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HOJE E 1982

5 / julho / 2022

por Rubens Lemos

Faltou coragem para convencer o motorista que me dava carona a parar por cinco minutos. Não mais que cinco minutos. Porque há 40 anos houve uma data mortífera para minha vida de menino prosseguindo nas repetições bastardas sobre aquela quase tarde de 1982.

Gostaria de ter pedido licença ao atual dono do imóvel, Rua Abelardo Calafange, Morro Branco, Natal(RN), onde iria procurar por mim mesmo, sufocado de saudades. Casa ajardinada, com ampla varanda, três quartos arejados, a sala de estar onde a velha TV Telefunken certamente apareceria para mim, como um fantasma eletrônico a martirizar o fragilizado espírito.

Deus, meu Deus, queria tanto que me liberaste a carta de alforria do meu sentimentalismo, combustível dos meus dias desde as primeiras travessuras.

Iria vasculhar a casa, entrar na cozinha, de onde mamãe emitia ordens expressas para tomarmos banho no horário correto e esperar a condução para a escola, pois meu pai raramente almoçava com a gente durante a semana.

Voltaria, meu Deus, à varanda. Lá, meu pai declamava poemas de Drummmond, de Quintana, de Berilo Wanderley, dele próprio, nas farras embaladas pela suavidade do violão de Domilson Damásio, pai dos meus amigos Denílson, Kleber( Klebão) e do mais novo, Zé Bastos.

Domilson dedilhava Lupicínio Rodrigues, Cartola, Ismael Silva, os velhos sambistas evocados e reverenciados por Rubão de bigode nicotinado e, foi dele Deus, que herdei, a emoção exposta na pequena piscina do seu olhar cansado e na sua voz aveludada.

Foi na sala de estar que, dia 5 de julho de 1982, vestindo uma camiseta simplória da Hering com distintivo da Confederação Brasileira de Futebol(CBF), juntei-me a papai e seu cigarro fumegante, à minha irmã, torcedora do Flamengo e ao caçula, de apenas seis anos e, feliz dele, sem entender nada do que a jornada faria com nossas vidas a partir de então.

Estávamos certos, embriagados pela traiçoeira armadilha da presunção, de que o Brasil sairia do Estádio Sarriá, em Barcelona (Espanha), tão glorificado quanto três dias antes, quando humilhou a Argentina campeã mundial com o astro-rei Maradona. A Itália – naquele dia não enxergávamos nada racional – por nós era sentenciada como time medíocre.

A vitória da Azzurra sobre a Argentina por 2×1, tampouco nos alertara, embriagados de soberba que estávamos, diante dos recitais de Zico, Sócrates, Falcão, Júnior, Leandro – que fábula de lateral-direito -, Éder e Oscar impondo-se com o porte dos grandes marechais de retaguarda.

Então, a Itália faz 1×0, cabeçada de Paolo Rossi. A bola viajou pela pequena área e o goleiro Valdir Peres não saiu para afastá-la. Valdir Peres nem na Copa, agora é fácil protestar, deveria estar, Brasil com dois veteranos fantásticos – Leão e Raul -, vítimas da teimosia siderúrgica do técnico Telê Santana.

Zico dribla, dribla não, Zico descadeira Gentile e serve a Sócrates. O Magrão toca entre Zoff e a trave, 1×1, explosão familiar na Abelardo Calafange. Alegria tolhida pelo passe ridículo de Cerezo atravessando a defesa. Como uma cobra cascavel de cantina, Paolo Rossi se antecipa e fulmina Valdir Peres:2×1.

Termina o primeiro tempo, meu pai sai para comprar cervejas e, sem ser convidado, vou com ele, agarrado à sua camisa e perguntando desesperado:

– Pai, vamos empatar? vamos, pai?

– Sim meu filho, acho que sim, mas vá aprendendo a perder, ele ensinou, colecionador de derrotas futebolísticas e, sobretudo pessoais, que machucavam sua alma lírica.

Falcão empata e, pela primeira vez, desabo em prantos em jogo de seleção. Choro muito, ajoelhado e rezando o Santo Anjo. Aí, Cerezo cede o escanteio mais idiota do mundo. Estava com a bola dominada e, nervoso, jogou-a pela linha de fundo. Patético.

A defesa faz a linha burra para deixar a Itália em impedimento. Júnior fica na pequena área. Paolo Rossi, verdugo, faz seu terceiro e decreta a nossa derrota, muito mais que a vitória deles.

A casa virou um cemitério. Perdemos. Eu aprendi que super-heróis eram enganações na acidez da verdade. Dor que me faz odiar aquela casa, aquela esperança, aquele fracasso e a derrota principal: meus pais estão mortos.

2 Comentários

  1. Gleibe Pretti

    Muito bom texto.
    Pra mim, a copa de 82 gravou.
    Lembro-me do jogo contra a Argentina, quando nossos gols saiam, meu pai, me jogava pra cima, olhava todos na sala de casa , alegres e felizes, assim como eu.
    Contra a Itália…

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  2. João Amauri

    Que texto belíssimo. Da pra sentir a sensação do frio de julho e ouvir os fogos. Uma joia literária

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