NO SEU BOTECO PREFERIDO – BIGORRILHO
por Mauro Ferreira
Botequins guardam em silêncio e a sete chaves a doce e exclusiva ciência de reunir o improvável. Na tentativa também improvável de revelar esses segredos e entender sua relação com a bola, iniciamos a série esportiva/etílica/investigativa “Museu da Pelada no seu boteco preferido”. Através de rodadas e mais rodadas de chope, petiscos e resenhas, vamos passear pelo espaço da conversa fiada e afiada, da cornetada sacana, das comparações entre o melhor e o pior, do mais gostoso e o “nem tanto assim”; do bom e do ruim, do pereba e do “joga pra caralho”. E, se rolar um pandeiro, um cavaco e um tamborim, a hora de acabar a resenha será sempre a manhã do amanhã de um dia qualquer…
No primeiro episódio… BIGORRILHO
Sexta-feira, hora do almoço. A calçada em frente à Praça General Osório, no Leblon, reúne uma fauna diversa. Advogados, jornalistas, atores, publicitarios e jogadores de futebol discutem temas variados e da maior relevância para o futuro da nação.
“Quem era melhor: Calçada ou Eurico?” Paulo Reis advogado do Vasco nos tempos em que a Colina tremia, sentencia: “Eurico como vice de futebol, Calçada como presidente”. É a resposta salomônica própria dos causídicos.
Os temas se sucedem. Chega a vez de Moreira propor novo debate. Lateral do Botafogo, cabelo tratado na tintura para disfarçar a idade, dispara: “Zico ou Fio Maravilha?” Sentado em um banquinho de barril de chope em volta de uma mesa de caixotes de cerveja, Carlos Alberto Pintinho reage indignado: “Moreira, cê tá de sacanagem, né?” Carlos Roberto, Acácio e Nielsen acompanham a indignação de Pintinho. “Oh, senhor Deus, perdoa. Ele não sabe o que diz”, reforça Carlos Roberto.
Por traz dos óculos de grau, Romulo, dono do Bigorrilho, boteco raiz cravado no número 814 da Ataulfo de Paiva, sorri como um menino. Homem criado entre os gráficos do mercado financeiro, resolveu comprar o estabelecimento para não ter que enfrentar outro gráfico: o eletrocardiograma de seu cardiologista. “Isso aqui não é um negócio. É minha terapia. Me salvou. Eu ia morrer se continuasse na bolsa”.
A resenha não para. Seis da tarde, e chegam mais e mais frequentadores ilustres . David Pinheiro, o Sambarilove da Escolinha do Professor Raimundo, se junta à turma. Vira tiete, pede foto, autógrafo, e entra no debate munido de um copo de uísque “on the rocks”: “Preciso deixar a mente leve. A turma aqui tem conhecimento”.
Os temas se sucedem. Risos, gargalhadas, causos, discussões. No calçadão da Ataulfo, o Bigorrilho brilha em luz verde. Todos os dias. Mas, na sexta-feira… na sexta, na hora do almoço, a luz é bem mais intensa.
E é só chegar. O Romulo recebe com sorriso de menino levado e feliz estampado no rosto.

“UMA COISA JOGADA COM MÚSICA” – CAPÍTULO 19
por Eduardo Lamas Neiva

Zé Ary desta feita é que distribui o jogo, lançando um tema à mesa de nossos 4 amigos.
Garçom: – Igual ao Dener, muitos craques brasileiros partiram da Terra muito cedo, né?
Sobrenatural de Almeida: – Com morte eu nunca me meti, nem olhem pra mim. Minha influência sempre foi só dentro do campo. E nunca pra machucar ninguém.
João Sem Medo: – Você disse que de mata-mata entende, Almeida.
Todos riem.
Sobrenatural de Almeida: – Sim, matar time, goleiro, atacante, torcedor no sentido figurado, está aqui o Ceguinho pra não me deixar mentir. Em cada lance que interfiro é um Deus nos Acuda!(dá sua risada medonha)
João Sem Medo: – Então tá bom. Mas agora o papo é sério e não tem sentido figurado. Alguns foram embora no auge de suas carreiras. Como o Eduardo, ponta-esquerda muito habilidoso que jogou no América do Rio e foi depois pro Corinthians e acabou morrendo num acidente de carro, lá na Marginal do Tietê.
Idiota da Objetividade: – No acidente automobilístico, ocorrido no dia 29 de abril de 1969, também faleceu Lidu, lateral-direito. O Corinthians fazia bela campanha no Campeonato Paulista de 1969, quando os dois faleceram.
Garçom: – Parece que teve um problema com o Palmeiras depois…
João Sem Medo: – Foi feia a coisa, muito feia.
Idiota da Objetividade: – Com a perda dos dois jogadores, o Corinthians pleiteou junto à Federação Paulista a contratação de substitutos, o que só seria permitido pelo regulamento com a unanimidade dos outros clubes, pois as inscrições para a competição já haviam se encerrado. Quase todos concordaram, apenas o presidente do Palmeiras na época, Delfino Facchina, votou contra. Revoltado, o presidente do Corinthians, Wadih Helu, chamou o palmeirense de porco.
João Sem Medo: – Merecidamente. Foi até pouco.
Ceguinho Torcedor: – Na primeira partida entre os dois times depois deste episódio, soltaram um porco no gramado do Morumbi e a torcida do Corinthians começou a gritar “Porco, Porco”.
Garçom: – Que atitude feia do presidente do Palmeiras.
Ceguinho Torcedor: – Muito. Mas muitos anos depois a torcida do Palmeiras resolveu adotar o apelido e a história ficou meio apagada.
Músico: – Já que o assunto é a rivalidade entre Corinthians e Palmeiras, vamos chamar de volta ao palco o Teixeirinha?
É aplaudido novamente.
Teixeirinha: – Em matéria de rivalidade, eu e minha amiga Mary Terezinha, que está lá no Mundo Material, entendemos muito bem. Vamos então de “Bom de Bola”, de minha autoria, música que gravei no LP “Carícias de amor”, lançado em 1970, o ano do tri. Não reparem nas “ofensas”, por favor. Hahaha
Todos riem.
Muitas risadas durante a música e aplausos gerais ao fim.
Teixeirinha: – Muito obrigado. E a palavra volta ao comando de quem?
Todos, em uníssono, imitando a antiga vinheta da Rádio Globo do Rio de Janeiro: “João Saldaaaaanha!” João Sem Medo ri, faz seu sinal característico para Teixeirinha e inicia sua fala como começava seus comentários nos áureos tempos de rádio.
João Sem Medo: – Meus amigos, o Flamengo era chamado de urubu por torcedores adversários. Era um apelido racista, fazia referência ao grande número de negros na torcida rubro-negra. Mas quando os flamenguistas assumiram o urubu como mascote, os rivais se esqueceram do apelido pejorativo e racista. Foi mais ou menos o que a torcida do Palmeiras fez em São Paulo, embora o motivo do apelido fosse bem diferente.
Sobrenatural de Almeida: – O apelido acabou num jogo contra o teu Botafogo, João.
Ceguinho Torcedor: – É verdade!
Idiota da Objetividade: – No dia 1º de junho de 1969, Flamengo e Botafogo se enfrentaram no Maracanã pelo Campeonato Carioca daquele ano. O time rubro-negro não vencia o alvinegro há nove jogos e seus torcedores continuavam ouvindo dos torcedores rivais que eram “urubus”, pelos motivos que o João já mencionou. Mas naquele domingo, alguns torcedores do Flamengo pegaram um urubu num lixão e levaram para o Maracanã. Antes de os times entrarem em campo, a ave foi solta com a bandeira do clube presa a uma das patas e os rubro-negros no estádio foram à loucura gritando “é urubu, é urubu”. O Flamengo acabou com o jejum vencendo por 2 a 1 e, com a charge do rubro-negro Henfil no Jornal dos Sports, o urubu passou a ser adotado como um dos símbolos do time.
Garçom: – Sobre outro Flamengo x Botafogo, de muitos anos depois, a final do Campeonato Brasileiro de 1992, Edu Kneip descreveu musicalmente em “Baile do Urubu”. Vou pôr aqui em especial pros flamenguistas aqui presentes, mas quem não é pode curtir também.
O DIA EM QUE ME TORNEI TRICOLOR
por Paulo-Roberto Andel

Ainda me lembro do exato momento em que me tornei Fluminense, há 50 anos: meu pai veio me mostrar um álbum de figurinhas da Copa de 1970 e abriu na página da Seleção Brasileira. Apontou e disse: “Esse é o Félix, ele é do Fluminense”. Desde então, essas duas palavras nunca mais saíram da minha memória, Félix e Fluminense. Eu não me apaixonei pelo escudo, pelas cores ou pelas bandeiras, mas pela palavra – e se coincidência não existe, está explicado porque, muitos anos depois, escrevi vários livros sobre o clube.
Cheguei em 1973 e o Flu já tinha uma história maravilhosa. Embora não seja o primeiro clube de futebol do Brasil, foi o pioneiro de tudo: inventou os campeonatos, o estádio, a torcida, o cuidado com a grama – pelo impecável burro Faísca -, o ídolo – e sex symbol – e, por fim, a Seleção Brasileira, para quem forneceu dezenas de jogadores nas Copas do Mundo.
Provando sua vocação suprema para o futebol, o Fluminense logo tratou de ganhar muitos títulos na era do amadorismo. Depois deu um tempo e, quando veio o profissionalismo, montou aquele que provavelmente foi o maior time de sua história, dominando o Rio de Janeiro em fins dos anos 1930 – e se não fosse a Segunda Guerra Mundial, o Brasil era candidato certo a ganhar o Mundial de 1942 com um escrete tipicamente tricolor. E já que a guerra veio, o Fluminense colaborou com um avião de combate para o Brasil. No fim dos anos 1940, a Taça Olímpica deu ao Flu o título de perfeita organização desportiva. Quando o futebol brasileiro foi reduzido a pó na Copa de 1950, correndo grande risco até de desaparecimento, veio o Fluminense e ganhou o Mundial de Clubes, reacendendo o interesse popular pelo esporte.
Desde então, o Fluminense viveu de tudo, tal como um verdadeiro ator de cinema: ganhou e perdeu grandes títulos, foi condenado à morte com rebaixamentos mas ressuscitou para sempre, teve dezenas de grandes craques, vários perebas, lutou muito e atravessou décadas. Foi às vias de fato, encarando a luta. Time de guerreiros. Tudo isso foi testemunhado pela maravilhosa massa tricolor, muitas vezes imersa na mais apaixonante nuvem de pó de arroz que já se tem notícia. O grande Flu dos clássicos imortais, de times inesquecíveis como a Máquina Tricolor de 1975/17, a mocidade independente de 1980 e o grande grupo tricampeão carioca e campeão. O time do gol de barriga, os campeões da Copa do Brasil em 2007, o vice-campeão da Libertadores em 2008, os dois títulos brasileiros em 2010 e 2012, mais o recente bicampeonato carioca em 2022/23.
O Fluminense é o time dos gols no último grão da ampulheta, das vitórias inacreditáveis, dos heróis improváveis. É o time da playboyzada que não se limita aos bairros nobres – é muito mais um estilo do que qualquer outra coisa. O time das garotas mais bonitas de todos os tempos, não importando se têm 18, 27, 42 ou 66 anos. O time que, por sua longa trajetória, já irritou e contrariou as redações e estúdios de boa parte da imprensa convencional. De Waterman a Welfare, depois passando por Batatais e Romeu, Rivellino e Edinho, Assis e Washington, Renato e Romário, até agora desembocar em Arias e Cano, o Tricolor é sonho, realidade, drama, conquista e emoção, tudo isso envolto em três cores que contam a história do futebol brasileiro há 121 anos.
@pauloandel @p.r.andel
LUIZA CALAZANS ENTRE OS PROGRESSOS E DESIGUALDADES DO FUTEBOL FEMININO
Aos 17 anos, já no time principal do Fluminense, ela conta as dificuldades e gratificações na decolagem profissional
por Maria Clara Baroni e Ursula Villela

Maria Luiza Calazans de Faria tem 17 anos e já conquistou seu espaço no time de futebol profissional do Fluminense. Mas a história da jovem no esporte não é algo recente. Ela começou a jogar bola junto com a irmã gêmea, Duda Calazans, com apenas quatro anos de idade, em uma quadra na frente de sua antiga casa. A largada teve uma influência significativa do pai e do irmão, que haviam jogado profissionalmente, e da irmã mais, que até já foi convidada para jogar fora do país.
Apesar desse DNA, Maria Luiza enfrentou, como a maioria das jogadoras, preconceitos estruturais. Desde que o mundo é mundo, o gênero feminino encontra diversas dificuldades na busca da igualdade. No universo esportivo, não é diferente. Pelo contrário, a ideia de que o futebol é “coisa de menino” ainda está enraizada na sociedade. Assim, mesmo depois de escutar durante muito tempo opiniões machistas e preconceituosas sobre o desejo de se tornar jogadora, Luiza persistiu.
Aos 10 anos, encarou a primeira peneira e entrou para o Fluminense. A rede de apoio formada por familiares e amigos próximos ajuda a superar discriminações e os desafios para conciliar as rotinas esportiva, escolar, familiar, social.
Enquanto busca o amadurecimento técnico, tático e físico, a jovem atleta sonha, é claro, em “alcançar a seleção brasileira principal”, que busca o primeiro caneco mundial da Copa da Austrália e da Nova Zelândia, entre 20 julho e 20 de 20 julho. Ela também quer jogar no Lyon, da França, uma das referências mundiais em futebol feminino, com oito título da Liga dos Campeões, principal competição de clubes do mundo.
O sonho é embalado, aos poucos, pelo empenho nos treinos e pelos primeiros títulos: o Sul-Americano do ano passado, pela seleção brasileira sub-17 e o Brasileiro sub-19, pelo Fluminense, em 2020. O clube carioca foi seu primeiro e único que já jogou – está jogando há 6 anos no mesmo time. Há seis anos no clube carioca, ela aponta a melhor estrutura às atletas como uma das principais diferenças que marcaram a transição da base para a equipe profissional. Recém-promovida ao elenco que vai disputar a Série A1 nacional no próximo ano, ela conta, no papo reproduzido abaixo, a dureza de conjugar os estudos e os treinamentos, a perseverança que venceu a desconfiança alheia, a alegria de chegar à divisão de elite nacional. Também anima-se com os avanços do futebol feminino no país, mas reconhece a montanha de desigualdade ainda por superar.
Como era a rotina na base do futebol feminino tricolor?
O Fluminense tinha uma parceria com a Daminhas da Bola, iniciativa que apoiava o desenvolvimento educativo e prático do futebol feminino no Brasil. A gente estudava de manhã cedo e depois partia para o núcleo de treinamento das categorias de base do clube, em Xerém (município de Duque de Caxias). A maioria das meninas estudava em um colégio em Caxias. A gente saía da aula, esquentava a comida na escola, pegávamos o ônibus às 12h30 e chegávamos a Xerém por volta das 13h30. Começávamos a treinar às 14h. Quando o treino era nas Laranjeiras, saímos mais cedo da escola.
Como era estrutura esportiva, além dos treinos em campo?
Que desafios você encarou mais nesse tempo?

Quando comecei, não havia grande estrutura para a gente, como de fisioterapia, por exemplo. A preparação se concentrava no campo mesmo. Antes do treino, em Xerém, fazíamos academia, sem muitos recursos. Mas ajudava a gente um pouquinho. Hoje, no elenco profissional, a estrutura é muito diferente. Temos academia, nutrição, médico.
Bom, ano passado, quando ainda jogava pela base, foi muito difícil. Machuquei o joelho e tive que conciliar a escola, o treino e o tratamento. Era duro. Recebia todos os trabalhos online, não conseguia tirar dúvida com o professor. E ficar esse tempo sem jogar também me afetou muito.
Fora dificuldades de estrutura, muitas jogadoras enfrentam preconceitos e são desestimuladas a seguir adiante. Você enfrentou também esses obstáculos?
Com certeza. Muitas pessoas falaram para eu desistir. Diziam que eu não iria conseguir, Foi bem chato, mas a minha família sempre apoiou e correu atrás comigo. As pessoas que falaram essas coisas para a gente hoje em dia agem como se nada tivesse acontecido.
Como é o dia a dia agora que você treina no time profissional?
Treinamos a semana toda no CT do Fluminense mesmo. O treino começa às sete da manhã. Como moro na Zona Norte, acordo às cinco e pego um ônibus até lá. No campo, o treino vai até as 10h30. À tarde, temos academia a partir das 16h. Basicamente, é isso.
Quais são as principais diferenças na migração base para o profissional?
Na base, treinávamos no campo, a partir das 10h, toda segunda, quarta e sexta. Às terças e quintas, o trabalho era feito pela internet, via Zoom. Os técnicos nos mandavam os exercícios, e fazíamos de casa mesmo. Já no adulto, além de irmos todos os dias para o CT, vemos vídeos de jogos e treinos, e treinamos na academia em busca de uma performance cada vez melhor.
Que campeonatos você está disputando?
As competições estão quase todas no final. Chegamos à final do Campeonato Brasileiro A2, contra o RedBull Bragantino. Como tenho 17 anos, também disputo ainda os campeonatos de base ainda. Ficamos em terceiro no Brasileiro Sub-20. Em setembro, começa o Campeonato Carioca, tanto do Sub-2 quanto do adulto. E, em dezembro, temos a Copinha (um dos principais torneios de base do país).
O principal objetivo do time, chegar à série A1, foi alcançado, certo?
Sim. Era o nosso maior objetivo do ano: conseguir o acesso para a série A1. Desde o começo, nosso técnico colocou, na nossa cabeça, a ideia de que o time não podia ficar mais um ano na A2, de que tínhamos que subir para a série principal. Ver que essa meta se concretizou é muito gratificante para todas nós.
De todos os desafios que você enfrentou para se profissionalizar, qual foi o mais difícil?
Foi a lesão que sofri no ano passado, quando eu estava no auge. Rompi um ligamento do joelho. Foi muito difícil, mesmo com os apoios da minha família e do pessoal do Fluminense. Eu pensava: “Será que eu vou voltar bem?”. Ou “Mas e se não der certo?”. Graças a Deus, depois de longos nove meses, voltei muito bem.
O clube a acompanhou nesse período de recuperação?
Sim. Inclusive, quando eu soube do laudo oficial, a primeira pessoa com quem eu conversei lá foi a psicóloga. Recebi acompanhamento físico, psicológico, nutricional do clube até o fim do tratamento.
Apesar dos avanços recentes, as diferenças entre o futebol feminino e o futebol masculino ainda são enormes no Brasil. Na sua opinião, quais são as principais disparidades?
Acho que as principais disparidades são de investimento, visibilidade e infraestrutura. Ainda há muitas carências nesses pontos. Mas o futebol feminino vem crescendo, é inegável. Por exemplo, o Sportv vai transmitir a Copa do Mundo feminina. Isso é um passo muito grande. É muito difícil lidar com essa desigualdade, mas, ao mesmo tempo, é animador ver que mudanças estão acontecendo.
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Conteúdo produzido por estudantes da PUC-Rio, sob orientação do jornalista Alexandre Carauta, professor de Jornalismo Esportivo do Departamento de Comunicação da universidade.
ELES TORCEM ATÉ MORRER PELO REENCONTRO DO AMERICA COM A HISTÓRIA
Entusiastas como André de Paula, fundador da torcida AnarcomunAmerica, renovam devoção ao clube em jornadas na Segundona do Carioca
por João Vitor Lopes e Rodrigo Carauta

“Hei de torcer, torcer, torcer, hei de torcer até morrer, morrer, morrer”. Os versos iniciais de um dos mais belos hinos do futebol brasileiro retratam bem a perseverança apaixonada vivida pelos torcedores sobreviventes do América. Há décadas eles resistem à decadência do clube que encantava o Rio com o indefectível uniforme vermelho e jogadores bons de bola.

Passados 41 anos da coroação como “campeão dos campeões”, o declínio esportivo, econômico e midiático não desbota a importância histórica do America Football Club (sem acento, frisam os tradicionalistas), fundado em 1904, na Tijuca, Zona Norte carioca. Tampouco diminui a idolatria reciclada nas arquibancadas do subúrbio, da periferia e do interior fluminenses. A devoção – escancarada já no hino composto, em 1945, por Lamartine Babo, ele próprio torcedor americano – renova-se entre a realidade de partidas sofríveis na segunda divisão do Carioca e o sonho de voltar à elite do futebol.

Boa parte dos que acompanham o America no prolongado purgatório não conheceu seus tempos de glória. No entanto, gerações distintas de torcedores alimentam, com o Diabo, uma relação acima dos resultados. Cultivam uma conexão além do futebol, uma identificação movida a afeto.
O time hoje flerta com a zona de rebaixamento para a terceira divisão do Campeonato Estadual. Martírio inimaginável para um clube que soma sete títulos cariocas – o último em 1960 – e arrebatou, em 1982, o Torneio dos Campeões. Convidado para esta competição nacional, que reunia os campeões e vice-campeões brasileiros, o America roubou a cena. Venceu o Guarani por 3 a 1 na final. Mais do que a conquista singular, a equipe rubra encantou por reunir talentos como Pires, Eloi, Moreno, Gilson Gênio.
Sucessivos desacertos administrativos, políticos e financeiros empurraram o clube ladeira abaixo no fim do século passado. Para torcedores e dirigentes atuais, inúmeras são as razões de o America ter sumido das principais competições e dos holofotes. Envolvem desde brigas com a Federação do Rio e com a CBF até uma sequência interminável de equívocos gerenciais.
Conhecido como o clube mais simpático do Rio, “segundo time de todos”, o Mecão desfruta de um apoio generalizado à sonhada e difícil volta por cima. Parte dos torcedores preferiria, contudo, vê-lo temido pelos rivais, em vez de tratado como amigo da vizinhança:
“Fico feliz quando passo com a camisa do América e o porteiro brinca: ‘Aqui é Flamengo, nada de America neste prédio’. Precisamos recuperar esse reconhecimento”, enfatiza André de Paula, o André das Faixas, criador da torcida AnarcomunAmerica. Ele integrava às três centenas de abnegados que incentivavam o time contra o Macaé na ensolarada tarde de 27 de maio. Mesma data, lembra André, do 0 a 0 entre o Mecão e o Besiktas, da Turquia, em 1959.
Os entusiastas agregados no estádio de Edson Passos, na Baixada, buscavam não só a vitória do anfitrião sobre a equipe costeira. Almejavam, acima de tudo, um reencontro com dias melhores.
Diante da decadência americana, uma parcela dos torcedores refugia-se na nostalgia. Alguns deles apontam a mudança do campo – do Andaraí para Edson Passos – como um dos motivos da derrocada, e de certa perda de identidade. Na arquibancada, olhares desanimados suspiram saudades do “America de verdade”.
Outros mantêm a animação e a fé. Vibram com cada vitória chorada na Segundona. Desencavam formas independentes de ajudar o clube. Assim se comportam os integrantes da AnarcomunAmerica.
Liderada por André, a torcida nasceu em 2018 também como resistência ao governo que começaria naquele ano. Um resgate das origens do clube, justifica o fundador. Ele argumenta que futebol e política costumam se misturar:
“A ditadura sabotou Zico nas Olimpíadas de 1972, por conta de perseguições ao seu irmão Nando (Fernando Antunes Coimbra). Já havia sabotado Edu, seu outro irmão, não convocado para a Copa de 70, apesar do ano magnífico”, exemplifica.
Não obstante os ideais políticos, a campanha principal da torcida organizada concentra-se em atrair novas adesões ao America. Não raramente a organização banca o ingresso e o transporte daqueles que não podem arcar com os custos para ver o time nos gramados. Sem esforços deste tipo, o duelo contra o Macaé, pela terceira rodada da Série A2 do Estadual, teria reunido menos ainda do que 328 torcedores.
O sol vespertino atormentava tanto quanto a sacrificada qualidade técnica do jogo. A equipe tentava corresponder ao clamor da arquibancada. Acumulava gols perdidos.
A partida aproximava-se do fim quando esperança converteu-se em desespero. Aos 44 minutos do segundo tempo, o Macaé achou o gol em um escanteio. Quem não faz, toma, ensina a máxima do futebol.
A torcida mal esboçou reagir. O golpe parecia nem doer mais. Gritos pediam Romário, torcedor ilustre, para presidente do clube. Foram logo abafados por integrantes da AnarcomunAmerica.
O bate-boca tornou-se inevitável. Confusão no campo e na torcida. Apesar da frustração, os alvirrubros, escaldados com o longo inferno, aparentavam não se abalar. Uns guardavam os instrumentos de percussão. Outros combinavam o encontro para o jogo seguinte, garimpavam aspectos positivos da partida, faziam contas para fugir de mais um rebaixamento.
A despeito dos percalços, o vice-diretor de Planejamento e Comunicação do America, Marcelo Burgos, confia na recuperação esportiva e social. Projeta a expansão da torcida impulsionada por uma integração comunitária e histórica:
“Esperamos expandir novamente a nossa torcida, conquistando o público dos arredores de Edson Passos com projetos sociais, oficinas e com um trabalho de base, principalmente do futebol feminino, que tem dado bons resultados. Além deste vínculo local, apostamos na identificação do público com as origens e a história do América”. Burgos completa:
“Quando a obra do Shopping em Campos Salles (sede do clube, na Tijuca) ficar pronta, até o fim do ano, começará a cair um bom dinheiro pro América. Quantia que pode servir para reestruturar o clube e reaproximá-lo do público geral, com ganhos esportivos”.
Em busca de horizontes mais doces, os adoradores do Diabo ancoram-se na tradição, nas glórias e nas histórias que eternizam o America Football Club entre os grandes. Algumas delas são lembradas por André das Faixas, uma enciclopédia, nesse breve papo extraído naquela tarde de sol, futebol, paixão:
Como você virou o torcedor do América?
Fui com o meu pai, rubro-negro, ver um jogo do Flamengo no Maracanã. O América jogava a preliminar. Quando olhei para aquela camisa vermelha, pensei: esse é o time para o qual vou torcer. Isso foi em 1985, quando o America ficou quase o ano todo sem vencer. Depois, estudando a história do clube, descobri que era o time não só com a camisa mais bonita, mas também com o hino mais bonito.
Você se identificou também com a história do clube…
Sim. O America Football Club nasceu na Gamboa, um bairro proletário, fundado por anarquistas, daí a cor preta. Depois é que mudou para o vermelho. O anarquismo era a ideologia dominante dos operários. O clube nasceu, portanto, num bairro pobre, com a camisa preta, para combater os grandes da época. Por isso, era chamado pejorativamente de urubu de sarjeta. É um clube historicamente protagonista de resistências políticas, o que se refletiu em brigas com a Federação do Rio. Assim, o America acaba sempre prejudicado, apesar de ser campeão da lisura, da disciplina, da simpatia. O America pacificou o futebol carioca, ajudando a unificar as duas ligas (em 1937). Fez, com o Vasco, o Clássico da Paz.
Outro marco histórico refere-se ao, como se diz hoje, ao fair play de Belfort Duarte, que se acusava ao cometer uma infração…
Isso mesmo. Ele teve a honradez, por exemplo, de falar para o juiz que a bola não tinha entrado, num gol consignado a favor do America. Foi um grande zagueiro, um líder do primeiro título estadual americano, em 1913. Belfort Duarte destacava-se também pela lisura. Nunca foi expulso. Por isso, inspirou o prêmio que leva o seu nome, concedido aos jogadores que passam dez anos sem serem expulsos. O Alex, maior zagueiro central que eu vi jogar, também nunca foi expulso. O estádio do Coritiba, até pouco tempo atrás, era chamado Belfort Duarte. Há de se ressaltar ainda a importância histórica do clube contra o racismo. O America foi um dos primeiros a receber negros em suas fileiras, fato destacado por Mário Filho no livro “O Negro do Futebol Brasileiro”.
E os marcos esportivos do América?
No campo das glórias esportivas, fora os sete títulos estaduais e a conquista do Torneio dos Campeões, o America é o vingador do futebol brasileiro. Ganhou por 3 a 1, em 1951, do Uruguai, representado pelo Peñarol, vingando o Maracanazo (vitória do Uruguai sobre o Brasil, 2 a 1, na decisão da Copa de 1950, no Maracanã). Em 1948, o America jogou oito vezes no exterior para defender a primeira Fita Azul. Em 1959, foram 17 jogos. Em 1961, mais sete jogos. O America e a Portuguesa de Desportos são os únicos clubes brasileiros que têm a Fita Azul (título honorífico concedido pela antiga Confederação Brasileira de Desportos, atual CBF, ao time brasileiro com a melhor excursão no exterior). Temos também várias taças internacionais, como a conquistada em Nova York.
Que outras referências históricas ou curiosidades singularizam o América?
É o clube com mais homônimos no Brasil, cerca de 190. Até 1940, tínhamos a maior torcida do Brasil. Falando nisso, a torcida Brigada Rubra enfrentou a ditadura militar, como a AnarcomunaAmerica vem enfrentando [movimentos antidemocráticos]. Colocamos, no estádio, uma faixa contra a Reforma da Previdência, por exemplo.
Como surgiu a ideia dessa torcida?
Surgiu no governo Bolsonaro, homofóbico, racista, arbitrário. Como achamos que o futebol sempre foi instrumentalizado pelas elites, resolvemos fundar a AnarcomunaAmerica. Sempre nos manifestamos nos jogos, na política interna do clube, na política nacional.
Como vocês se organizam para acompanhar os jogos?
Vamos a todos os jogos do masculino e do feminino e a alguns da base. Não importa a colocação, estamos em todas as partidas. Nunca pedimos nem aceitamos ajuda da diretoria. Somos independentes. Temos uma cotização entre nós, sócios da torcida. Cooperamos para que os torcedores pobres possam ir aos jogos. A gente paga o ingresso deles e fornece o transporte nas longas viagens. Alugamos kombis para nos levar nos jogos inacessíveis por transporte público.
Esses esforços conseguem renovar a torcida?
Isso é um trabalho lento. Não temos nenhum meio de comunicação. Depois que conhecem a história do América, muitos passam a torcer pelo clube. Por outro lado, futebol é resultado. O pessoal quer ir pro clube que está ganhando. Neste sentido, fica difícil convencer uma pessoa a torcer pela América. Mas posso te garantir que, lentamente, a AnarcomunaAmerica está crescendo.
O que esperar do América nos gramados em 2023?
Bom, acho que o América não deverá subir [para a elite do Carioca], porque a Federação dificulta. E a diretoria não a enfrenta. Faz a política da boa vizinhança, mas acabamos sempre prejudicados. Portanto, acho que ainda não sairemos desse atoleiro. Mas tenho esperança quanto ao trabalho de base que está sendo feito. Será que Romário, chamado para assumir o clube, poderá transformar o seu prestígio em mudanças efetivas para o América? Eis uma grande interrogação. Acredito que ele tenha condições de captar recursos para o clube. Eu espero que ele também enfrente va Federação.
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Fim da entrevista
Se o Shopping levará o clube a caminhos mais prósperos no futebol, não sabemos ao certo. O que se sabe é que independente disso seus fiéis torcedores estarão apoiando. Um até brincou que não seria tão ruim cair pra terceira divisão, pois pelo menos, seriam adversários diferentes. Retomando o que disse no início, esse sentimento vai muito além dos valores do futebol. Vai na contramão da lógica resultadista, nacional, ou até global. Ver que a graça, talvez, não esteja apenas na vitória, no título, na divisão de elite, mas sim no processo, no ato de torcer em si, cada um na sua forma. Ter também o clube como uma figura próxima, que convirja com sua história e valores. É o esporte na sua mais pura essência. Como disse o André: O America é tão superior que não precisa nem vencer”
E nós somos tão superiores, que não precisamos nem vencer. O America é uno e múltiplo. Essas são as razões que me fazem cada vez mais me ligar ao America, estando ele vitorioso no campo, ou sendo derrotado no campo, uma vez que o America está muito acima das vitórias conjunturais que possam acontecer no campo.