenizar esse gênio da bola e sempre agradecer, em vida, pelas alegrias e emoções indescritíveis que ele nos proporcionou por quase duas décadas de futebol bem jogado.
ESQUECI DE VOCÊS
por Zé Roberto Padilha
Era, como a maioria, um torcedor apaixonado pela seleção de futebol do meu país. E jamais pensei que uma partida sua passaria ignorada por mim. Fui dormi e nem lembrei, no último domingo, que jogaríamos contra a Colômbia.
Não sei quando nos separamos, mas desconfio dos primeiros sintomas. Tinha 18 anos quando assisti, no auge da repressão militar, as mesmas mãos que decretaram o AI-5 e condenaram o Herzog, receberem dos nossos heróis, em Brasília, a Taça Julio Rimet.
Desceu queimando e fiquei desconfiado. Eles não tinham o direito de usar a nossa mais autêntica arte em prol de encobrir seus escusos objetivos.
Depois, quando todas as classes se envolveram na luta pela redemocratizacao do país, com a exceção da Democracia Corinthiana, não vi nenhum dos nossos selecionáveis subir num palanque pedindo a Anistia.
Muito menos, naquele célebre comício da Candelária pelas Diretas Já, nossa classe colocar sua idolatria na reta.
Depois, os jogadores se afastaram da nossa realidade. Se já não combatiam o aumento da gasolina e do gás de cozinha morando aqui, imaginem quando foram jogar na Euripa recebendo em euros e falando outra lingua?
Hoje, se limitam a desembarcar de jatinho com fones de ouvido, cercado de seguranças para ficar longe do assédio dos torcedores e nem autógrafos assinam. Mesmo porque ninguém quer o autógrafo do Gabriel Jesus.
Enfim, que pena constatar que no país do futebol sua maior expressão, a nossa seleção, pouco significa para sua gente. Não jogam por nós, não lutam por nós, correm pelos seus interesses e desconhecem os interesses daqueles que pagam ingressos para vê-los jogar.
E para quem viu Gerson, e seus lançamentos de 50 metros, Roberto Rivelino, e sua patada atômica, jogar, assistir as limitações da canhota de Lucas Paquetá é desanimador.
E esquecível. Como toda a seleção estrangeira formada por brasileiros que pensa que nos representam.
FRIAÇA SOBRE A FINAL DA COPA DE 50: ‘AINDA SONHO, MAS NÃO ADIANTA’
Faria anos hoje o grande ponta Friaça. Brilhou no Vasco, no São Paulo e na Ponte Preta. Foi dele o gol do Brasil na fatídica partida contra o Uruguai na final da Copa de 50. Conheça um pouco mais sobre este grande ídolo do futebol
por André Felipe de Lima
O pai apostava no filho como seu herdeiro no comando da fazenda. A aposta era alta e consistia, inclusive, em um curso de agronomia para garantir a boa sucessão. Mas o destino é maroto. Nada e fazenda e tampouco faculdade. Como em milhões de casos Brasil afora, sempre ela, a bola, deu as cartas. Como precisava estudar, deixou a formosa Porciúncula, no interior do Estado do Rio de Janeiro, rumo a Carangola. Entre uma aula e outra, o gosto por correr atrás de uma bola de futebol. Não tinha jeito, o jovem Albino Friaça Cardoso, mais o amigo Elgen, com quem formava uma ala direita de respeito no colégio, só queriam jogar. Nada de estudo. Mas a importância dos dois garotos para a pequena cidade pode ser exemplificada pelo seguinte episódio descrito pelo jornalista José Luiz Pinto: “Por achar que Friaça não ia bem naquele colégio, ou simplesmente por que pensou em transferi-lo para outro, o pai dele foi a Carangola com esse objetivo. Quase houve reunião de diretoria, e o velho Friaça teve uma surpresa ao ver que o filho já era tão importante. Elgen, muito mais adiantado, já ganhava seus cruzeiros como professor de português e matemática, mas o único jeito que a direção do colégio encontrou para impedir a saída de Friaça foi oferecer-lhe o estudo gratuito. Estava contornada a situação e o quadro do colégio continuou a atuar com a ala Elgen e Friaça.”
Corria o ano de 1943, quando o Vasco apareceu em Carangola para um jogo amistoso. O time do colégio cedeu seus dois craques para o time da cidade, o Ipiranga, enfrentar o poderoso esquadrão cruzmaltino. Os dois jogaram. E muito. Freitas, olheiro vascaíno, nem pensou muito, foi logo oferecendo a proposta aos dois garotos para testes em São Januário. Nada estava, contudo, garantido. Mas, para dois meninos do interior, nada como uma boa aventura na então capital federal.
A presença de Friaça e Elgen foi tão convincente que ambos, em apenas três meses, garantiram vaga no time amador do Vasco, que tratou de segurá-los com um contrato da categoria de não-amador. Em 1945, os dois jovens fizeram parte do time vascaíno campeão estadual de aspirantes. Repetiriam o feito no ano seguinte e, em 1947, ano em que começaram a atuar pelo time profissional, fazendo parte do elenco campeão carioca de 1947. Ou seja, Friaça e Elgen levantaram dois troféus estaduais em um único ano.
Elgen, tempos depois, deixaria o futebol, optando por manter uma padaria em Natividade, perto de Porciúncula. Já Friaça amava o futebol tanto quanto a vida no campo, em Porciúncula, onde nasceu no dia 20 de outubro de 1924. Sua vida era o Vasco, ao lado de companheiros como Djalma, Maneca, Lelé, Chico e, posteriormente, Ademir de Menezes. Todos atacantes responsáveis pelo fortíssimo ataque do Expresso da Vitória, alcunha da equipe vascaína base da seleção de 1950 apontada como a melhor do País na época. Em São Januário, Friaça também conquistou o primeiro campeonato sul-americano de clubes, em 1948.
O atacante tinha como principais qualidades a precisão nos passes, chutes — que diz ter aprendido com Jair Rosa Pinto — e cruzamentos, além de ser habilidoso e rápido.
Quem diria… Friaça era torcedor do América. Desfilava em São Cristóvão exibindo um cinto, presente que ganhou quando morava em Carangola, e que estampava na fivela as letras A.F.C.. Simplesmente as iniciais de América Futebol Clube. Jogava no Vasco, titular absoluto, Friaça estava “dando sopa” no saguão de São Januário, quando um cartola lhe importunou por que usava um cinto do América se jogava no Vasco. Friaça não deixou por menos: “Quem disse ao senhor que eu torço pelo América? Sou Vasco desde garotinho. Essas letras no cinto são as iniciais do meu nome, Albino Friaça Cardoso.”
No Vasco, Friaça sentia-se em casa, mas o craque amadureceu e sentiu-se valorizado. Pediu aumento dos valores das luvas. O companheiro Elgen fez o mesmo. Friaça insistia em 160 mil cruzeiros e o Vasco não ia nem a 100 mil, ficando nos 96 mil. O impasse perdurava, sendo que, justamente naquela época, o Vasco excursionava pelo México. Na volta ao Brasil, Friaça desembarcou diretamente para Porciúncula ao invés sem, porém, prosseguir na discussão contratual com os cartolas vascaínos. Nenhuma das partes cedeu.
Em sua fazenda, Friaça recebeu um telefonema do ex-jogador vascaíno e agora olheiro Figliola, que dizia ao craque ter comprado seu passe e o oferecido ao São Paulo. Tudo dependeria apenas — dizia Figliola — de ele, Friaça, aceitar ou não jogar no futebol paulista. Friaça imaginaria tudo, mas não abandonar o Vasco daquele jeito, repentinamente desconfortável.
O São Paulo o queria e, ademais, o negócio já estava feito. Era inicio da temporada de 1949 e o Tricolor, de Bauer, Remo, Pone de Leon, Teixeirinha e o velho [e ainda craque] Leônidas da Silva, estava disposto a manter a hegemonia estadual, como escreveu o repórter José Luiz Pinto, em 1951, recordando o episódio da saída de Friaça do Vasco. “Falando ao telefone, um tanto atordoado com o inesperado da situação, Friaça acabou aceitando. E assim, quase contra a vontade, lá se foi o craque para a Paulicéia, iniciar uma nova fase de sua carreira esportiva, que por sinal não foi das mais favoráveis. Friaça não conseguiu acertar em São Paulo, sempre em luta com contusões, sem conseguir jamais recuperar a forma, e consequentemente sem aparecer com o destaque que lograra aqui no Rio. Mesmo assim, lutando contra a adversidade, ainda chegou a integrar o selecionado paulista, naquele campeonato brasileiro antes da Copa do Mundo. Mas a realidade mesmo é que ele não se dera bem em São Paulo, sendo que nos últimos tempos chegara a tal apatia pela bola, que pensou seriamente em retornar definitivamente a Porciúncula. Com a fazenda à sua espera, Friaça achou que já era tempo de encerrar a sua aventura pelo futebol. E, quando o Vasco esteve em S.Paulo, Friaça contou suas mágoas a Ademir e ao velho Menezes. Contou que não estava bem física e tecnicamente e que achava extremamente difícil uma recuperação naquela altura: ‘Volto para Porciúncula, ‘seu’ Menezes’. Mas Ademir e o pai, após muito trabalho, convenceram o craque de que tudo ainda podia ter jeito, que bastaria uma mudança de ambiente para a vida parecer diferente ao jovem atacante. Também o Dr. Giffoni entrou com seu conselho e ficou combinado que de volta ao Rio seria tratada junto ao Vasco a sua volta ao Rio. Tudo deu certo e, em São Januário, Friaça entrou nos eixos, recuperando rapidamente a condição física, e voltando à forma técnica, mercê do ambiente de São Januário. Foi uma recuperação completa e dentro em pouco Friaça deixou de lado por algum tempo os seus planos de voltar ao campo.”
Apesar de não estar ambientado na terra da garoa, Friaça ajudou o Tricolor a faturar o campeonato paulista de 1949, quando terminou a competição como artilheiro, assinalando 24 gols. Sua passagem pelo clube foi curta, porém marcante. Com 0,727 gols por partida [48 gols em 66 jogos], Friaça mantém a terceira melhor média de gols da história do São Paulo, atrás apenas da longínqua marca de Friedenreich [0,814], que corresponde a 66 gols/ 81 jogos, e da assinalada mais recentemente por Luis Fabiano [0,737], com 118 gols em 160 partidas.
Veio 1950… e com ele o casamento com Maria Helena — de quem nunca se separou — e a esperança de ser campeão do mundo. E na sua própria terra. O País inteiro era uma festa. Preparamo-la para aqueles que deveriam fazer do Brasil a pátria do futebol, com aquele que seria um título incontestável. A Copa começou. Superamos Espanha e Suécia, respectivamente, por 6 a 1 e 7 a 1, no quadrangular final da competição. Bastaria empatar com o Uruguai no derradeiro jogo para comemorarmos o título.
“De sexta para sábado e do sábado para o domingo, dentro do bar do Vasco da Gama, na concentração em São Januário, eu assinei autógrafos como ‘campeão do mundo’. Assinei!”. Friaça assinou de tudo. Camisas, bolas, faixas, fotos, como descreveu o repórter Geneton Moraes Neto.
Chegara o dia 16 de julho de 1950. Tínhamos, além de Friaça, Ademir de Menezes, Zizinho, Bauer, Danilo, Bigode, Juvenal, Chico, Barbosa… um timaço. Do lado uruguaio, Schiaffino [o que tinha de craque, tinha de esnobe, diziam os próprios companheiros dele], Ghiggia, Julio Perez [que faria relativo sucesso tempos depois no Internacional], Gambetta e ele… Obdúlio Varela, o grande capitão. Na hora do hino dos dois países, com os dois escretes perfilados, a bandeira do Brasil estava hasteada de cabeça para baixo, garantiu o goleiro Barbosa. Péssimo sinal. Muito mal mesmo.
A peleja começou “mordida”, tensa e com os dois times receosos, nenhum dos craques mencionados jogou bem. Resultado, 0 a 0. “Tremi vendo muita gente boa tremendo na minha frente.”
Começou a segunda etapa e Friaça marcou o primeiro gol do jogo, logo aos dois minutos de bola rolando. “A emoção foi tão grande que só me lembro de uma pessoa que veio me abraçar: César de Alencar, o locutor. Quando a bola estava lá dentro, ele gritou: ‘Friaça, você fez o gol!’ Naquela confusão, ele entrou em campo e me abraçou. Nós dois caímos dentro da grande área […] Ali nós já éramos deuses […] Gravei bem o lance do meu gol contra o Uruguai, porque este é o tipo de coisa que a gente guarda. Eu tinha potência na perna direita, graças a Deus. Quando vi, Máspoli, o goleiro do Uruguai, tinha saído. Bati forte na entrada da área — do lado direito para o esquerdo. A bola entrou. O lance tinha nascido de uma combinação minha com Bauer. Assim: Bauer tocou para mim, eu toquei para o Zizinho — que tocou, na frente, para mim. Antes de entrar na área, bati na bola. Tive a felicidade de marcar!”
Delírio no Maracanã. Uns choravam de felicidade, outros pulavam, gritavam. Seríamos campeões. Não tínhamos dúvidas disso. Amávamos nossos craques. Mas o que não esperávamos era Schiaffino empatar o jogo para os uruguaios. Engolimos a seco. Vidente ou não, quem estava naquele estádio, naquele dia, naquele hora, naquele minuto após o gol da “Celeste Olímpica” sofria com o pressentimento mortal. Santo Agostinho, o primeiro filósofo cristão, nos alertava há milênios: “Sofro por ter derramado minha alma na areia e por ter amado um mortal como se ele não fosse morrer”. Estávamos assim, no Maracanã, crentes da imortalidade. Apenas 10 minutos. Esse era o tempo que nos separava da imortalidade. Mas, pela ponta direita, diante os desavisados “arcanjos” Bigode e Juvenal, surgiu o algoz vestido de azul celeste. Ghiggia chutou, entre a trave e Barbosa… gol.
“Eu me lembro de lances que poderiam ter mudado a história do jogo. Eu era um jogador que tinha noção dos passes, principalmente os de perna direita. Houve um lance em que fiz um passe certeiro, para Ademir entrar de cabeça. Eu, naquele estado de nervos, tinha certeza de que Ademir, com a facilidade que tinha para jogar, faria o gol. Mas Ademir praticamente devolveu a bola para mim. A bola voltou na mesma direção! Por aí, dá para ver o estado em que os jogadores do Brasil se encontravam, naquele momento, a dez, quinze minutos do fim da partida. Naquela altura, era tudo na base do ‘valha-me Deus’, porque ninguém entendia nada.”
Nosso olimpo ruiu. Descobrimos que éramos mortais. Restou-nos o silêncio. O trauma foi grande. Nunca mais perdoariam o goleiro Barbosa, o lateral-esquerdo Bigode e o zagueiro Juvenal. Injustiça com os três. Após o inglês George Reader apitar o final do jogo, Friaça apagou. Não que tivesse desmaiado, mas parecia um zumbi no gramado. Como conseguiu chegar à sede do Vasco, em São Januário? Talvez nem o próprio Friaça saiba ao certo. “O trauma foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder com um gol daqueles?”
Ele, Rui Campos, Noronha e Bauer contornavam o gramado de São Januário, completamente sem eira nem beira. Conversavam em busca de uma justificativa para o improvável: a perda do título. Friaça sentira, talvez, mais que os outros porque fora dele o gol do Brasil. O gol que por pouco não consumou a Copa para o Brasil. A Geneton Moraes Neto, ele confessou ter sido aquele dia o “momento mais duro” de toda a sua vida: “Só me lembro de que a gente subiu para o dormitório. Eram umas 11 da noite. Troquei de roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis, no meu carro. Passei pela barreira, fui para um hotel. Quando perguntaram: ‘Friaça, o que é que você quer?’, eu simplesmente não sabia onde estava. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira, no terreno do hotel. Não sei como é que saí com meu carro da concentração. Não sei como fui bater em Teresópolis. Um médico que era prefeito de Teresópolis é que me deu uma injeção. Comecei a saber onde é que estava uns dois dias depois. O pior é que eu também não sabia. De 64 quilos eu passei para 59.”
Friaça deixou a todos muito preocupados. Após o Maracanazo, ficou cinco dias sem enviar aos parentes notícias de seu paradeiro. O mesmo tempo em que estava desmemoriado. Tudo se acalmou quando chegou à Porciúncula. Não soube explicar, contudo, como perdeu a memória. “Deu um branco”. Suspeitou a vida toda tê-la recobrado quando repousava sob a sombra de uma jaqueira. Apenas uma vaga suspeita. Apenas.
Concentrara-se na fé de que receberia a premiação prometida após a final contra os uruguaios. Fizera um gol na decisão e o jogador responsável pelo feito ganharia um terreno, no Leblon. O artilheiro do jogo também levaria para casa um televisor [artigo de luxo, na época, talvez mais importante que o tal terreno], oferecido pela loja A Exposição. Friaça buscou os seus direitos. Queria o terreno e a televisão. Mas ouviu, como resposta, que só levaria os prêmios se o Brasil saísse de campo com a posse da taça Jules Rimet. E sabemos que esta ficou nas mãos do capital uruguaio Obdúlio Varela.
Sem terreno, tudo bem. Tinha uma fazenda enorme em Porciúncula. Mas a televisão era novidade para poucos. Não a deram como prêmio ao Friaça, e ele — talvez de birra — decidiu comprar uma. “Nós, os jogadores, sofremos em todos os cantos, porque, para onde a gente ia, ouvia só duas palavras: Obdúlio, Uruguai.”
DE VOLTA À FAZENDA
Friaça ainda jogou futebol durante mais alguns anos. Após o São Paulo, passou pelo Vasco, Ponte Preta e encerrou a carreira no Guarani, de Campinas, no interior paulista, em 1958. Ao colunista Adriano De Vaney, disse: “Acomodei-me em Campinas. Lá espero viver o resto de minha vida. Sou casado, tenho uma filhinha de 4 anos, Campinas é uma cidade pacata, de hábitos bons, e eu já me afiz à índole de deu povo. O que quero é tranquilidade de espírito, e isso eu encontrei definitivamente”. O que se sabe é que Friaça retornou a sua Porciúncula e hoje mora em uma casa rosa, número 111 da rua Carlos Pinto Filho, mas o futebol nunca saiu de sua vida. Virou técnico do Porciunculense [ex-Fluminense local], nos anos de 1970 e 80. Volta e meia apareciam por lá craques de sua época, como Biguá e o paraguaio Modesto Bria, ambos ídolos do Flamengo; Ipojucan, Jair Rosa Pinto e Ademir de Menezes, amigos dos tempos do Vasco, para disputarem uma pelada.
Friaça transformou-se, contudo, em um empreendedor. Abriu uma lojinha de materiais de construção, mas o tino para os negócios não era seu forte. Passava horas conversando com os clientes sobre futebol. Com o tempo, o filho caçula, Ronaldo, assumiu a direção da loja, que hoje é a maior da cidade, com filiais em Campos e Itaperuna.
Mas o destino lhe impôs outra perda. Mais dolorosa que a do dia 16 de julho de 1950. Em 1992, seu filho Ricardo, com apenas 33 anos, morreu durante a prática de voo livre, em Porciúncula. Muito abalado, como descreve reportagem de Thiago Dias, Friaça foi buscar conforto no álcool. Como já fumava muito, já não faltava mais ingrediente para minar sua saúde. Anos depois, perdeu a visão do olho direito e, em 2006, sofreu um acidente vascular cerebral, que o impediu de movimentar-se.
Friaça é a personagem mítica da pacata cidade do interior fluminense. Lá, ele dá nome ao estádio de futebol, à maior loja da cidade e até ao enredo de uma escola de samba. Em sua casa, sob os cuidados da zelosa Maria Helena, sua primeira namorada e companheira de toda a vida, toma seus remédios com dificuldade. No quarto em que repousa, estão sua memória e o que sobrou de sua carreira vitoriosa, como menciona reportagem de Thiago Dias: o casaco da seleção usado na Copa de 1950 repleto de medalhas penduradas, a bermuda que vestiu na final no Maracanã e a faixa de campeão sul-americano [invicto!] de 1948, pelo Vasco.
O grande ponta-direita do Vasco — seu time de coração —, do São Paulo e da seleção brasileira nunca esqueceu o dia 16 de julho de 1950 e tampouco o título vascaíno de 48. Em vários pontos da casa há uma menção aos dois episódios, inclusive a faixa de campeão sul-americano de clubes, conquistada após o empate de 0 a 0 com a poderosa “la máquina” do River Plate, de Labruna, Losteau e Di Stefano, e o uniforme da seleção de 50, um “sonho” que nunca se apagou, como confessou, antes de sofrer o AVC, ao repórter Geneton Moraes Neto, que perguntou a Friaça se ainda sonhava com o dia daquela final contra os uruguaios: “Foi um sonho… sonhei… ainda sonho, mas não adianta.”
O filho Ronaldo também sonha: “Se o Brasil tivesse sido campeão, a estátua no Maracanã poderia ser do meu pai”. Melhor exprimem a trajetória de Friaça as letras harmoniosas de “Consolo na praia”, do poeta maior Carlos Drummond de Andrade:
Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humor?
A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
Friaça morreu no dia 12 de janeiro de 2009, no hospital São José do Havaí, em Itaperuna, interior do Estado do Rio, devido a uma pneumonia. Em Porciúncula, tudo lembra o craque. O estádio de futebol, carinhosamente chamado de “Friação”, e as lojas Friaça Center.
Para os moradores da pequena cidade, só há um grande ídolo, um filho dileto.
***
O GOL DO FRIAÇA NA FINAL DA COPA DE 50