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claudio lovato filho

O MENINO E O ÍDOLO

por Claudio Lovato


O menino está no estádio ao lado do pai. 

O menino olha para o banco de reservas e não entende por que seu ídolo está lá. 

Não entende por que ele está lá e por que só tem entrado no fim dos jogos, quase sem tempo para tocar na bola uma vez sequer.

 O pai já tentou lhe explicar: “Ele está voltando de lesão”.

Aquelas palavras nada significaram para o menino. Ele só quer ver de novo seu grande herói em campo, fazendo gols, como se acostumou a ver.  

O pai, em outra ocasião, tentou ser didático (“Ele tem um problema chamado fascite plantar”) e chegou a procurar a definição técnica na internet para mostrar ao filho: Inflamação de uma faixa espessa de tecido que liga o osso do calcanhar aos dedos. Os sintomas incluem dor aguda perto do calcanhar.

Para o menino, aquelas palavras também não diziam nada. Coisa nenhuma. Nada, absolutamente nada que se tente explicar hoje fará diminuir o inconformismo e a frustração e a angústia do menino. Ele olha para o banco de reservas e quer de volta a emoção de ver seu atacante preferido, seu ídolo, seu herói, marcar outra vez, apenas isso.

Um dia ele vai entender – um dia; não agora. Um dia ele vai entender que as coisas acontecem na vida simplesmente porque podem acontecer, e que a realidade tem suas imposições.

E que essas imposições da realidade são quase sempre poderosas, volta e meia intransponíveis, mas sempre – sempre, sempre! – passíveis e merecedoras de enfrentamento e persistência, persistência, persistência, persistência, persistência, persistência, e assim por diante.  

O MENINO WAYUU

por Claudio Lovato 


O menino é um índio wayuu de Maracaibo, na Venezuela. Chama-se Juan Francisco Fernández Montiel e quer ser jogador de futebol. O menino wayuu torce pela seleção da Colômbia, mas também gosta do Brasil. Ele mora numa casa pobre na área rural da cidade e fez do pequeno quintal que fica nos fundos dela o seu campo com tijolos que ele imagina traves perfeitas, dignas do Camp Nou.

O menino wayuu tem um chute forte de esquerda. Ele sonha ser como Juan Arango, seu conterrâneo que um dia foi brilhar na Europa. O menino, cada vez que chuta a bola, imagina-se Arango, e, em outras vezes, Cristiano Ronaldo, Messi, James Rodríguez. 

O menino wayuu tem um irmão mais velho chamado Remigio Elías que o protege de tudo e de todos, porque os adversários nesta vida são muitos, mas Remigio prefere o beisebol. Seus ídolos usam tacos e luvas, e ele não entende como o irmãozinho foi gostar tanto de futebol, mas não acha isso ruim, apenas engraçado, e de vez em quando troca uns passes com o pequeno nos fundos da casa.

O pai do menino wayuu, Hugo Cesar, sempre ri quando assiste ao menino jogar futebol; não pelo que o menino faz, mas pelo que ele diz, como se fosse um locutor no estádio, e o pai ri de verdade cada vez que o menino faz um gol, e se lembra (isso é recorrente) de quando ele, Hugo, vivia na Península de la Guajira com seus pais – a Península onde viveu até os 18 anos, até vir morar com tios em Maracaibo, a Península árida e bela, com o céu mais estrelado que uma pessoa pode ver. Em Maracaibo perdeu a ingenuidade, mas conheceu o amor de Mari Carmen, e casou-se com ela depois de ter se tornado professor primário. Pensamentos, lembranças.  

A bola vem e bate na parede ao seu lado, um estouro, uma pequena explosão originária de um arsenal infantil. Leva um susto, já não pensa mais na Península, e, de olhos arregalados, ouve as risadas finas do filho e começa a rir também, e ele faz uma careta daquelas engraçadas, que fazem o menino rir mais ainda, e agora vem a mãe, Mari Carmen, porta da cozinha afora, avisando que o cabrito assado está pronto e pensando em como é bom ver o pequeno Juan Francisco rindo, e o pai dele rindo também, pensa que seria muito bom se seu filho mais velho estivesse com eles, mas Oscar já tem a casa da namorada para almoçar aos domingos (não em todos os domingos, mas em muitos deles), e então eles se sentam para comer na mesa que fica na área externa ao lado da cozinha, sob uma árvore, como gostam os wayuu, e se unem para comer, um com Arango na cabeça, outro com a Península de la Guajira, outra com o filho ausente, mas estão todos felizes, sabedores de que,se perdem algo ou alguém de um jeito, ganham de outro, porque a vida, por mais que às vezes não pareça assim, sempre dá em troca, sempre compensa tudo, é negociadora severa mas justa, tanto é que estão juntos, e isso é o que mais importa para eles, isso é tudo o que importa neste exato momento presente, juntos.                  

NOS OMBROS DO PAI

por Claudio Lovato


O menino está sentado nos ombros do pai.  

O pai está de pé, no primeiro degrau do anel inferior, e o menino olha para o campo, ouve o canto da torcida – coração disparado, olhos arregalados, a incapacidade de compreender tudo aquilo fazendo aumentar seu assombro.

É uma disputa por pênaltis. Instantes antes da última tentativa na série de cinco cobranças. Se o time do pai e do menino mandar a bola lá dentro será campeão. Senão, cobranças alternadas.

O pai fala alguma coisa para o menino, que só o menino ouve. 

Há muito tempo, o pai do menino já esteve nos ombros de seu pai, naquela mesma situação. Ele faz agora com seu filho o que seu pai fez com ele, neste mesmo estádio, há muito tempo.

Mas ele, seu pai, o avô do menino que agora tem o coração aos galopes, nunca teve um pai que o colocasse nos ombros num estádio de futebol. 

O pai do pai começou a ir aos estádios sozinho, por conta própria. No início, pulando muros, passando por buracos em cercas; depois, pulando catracas e então, mais tarde, pagando seu ingresso com o dinheiro suado dos primeiros empregos mixurucas, na companhia dos amigos.

O centroavante do time do pai e do menino corre para a bola.

A cabeça erguida.

O pé de apoio – o esquerdo – bem ao lado da bola, como deve ser. 

O chute seco, rasteiro.

A bola rápida no canto.

O goleiro vencido.

A explosão da torcida. 

A corrida dos jogadores em direção ao centroavante.

O time campeão.

O menino não resiste e chora nos ombros do pai, que pula e pula e pula, sendo agora o menino que nunca deixou de ser; naquele momento, pai e filho são dois meninos.

O pai do menino é um elo mágico, milagroso entre passado e presente, assim como o menino, seu filho, também será um dia. 

Mas agora eles são apenas alegria, pura alegria.

Agora eles são dois espíritos em festa. 

Na verdade, um só.        

MESTRE ÊNIO

por Claudio Lovato


Era um cara simples, como geralmente são simples os caras realmente inteligentes.

Comunicava-se com os jogadores sem demagogia, sem condescendência, papo direto e reto entre uma baforada e outra do inseparável cigarro, sempre com respeito e com um humor que desarmava espíritos até na hora do esporro.

– Ô, negão, da próxima vez que tu fores tomar cerveja, me chama! – disse certa vez, quando era treinador do Cruzeiro, ao centroavante Dinei, depois de uma reprimenda histórica no jogador, que havia chegado para treinar em condições, digamos, precárias, e de um “castigo físico” que envolveu “cabeceios” numa medicine ball (mais detalhes em depoimento do próprio Dinei disponível no youtube).

Era camarada, compreensivo, solidário, mas também sabia ser mais malandro que o mais malandro dos malandros. Demonstrava seu apreço pelos que estavam com ele, mas ninguém o fazia de bobo.

Transportou com sabedoria a vivência e os aprendizados obtidos nos tempos de jogador para a atividade de treinador, iniciada em 1961, no Náutico. Genial dentro de campo e na casamata. Craque da meia-esquerda, campeão gaúcho pelo Renner em 1954, jogador da seleção brasileira campeã pan-americana no México em 56, e, depois, um estrategista capaz de mudar em instantes o jeito de um time jogar.

Gostava do futebol completo: imposição física, disciplina tática e valorização da habilidade individual.


Ênio Vargas de Andrade, nascido em Porto Alegre, completaria 90 anos de idade neste 31 de janeiro de 2019.

Ele está presente na minha memória de futebol desde sempre. Em 1975, na sua primeira passagem pelo meu Grêmio, eu tinha 10 anos, e então, no dia 23 de julho, aconteceu o Gre-Nal dos três gols do Zequinha, no Beira-Rio. Aquele jogo não foi importante para mim apenas na dimensão futebolística. Foi uma experiência de vida, para a vida toda.

Mas foi em 1981 que ele quase me matou do coração, e eu tinha só 16 anos. Foi quando o Grêmio conquistou seu primeiro Campeonato Brasileiro.

Bastava um empate com o São Paulo, no Morumbi. Havíamos vencido o primeiro jogo, no Olímpico, por dois a um. O segundo jogo avançava num zero a zero perigoso. Seu Ênio resolveu tirar o ponta-esquerda Odair e mandar para campo o meia-ponta-esquerda Renato Sá, aos 15 minutos do segundo tempo.

Esta quem me contou foi o próprio Renato numa resenha para o Museu da Pelada, em 2016, em Floripa:

– O Seu Ênio me chamou e disse: ‘Renato, vamos fazer uma correria ali no meio. É o único jeito’.


Cinco minutos depois de entrar em campo, vestindo a camisa 14, Renato Sá viu o lateral Paulo Roberto dominar a bola lá na direita, perto da linha divisória, e se posicionou para recebê-la dentro da grande área do São Paulo. Paulo Roberto lançou a bola daquele jeito que mais gostava: com altura e força. A bola viajou, com Renato Sá acompanhando sua trajetória, muito atento, muito ligado no lance, muito a fim de aprontar alguma coisa, e ela veio, aterrissando na entrada da grande área, e Renato Sá subiu no tempo certinho e cabeceou para trás, mandou a bola no peito de Baltazar, o Artilheiro de Deus, que sem deixá-la tocar o chão mandou um balaço no ângulo esquerdo de Waldir Peres, e isto foi quando eu, na casa de um mano velho, na Avenida Protásio Alves, em Porto Alegre, achei que fosse ter um treco e deixar este mundo na escassa idade de 16 anos.

Um outro Renato, de sobrenome Portaluppi, foi integrado aos profissionais do Grêmio por Ênio Andrade, em 1982. E quantas coisas aprendidas com Seu Ênio ele coloca em prática hoje no comando do Grêmio. É ou não é, Renato?


Ênio Andrade nos deixou em 22 de janeiro de 1997. Faleceu em Porto Alegre.  

Obrigado, Seu Ênio.

Todos nós, e não apenas os torcedores do meu Grêmio, ou do meu arquirrival colorado, ou do Coxa, clubes que conduziste em campanhas nacionais vitoriosas, mas todos nós, que fazemos do futebol algo tão importante em nossas vidas, algo tão essencial, vamos celebrar para sempre os teus feitos, o teu legado.

HISTÓRIAS DE FUTEBOL (E DE VIDA)

por Claudio Lovato 


Foi isto o que o destino me reservou: ser o cara que apaga a luz e tranca a porta.

O último a sair.

O coveiro.

Meu pai foi presidente deste clube duas vezes. Com ele, este clube deixou a obscuridade e permitiu que seus torcedores sonhassem.

Mas os que vieram depois do meu velho não souberam manter a chama alta. Não conseguiram sequer mantê-la acesa.

Então, me chamaram, e eu – o idiota presunçoso – não consegui dizer não. Quis honrar a obra do meu pai, dar sequência ao que ele fez. Mas quem sou eu?

Eu sou apenas o cara que vai apagar a luz, trancar a porta e jogar a chave fora.

O último funcionário do campo da morte.

Foi o que o destino me reservou.

Vou entrar para a história como o cara que não conseguiu.

Acabou. 

********

Os dois homens estão sentados lado a lado na arquibancada do velho estádio. Acabaram de ver seu time perder mais uma.

O homem mais jovem aponta para um torcedor que está alguns degraus abaixo, rasgando a bandeira do clube. Um companheiro se aproxima dele e o impede de completar o que estava fazendo.

O homem mais velho diz ao mais jovem:

– Um daqueles dois apenas perdeu; o outro foi derrotado.

O mais jovem pergunta:

– Quando sabemos se perdemos ou se fomos derrotados?

 – Quando temos dúvida entre uma coisa e outra, então fomos derrotados! – o mais velho então diz.

******** 

Eles se casaram quando ele tinha 23 anos e ainda disputava a titularidade no time pelo qual, menos de dois anos depois, se sagraria campeão continental.

Conheciam-se desde a infância, vizinhos no bairro onde nasceram e onde seus pais nasceram e onde os pais de seus pais nasceram.

Ela disse:

– Vou com você aonde tiver que ir. Vou estar sempre ao seu lado.

E ele respondeu:

– Não tem nada mais importante pra mim.


Hoje, exatos 30 anos depois, estão comemorando o aniversário de casamento jantando no restaurante preferido deles.

Ele não conseguiu abandonar o futebol. Em suas palavras, ajuda “uns garotos que estão começando”. Não gosta de ser chamado de empresário. Não se vê como tal. Quer ajudar os garotos do mesmo jeito que um dia foi ajudado, de um jeito que fez toda a diferença.

E ela… Ela continua com o mesmo brilho no olhar, e a mesma sabedoria serena que ao longo do tempo assegurou que a vida deles, apesar dos percalços inevitáveis a qualquer habitante deste planeta – solteiro ou casado -, fosse essencialmente aquilo que eles sempre quiseram que fosse.

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Foto: Ricardo Chaves/Agencia RBS

Manoelzinho sabe sonhar.

Tem 12 anos e quer ser jogador de futebol.

Manoelzinho é filho de Etevaldo e Vera. São três filhos. Manoelzinho é o mais novo, temporão. Carmen Lúcia e Gilson, os mais velhos.

Os irmãos, volta e meia, trazem para casa algum presente para ele. Sempre alguma coisa relacionada ao futebol: um chaveiro, uma revista, um adesivo, uma caneta.

Manoelzinho sempre fica muito feliz quando recebe um presente desses, e então sonha mais alto e mais forte.

Então se vê mandando uma bola, de canhota – sempre de canhota! – lá na rede, no contrapé do goleiro. E se vê correndo para a torcida, que o adora como a nenhum outro antes ou depois.

Manoelzinho é rei em seu quarto, seu quarto que é seu estádio, e ele, sequer por um segundo, deixa que seu problema – “distrofia”, palavra que ele ouviu seus pais repetirem aos sussurros mais de uma vez -, atrapalhe as coisas. Não mesmo.

Porque ele aprendeu que não existe a menor chance de alguém ser feliz nesta vida sem sonhar.

Ele aprendeu que sonhar é o que leva à liberdade, ao tipo de liberdade que mais interessa.