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Marcelo Mendez

A VÁRZEA E O MENINO DO HAITI

texto: Marcelo Mendez | foto: Maristela Ranieri

Esnel joga bola…


(Foto: Maristela Ranieri

São vários os caminhos da várzea pelos quais a crônica perambula.

Dias de sol, chuvas finas, garoas com gotas de orvalhos matinais e sonhos. Andanças regidas por sons de blues, rock, jazz e outros instrumentos de samba. Dos pés adornados por chuteiras coloridas e cadarços psicodélicos saem as melhores histórias de toda uma humanidade que resiste.

Para saber da beleza do futebol de várzea basta caminhar.

Dessa vez a ida era até o campo do Alvi Negro de Santo André. Para o match, convidados nobres.

O time do Jerusalém de São Bernardo enfrentaria Combinado de Haitianos do ABC. Um grupo de refugiados, todos moradores da Favela do Cigano em Utinga, que se apresentaram para a peleja. Cheguei na cancha e vi os meninos.

Todos homens, alguns felizes, outros resolutos, uns contemplativos, outros curiosos, uns eram poesia, outros eram rock and roll, uns eram versos, outros eram silêncio. Nenhum deles era indiferente. Para aquele grupo de homens, estar ali era um grande feito. Algo grande, para muito além de títulos e bravatas.

Um outro mais desavisado há de observar; “Que coisa mais frugal, um jogo de futebol de várzea que de nada vale. Como pode ser algo assim tão grande, Marcelo, seu Bardo?”

O Cronista deve tomar cuidado:

O que interessa aos homens comuns não serve para imortalidade. E o que acontece em um terrão de várzea está intrinsecamente ligado ao que há de imortal.

Assim foi naquele jogo. Bola pra lá, bola pra cá, chutões e outras mumunhas quando de repente me aparece Esnel.

Esnel trombava, chutava errado, não sabia passar muito bem, não era muito bem dotado de habilidade. Mas Esnel corria. Com uma inabalável aplicação, do pouco que sabia, Esnel dava tudo. Tudo que tinha e principalmente do que não tinha. Não era um craque de bola e pouco importava porque não seria isso que faria de Esnel um imortal.

Esnel sorria!

Com a candura de um garoto que brinca de bola pela primeira vez na vida, o menino do Haiti sorria feliz da vida. Era um jogador que agia, portanto através do riso farto, feliz e pleno. De nada adiantaria fazer gols, aplicar-lhe dribles, impetrar-lhe canetas, submetê-lo a realidade cruel de um chapéu tomado.

Para todo revés que o adversário apresenta-se, Esnel teria um sorriso para resistir. Como faz em sua vida.

Terminado o jogo, fui até ele. Lhe ofereci uma cerveja, ele me disse que não bebe. Perguntei se queria algo, ele me respondeu que não. Pedi para conversar e então ele me deu um dos seus lindos sorrisos e gentilmente me puxou uma cadeira. Falou um pouco dele…

 Que saiu do Haiti depois de um terremoto porque ali seria impossível de viver. Que por la deixou seu amor. Que sonha em juntar uma grana para ajudar os seus que ficaram. Que era feliz…

Me disse que achou um barato poder jogar bola com brasileiros, que não era muito bom, mas que só queria brincar e agradeceu por terem deixado fazê-lo. Brincou, contou histórias, sorriu mais, me pediu o telefone e disse que eu era legal.

Esnel joga bola…

Por um dia, no futebol de várzea, Esnel conseguiu sorrir com gosto, como se a vida de fato fosse algo muito bom que vale-se a pena de ser vivida. Com Esnel e por Esnel vale.

Eu te amo, Esnel…

CURUMIM E A SALVAÇÃO DA VÁRZEA

texto: Marcelo Mendez | foto: Caio Vilela

Já me perguntaram várias vezes o porquê desse prazer todo em fazer um jogo de futebol de várzea. Eu não sei.

Da beira do campo do Estádio Pedro Benedetti em Mauá, assistindo ao jogo final da terceira divisão de lá, entre Camarões x Ampa, valendo o caneco, ficou difícil de ter algum entendimento pela dureza que ali se apresentava.

Era um jogo horroroso, mas sem problemas quanto a isso.

Afinal de contas uma das ótimas coisas da várzea é a intrínseca verdade que nela existe, o que me permite dizer sem rodeios, sem floreios, sem voltas no verbo, que ali diante de minhas retinas eu via um péssimo jogo de futebol. Era uma penumbra de lascar na manhã mauaense ali naquele estádio. O céu escuro, o vento frio, o pouco interesse do torcedor, a ausência do vendedor de amendoim… Tudo combinava perfeitamente com aquele triste futebol ali apresentado.

Era de uma pobreza técnica de dar dó.

Nada ali parecia encantar. Os times estavam cansados de alguma coisa, os técnicos não vociferavam táticas, os torcedores não faziam rezas e tudo ali caminhava para algo muito triste de se ver quando então, do profundo lodo do comum, da inércia total de sonhos, eis que surge um camisa 10 no time dos Camarões…

Era um chutão pérfido. Por um intermédio de um bicuda desferida de maneira indecente por um caneludo vil, a bola, a sofrida bola, viajava pelo céu cinza de Mauá. Não esperava por nada enquanto descia e ficou feliz quando encontrou o peito do 10. Desceu feliz e em uma linda jogada, o menino meteu o pé embaixo dela, a bola, para aplicar um chapéu épico em um desesperado zagueiro.

– Boa, Curumim! – gritou um torcedor solitário atrás de mim.

Curumim…

Era um garoto como tantos outros garotos que correm pelos campos de várzea do mundo. Caboclo da pele bronzeada de lutas, canelas adornadas por meias coloridas, chuteiras de um cítrico capaz de iluminar toda a cidade, Curumim corria…

De seus pés saía passes precisos, de sua cintura vinham, gingas e dribles desconcertantes para iluminar as jogadas que pareciam perdidas. Em uma delas, com a malemolência de um sambista da Lapa dos anos 40, deu uma caneta em um afoito zagueiro, de corar. Lépido como um jaguar, escapou da primeira pernada que tentaram desferir contra suas canelas, mas sucumbiu na segunda tentativa do outro zagueiro bufão.

Não se abalou.

Sorriu para a jogada, da mesma forma que se sorri para uma das tantas durezas da vida. Levantou e seguiu bailando. De seus pés saíram os gols necessários. De sua inteligência, veio um toque de cobertura para que saísse assim um golaço. Comemorou e seguiu feliz pelo campo. Como que sabedor de sua missão, Curumim jogou para salvar o domingo, a crônica e o encanto. Não desistiu.

Quanto mais desperdiçavam seus passes, mais ele os fazia; Quanto mais o batiam, mais ele jogava. Contra tudo e contra todos, Curumim seguiu jogando lindamente em Mauá como que em um mundo à parte em um universo seu, em um mundo criado pelo camisa 10 onde só a beleza é possível.

Vendo-o ali buscando incessantemente o encanto, o verso, chego então a tão clamada resposta sobre o que é o futebol de várzea. Oras…

A Várzea é a luta de Curumim pela beleza, pelo sonho, pela poesia. É a batalha de quem acredita que pode mudar o mundo com um drible, que pode pôr um sorriso em um rosto sisudo, por mais que o dia insista em ser frio e cinza. Sendo assim não me resta dúvida.

A várzea, meus caros, é o Curumim. Grande Curumim!

CHICÓ, O MAESTRO DO OLARIA

por Marcelo Mendez


(Foto: Cassimano)

Amigo leitor que me acompanha vos afirmo:

O 3 a 0 no futebol é um placar deveras impiedoso e singular.

Nele não paira a dúvida. O derrotado não consegue ver uma falha de árbitro, um erro de bandeirinha, nada. A coisa é sonoramente rotunda, “Foi um 3 a 0”. Geralmentek o time vencedor desse placar sai da cancha consagrado, sem o menor problema em curtir as benesses da grandiosidade ludopédica.

Peitos estufados, festas feitas, quem vence de 3 a 0 na várzea, por exemplo, tem seu domingo cheio, completo, realizado. Foi o caso do time sub-20 do Olaria de São Bernardo no domingo último, uma outra peculiaridade da pauta.

Em tempos onde as categorias de base na várzea existem cada vez menos, torna-se muito raro que a imprensa esportiva, aqui por mim representada, abra espaço para esses meninos. E aqui também reside a minha mea-culpa na questão toda; Nunca havia feito cobertura do futebol sub 20. Pensando nisso, topei a pauta e lá fomos para o campo do Jardim das Orquídeas em São Bernardo acompanhar o Match.

Domingo belo de várzea, clássico.

Enquanto parte da comunidade acordava, outra parte já estava lá, na beira do campo a torcer. Viram um bom jogo, com o Olaria vencendo o Jardim Thelma sem sustos pelo impiedoso 3 a 0 que conto, mas com um ingrediente a mais, o seu capitão, o dono do time, o seu camisa 8:

Chicó…

Já havia reparado naquele menino alto, jogando ereto, com elegância, ali na cabeça da área do Olaria como os antigos faziam. Jogava um futebol de classe, comandava a saída de bola de seu time controlava os ímpetos do time adversário, até que saiu uma falta da entrada da área.

Chicó foi até a pelota. Parou, olhou a posição da barreira e bateu por cima dela, um tapa a lá Zico que saiu de seus pés para o ângulo do gol do Thelma. Um golaço! Na comemoração esfuziante de seus companheiros, odes, montinhos e peitadas em Chicó. Vi ali um Grande.


Eu não sei o que será de Chicó. Se vai ser jogador de bola, se seguirá vestindo a camisa do Olaria se vou reencontrá-lo pelos campos de terra do ABCD, não sei. A várzea tem um pouco disso. Vale o que se vive ali no momento, curte-se isso com intensidade, com a fúria apaixonada dos meninos dos 20 anos. Não sei do que será Chicó.

Mas sei que nesse último domingo, ele foi Grande…

ODE A MARCIO, O 10 DO BONSUCESSO

por Marcelo Mendez


Era sábado à tarde e eu não sabia exatamente o que iria encontrar ao cobrir meu primeiro jogo de veteranos pela Liga de Santo André.

Na verdade, assuntos e emoções não faltavam, era a volta do time do Bonsucesso, lendário na várzea de Santo André, após 24 anos de inatividade, o jogo seria no campo do Nacional, onde cheguei para jogar futebol com seis anos de idade no longínquo 1977, por lá reencontrei amigos de longa data e tudo mais.

No entanto, dentro de mim senti algo diferente, aquela velha sensação que habita o peito do cronista na hora em que um grande fato está prestes a acontecer de maneira fulgorosa. Não errei na previsão:

Naquela tarde, um craque habitaria o campo e a tarde dos incautos na Várzea de Santo André.

Marcio…

Marcio é o camisa 10 do Bonsucesso, como de fato sempre foi ao longo de toda sua vida. Me recordo dele menino com a 10 do Rhodia, me lembro dele ainda garoto com a 10 do Bonsucesso e depois com a mesma camisa 10 rodou por Andradas, pelo Mauaense e afins. Por onde passou, ele e sua camisa 10, Marcio fez muito mais do que apenas jogar futebol lindamente.

Um jogador refinado de passos de Nijinski, e olhar de fúria. Em campo com a 10, Marcio sempre foi intenso, sempre foi rock and roll. Jogou futebol da mesma forma que Baudelaire escreveu seus versos. Marcou gols com o gosto da chicotada de lírios que o poeta francês deu em seus versos. Em campo, Marcio tinha a mesma grandiosidade de um Rolling Stones tocando Midnigth Rambler. Sempre foi um espetáculo vê-lo jogar e no sábado não foi diferente.

O garoto agora tem 39 anos e é pai. Carrega em seu rosto a paz que a idade e as realizações pessoais dão ao sujeito. Joga bola por encanto, por gosto, para rever amigos, para trazer de volta a ativa o seu amado Bonsucesso. Dá sorrisos, me abraça antes do jogo e vai a campo. Uma beleza.

Márcio já não tem mais a mesma velocidade, mas o que importa isso? Quem está com pressa? Não… Marcio não joga, desfila. De seus pés não saem passes, saem paletadas de multicores. Marcio joga bola como um Ticiano, um Monet, um Rembrandt. Jogava com fleuma.


Caminhava com calma, observava do alto de sua condição de habitante de um outro Olimpo e inebriava quem o via. Antevia tudo, as jogadas, os sonhos, os amores. Porque tudo que Marcio fazia por aquele campo era poesia pura. A bola o agradecia

Das arquibancadas de onde eu assistia a tudo isso, consegui ver um sorriso pleno de amante realizada nela, a bola. A pelota procurava por Marcio pelo campo, tal e qual um apaixonado procura por uma rosa improvável pela noite boêmia para presentear a sua amada. A síntese de tudo que acontecia era esta:

Todos ali estavam totalmente apaixonados por Marcio.

 Um craque pleno, no melhor momento de sua vida a realizar o que melhor sabe; Encantar-nos. Vos digo caros leitores:

Não há no mundo dos homens, obra de arte maior do que a camisa 10 de um time de futebol envergada por um craque.

 O craque de bola é um semideus que faz eventuais concessões a nós pobres diabos, de habitar o mesmo espaço que o nosso vez por outra, para nos encher de alegria, de beleza, de festa, de alegria. Por 90 minutos de jogo, Marcio fez isso.

Enquanto a bola rolou, ele, o 10, regeu todos os nossos sonhos. Nos alegrou e fez da vida, algo muito menos duro do que às vezes ela é. Pelo tempo que a bola rolou o mundo segundo os pés de Marcio foi algo bem mais bacana. Que siga assim, Marcio.

Jogue por mais 100 anos…

ARNALDINHO, O ETERNO 8 DO RAMALHÃO

por Marcelo Mendez

Não era fácil a vida em Santo André no ano da graça de 1981.


Meu pai, que a vida toda lutou contra exploradores e ditadores, estava desempregado.

As coisas em casa complicadas, minha mãe tendo que voltar a trabalhar, minha irmã pequena, eu com 11 anos, bem… Eu com 11 anos já dava meu jeito pra me divertir, desde molequinho aprendia na raça que o prazer era fundamental para suportar as durezas e encontrava minha forma em tê-lo. O futebol ajudava:

Era o ano de ver os jogos do Santo André na luta pelo acesso no Campeonato Paulista da segundona daquele ano.

O time era forte e dessa vez tinha até o ex-corintiano Lance, a coisa tava bem perto de acontecer. Mas não era ele que me fazia pedir dinheiro para os meus tios e encher a paciência de um deles para me levar até o Brunão. Era outro meu heroi…

Arnaldinho, eterno camisa 8 do Ramalhão, foi meu primeiro ídolo na vida.


Arnaldinho

Em meio a toda aquela dureza que já me fazia acordar para vida, era Arnaldinho que me devolvia o direito de sonhar. Era com sua velocidade, sua inteligência, sua habilidade e genialidade que aprendi as primeiras noções do que era de fato uma poesia.

Arnaldinho em campo era como um verso que escorre pelo coração, como a poesia que desabrocha no árido do mundo que, diante dele, não consegue mais ser duro. Porque era impossível vê-lo em campo e não sair do mesmo completamente apaixonado pelo 8. Foi um espetáculo.

Na reta de chegada daquele ano, a segundona foi disputada no Parque Antártica. Meu pai, que havia feito uns trabalhos, tinha uma grana para a gente comer por uns dois ou três meses, mas mesmo assim não se fez de rogado em desinteirar parte desse intuito para então levar-nos, eu e minha irmã, para o nosso Palestra Itália para ver aqueles jogos decisivos.

Me lembro como se fosse hoje, da noite em que Arnaldinho meteu a bola para a rede contra o XV de Piracicaba. Não subimos naquela vez, a festa viria uns dias depois contra o mesmo XV. Mas a mim, meu titulo havia sido ganho, o herói meu, o primeiro herói, já havia vencido, foi lindo!

Então, o tempo, essa coisa também linda que é o tempo, passou.


Em 2017, já não sou mais menino, o Santo André não lota mais o Palestra com 25 mil pessoas, aliás, nem existe mais o Palestra, no lugar agora tem a tal da Arena… Mesmo assim, da minha forma ainda insisto. Agora sou jornalista, cubro futebol de várzea e como tal, fui ao campo do Nacional do Parque Novo Oratório para cobrir a Copa Tulica, outro gênio da bola e do Santo André, onde reencontrei Arnaldinho jogando com sua camisa 8, do meu Nacional, pelos veteranos da classe.

A mesma inteligência, a mesma classe, a mesma elegância para tocar na bola… Arnaldinho estava la diante dos meus olhos.

Vendo ele em campo lembrei de tudo aquilo, voltei para 1981, fui menino de novo, revivi um tempo em que eu com a camisa 10 do Nacional, também quis ser Arnaldinho. Lembrei do Pai que não está mais aqui, da mãe que partiu, do quanto eu era feliz com 11 anos e já sabia. Do quanto era bom ver o Arnaldinho jogar.

Pensando nisso tudo, senti que uma lágrima escorria por detrás de meus óculos escuros. O jogo havia acabado e eu chamei Arnaldinho para entrevistá-lo. A teimosa lágrima insistia em escorrer pela minha barba e eu então procurei não deixar Arnaldo perceber isso.

Falamos, gravei a entrevista e quando me despedi dele, deixei que o choro viesse, mas aí não era mais por tristeza nem nada disso. No entanto, faltou eu dizer uma coisa que faço agora, pra encerrar a crônica:

Obrigado, Arnaldinho! Você é Grande!