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America

BELFORT DUARTE, O ‘PAI’ DO AMÉRICA

por André Felipe de Lima


Quando um atleta se torna referência incontestável do esporte, a ponto de seu nome batizar um dos mais importantes prêmios do futebol, sua história deveria ser sempre reverenciada através das gerações. Mas, lamentavelmente, não é isso o que ocorre no Brasil.

Caso exemplar dessa perda de memória social é a trajetória do ex-zagueiro Belfort Duarte, um dos responsáveis pela popularização do futebol no Brasil, no começo do Século XX, e, portanto, um dos maiores desportistas que já surgiram no País.

Em 1946, um prêmio que leva o nome do ex-ídolo do América do Rio de Janeiro foi criado para os jogadores que permanecessem dez anos sem receber nenhuma punição em campo. A premiação, extinta em 1981, foi recriada pela TV Globo e o portal GloboEsporte.Com, em 2008, para ser concedida ao jogador da Série A do Campeonato Brasileiro que obtivesse menos pontos descontados por infrações cometidas durante a competição.

Mas quem foi, afinal, esse atleta exemplar capaz de ser lembrado até hoje como sinônimo de retidão nos gramados?

O engenheiro civil João Evangelista Belfort Duarte foi o primeiro zagueiro clássico do futebol brasileiro. Seu pai, o Dr. Francisco de Paula Belfort Duarte, tribuno, foi o primeiro governador republicano do Maranhão e ministro na Embaixada Brasileira, em Londres.

Belfort Duarte nasceu no dia 27 de novembro de 1883, em São Luís, no Maranhão, mas começou a jogar bola em São Paulo, na Faculdade de Ciências e Letras do Mackenzie College. Na instituição de ensino, fundou, no dia 18 de agosto de 1898, o primeiro time de futebol formado basicamente por brasileiros, o que contrariava a tendência de tornar o futebol um esporte dirigido às elites, portanto “coisa de estrangeiros”.

Formado engenheiro no Mackenzie, Belfort se transferiu para o Rio de Janeiro, em 1907, para trabalhar na canadense The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power (que fornecia iuminação a gás, depois energia elétrica e, além disso, operava diversas linhas de bondes e carris urbanos que funcionavam na Cidade Maravilhosa).

Antes, contudo, o amigo Gabriel de Carvalho, com quem se comunicava constantemente por meio de cartas, narrava a situação na então Capital Federal e o afeto que criou pelo América, um pequeno time de futebol da Zona Norte da cidade.

Gabriel mostrava a Belfort a sua frustração pelo time de seu coração não ter alguém com pulso firme para livrar o clube das crises cada vez mais constantes, que o impediam de igualar-se ao Fluminense, o então todo-poderoso.

“Na tarde de 27 de dezembro de 1907, Gabriel achava-se em seu quarto, na pensão de Dª. Laura Brito, no terceiro andar do nº. 50 da Avenida Central (hoje, Avenida Rio Branco), quando inopinadamente surge à sua frente o amigo, carregado de malas” – escreveram Orlando Cunha e Fernando Valle, pesquisadores da história do América, sobre a chegada de Belfort ao Rio de Janeiro.

O jovem maranhense ambicionava ser jogador do Fluminense, mas, convencido por Gabriel, logo aportaria no time do América. Poderíamos defini-lo como um vira-casaca? Mas Belfort teve motivos de sobra para mudar de rumo. Ou de camisa, como queiram.

Após um jantar com o amigo, convencera-se da gravidade da situação do clube. “O América precisa muito mais de você que o Fluminense”, ponderou Gabriel e, de imediato, sugeriu a integração de Belfort ao clube e uma reunião informal, entre amigos, no Bar do Leme, para convencê-los a aderirem à “causa americana”.

Ninguém resistiu à eloquência de Belfort e decidiram segui-lo. Dias depois, uma assembleia o elegeu capitão do time. E foi com esse estilo pé-no-chão, que o novo comandante da nau proferiu a célebre frase: “O América não recebe nada de graça; tem de lutar para viver”. No ano seguinte, Belfort levou para o Rio de Janeiro muitos amigos que estudaram com ele no Mackenzie: Aquino, Dinorah Assis e Roberto Shalders foram alguns deles que vestiram a camisa do América nos primeiros momentos do clube.

O espírito inovador de Belfort Duarte não tinha limites, e sob essa égide promoveu sua primeira revolução no clube carioca. Traduziu as regras do Inglês para o Português e propôs a troca do uniforme preto e branco pelo vermelho e branco, o mesmo que era utilizado pelo Mackenzie College. Não houve objeção. Do arrojo de Belfort nasceu a mitológica camisa rubra. A decisão foi oficializada no dia 12 de abril de 1908, um uniforme vermelho e a bandeira, semelhante à do Japão (branca, com um círculo vemelho, dentro dele, as letras AFC como vemos hoje no escudo do clube).

Nitidamente, a opção pela cor vinha do amor que Belfort nutria pelo seu ex-time, o Mackenzie College. Já o novo escudo do América, como o conhecemos até hoje, foi criado pelo goleiro Marcos Carneiro de Mendonça, em 1913.

Inovação e fleuma eram marca da personalidade de Belfort. Dizem os historiadores que, em 1909, antes do início de um embate do América, de Belfort, contra o Botafogo, os jogadores americanos saudaram a torcida, gesto então pioneiro que acabou sendo repetido por outros times e se eternizando nos estádios do País. Tudo sob o espírito conciliador do capitão Belfort.

O craque era um político nato. Mas sua altivez fora dos gramados foi muitas vezes confundida com arrogância. Sua palavra, porém, sempre era acatada. Tanto que, em 1908, a sede do clube foi transferida para uma sala na Rua do Passeio, número 56, no segundo andar do prédio Centro Paulista, onde funcionava o Clube dos Boêmios e o carteado – permitido na época por lei – rolava solto.

A nova casa não deu certo. E o capitão, que nem presidente do América era, determinou nova mudança de QG. E foram todos parar na casa do próprio Belfort, na Rua Torres Homem, 279, em Vila Isabel. Mas, com a mudança de residência de Belfort, no final de 1908, a troca da sede também foi inevitável. Tudo foi para o porão da nova casa do Capitão, na Rua Maria José (hoje, Zamenhoff), nº. 63, na Tijuca. Tudo era decidido lá, em 1909. Sempre sob o comando de Belfort. Mas como ele mesmo sempre afirmava, tudo era muito difícil para o América.

Incomodavam-no, por exemplo, os privilégios concedidos pela Liga aos times da Zona Sul. Em face disso, liderou um projeto que fundaria uma nova liga e ergueria um campo na Zona Norte, que sustentaria a dissidência. A ideia do campo, de certa forma, acabou se concretizando, 42 anos mais tarde, com a construção do Estádio do Maracanã.

O projeto rebelde de Belfort não foi adiante. Em 1911, em busca da solução para o impasse do campo de jogo, o clube concretizou parceria com o antigo Haddock Lobo Football Club. Assim, incorporou ao seu patrimônio o terreno da Rua Campos Sales, 118, onde havia a sede oficial do clube, recentemente negociada em função de dívidas. Seria preciso existir um Belfort Duarte para resolver de novo esse problema do América?

Ideia tão ousada só poderia mesmo partir de Belfort Duarte. Mas, por pouco, os dirigentes do Haddock Logo fizeram a parceria com o Sport Club Mangueira, o mesmo que servia de saco de pancadas para os times da Zona Sul, deixando de lado América. Não fosse a habilidade política de Belfort, talvez o América terminasse sua história, ali, no comecinho do Século XX. “O acordo teve, entretanto, consequências inesperadas. Ou não teriam sido inesperadas? Há quem garanta que Belfort tinha plena consciência da armadilha que preparara. O Haddock Lobo não conseguiu resistir ao progresso, cada vez mais envolvente, do América e as fronteiras entre as duas agremiações foram, pouco a pouco, ruindo”, contaram Orlando Cunha e Fernando Valle, no livro “Campos Sales, 118 — A história do América”.

Propuseram a fusão, que Belfort rechaçou, pois o clube teria de trocar o nome. Manteve-se América, em assembleia realizada no dia 17 de maio de 1911 pelas diretorias dos dois clubes. Belfort estava ainda mais forte.

Como assinalaram Cunha e Valle: “Nunca é demais ressaltar a extraordinária sagacidade de Belfort que, em inteligente jogada, conseguiu tudo de que o clube necessitava: campo, sede, bons jogadores e a consolidação do gabarito social”.

O time a ser montado seria um dos mais fortes do futebol carioca. A começar pelo gol. Entre os novos jogadores, o jovem arqueiro Marcos Carneiro de Mendonça, que veio do Haddock Lobo.

O temido esquadrão conquistaria o Campeonato Carioca de 1913. Aliás, no ano do primeiro título, o clube já se mostrava tão grande quanto os da Zona Sul. Se o clube crescia, a autoridade de Belfort, idem. E isso já causava desconforto entre os cartolas.

Alberto Carneiro de Mendonça era o presidente do América, e não concordava com a excessiva autoridade de Belfort, então tesoureiro, que, por sua vez, era avesso a dar satisfações. Não demorou, o caldo entornou durante a vinda da delegação chilena, que disputaria algumas pelejas no Rio de Janeiro. Belfort era favorável aos jogos com os andinos; Alberto, contra. Não houve consenso, mas prevaleceu a palavra de Belfort. E os chilenos vieram.

Alberto renunciou no dia 29 de agosto e, somente no dia 9 de setembro, após assembleia geral, Joaquim Amarante assumiu a presidência com a condição de manter-se no cargo até a chegada dos chilenos, o que aconteceu no dia 15 de outubro. Guilherme Medina substituiu-o, também por pouco tempo. O impasse permaneceu até Belfort publicar a seguinte declaração, em novembro, na imprensa: “Sendo voz corrente que o ‘team’ do América não jogará hoje completo por eu ser ainda diretor, declaro que, ao entrar em campo, não serei mais diretor do clube, no caso do ‘team’ inteiro disputar o ‘match’ de hoje, no campo do Fluminense. É esta uma resolução que tomo, escudado no meu acendrado amor ao América”.

O time não só entrou em campo, como foi campeão de 1913. E Belfort consolidou-se como o maior líder, dirigente, capitão e zagueiro que o clube já teve em toda a sua história.

Ele era o primeiro a chegar aos treinos. “Só desculpava faltas de Marcos de Mendonça porque sabia que o goleiro treinava em casa, com as suas bolas de tênis, com suas laranjas e latas (…). também ele (Belfort) dava o exemplo se matando em campo”.

Essa descrição feita por Mario Filho traduz o estilo de Belfort: líder incontestável. Nasceu para aquilo, ou seja, comandar. Um comando, por sua vez, tratado com ironia, não dos jogadores. Isso, afinal, era inadmissível, mas pela molecada que assistia aos treinos e jogos do América. O sisudo Belfort tinha cadeiras largas, e isso lhe rendeu o apelido de “Madama”.

O calção, escreveu Mario Filho, reforçava a tese da garotada debochada. Era mandão, parecia uma dona de casa ao passar carão nos passivos subordinados. E ai daquele que o questionasse!

Os pesquisadores Orlando Cunha e Fernando Valle relembraram uma curiosa história que se passou com o ponta Gabriel de Carvalho, responsável pelo ingresso de Belfort no América: “Certa vez, durante uma partida amistosa, expulsou de campo seu amigo Gabriel de Carvalho, que, por mero capricho, resolvera tentar uma série de dribles desnecessários. Daí, aliás, o apelido que recebeu – Madame”.

O temperamento do craque não era fácil. Generoso, porém franco, revelava uma vontade incontrolável de vencer, inclusive nos treinos.

Essa alma se estendeu aos seus comandados, como ressaltou Mario Filho: “Um jogador encarnava a bandeira do América, a camisa de ganga (o bom e velho brim, que tingido, ganhou o nome mais pomposo e americanizado “jeans”), bordeaux, de sangue velho. A bandeira, a camisa de Belfort Duarte. Para o time, para a torcida. Só assim o América vencia. Era campeão. Os onze jogadores ouvindo, obedecendo a Belfort Duarte, querendo ser América com ele”. E isso era comum.

Vitti, por exemplo, era um dos jogadores mais confiáveis da lista de Belfort. Dava voltas e mais voltas pelo campo após o treino. Só parava de noitinha, mesmo assim precisava alguém chamar Belfort Duarte para convencê-lo a parar. Vitti e todos os americanos só ouviam – e inapelavelmente – obedeciam Belfort.

Durante um jogo beneficente para angariar fundos para a Cruz Vermelha, enfrentando um time de alemães radicados em São Paulo, o América saiu de campo com um placar favorável de 6 a 1. Mas, em contrapartida, perdeu o zagueiro e capitão Belfort Duarte, que recebera uma bolada no peito. Saiu de campo para não mais voltar.

Os dias passavam, mas as dores por conta da bolada persistiam. Não dava mais para Belfort continuar jogando bola. Cedera à dor física, abandonando definitivamente os gramados, porém não abandonara a vida esportiva, pois atuava como dirigente nos dois Américas, o do Rio de Janeiro e o de São Paulo. Não era a toa que gozava de respeito. Durante uma partida do América, o craque cometeu um pênalti. O árbitro não viu o lance e deixou o jogo prosseguir, mas Belfort foi até ele para avisá-lo do penalty.

A despedida do craque foi na derrota de 4 a 2 para o Flamengo, no dia 11 de julho de 1915.

Por sempre jogar na defesa, marcou apenas 12 gols pelo clube alvirrubro. Deixou os gramados, mas não o América. Foi o treinador da equipe que conquistou o título estadual de 1916.

Quando o comandante do América pendurou as chuteiras, aposentou também a pecha de “Madama”, alcunha desagradável que recebeu por gritar histericamente com os jogadores quando era o capitão (quase dono) do time.

Mas o fato de se transferir para a cidade de Rezende não o demoveu da missão de líder do América. Escolheu Paula Ramos, o novo capitão, como mensageiro de cartas aos craques americanos, que as ouviam como se fosse um “conselho paterno”.

Às vezes, Belfort Duarte aparecia em treinos e em pelejas. Em dia de jogo, silenciava nos primeiros 40 minutos. No intervalo, aparecia no vestiário e dizia o que o agradou ou não. O que falava, era sagrado. “Por isso, todas as tardes, chegando ao América, perguntavam se havia carta de Belfort Duarte. Quando não havia carta nova, Paula Ramos lia, outra vez, a última carta, sempre guardada no bolso, conservada como relíquia”, escreveu Mario Filho. Todos se uniam em torno de Belfort, em torno do América. Os dois eram uma só entidade.

Belfort Duarte, o craque-cartola – Do campo, o craque foi também ser craque na sala da diretoria. E na política esportiva mostrou ser um dos melhores exemplos. Foi responsável pela oficialização das regras do futebol no Brasil. O primeiro a trazer para cá a legislação do esporte bretão e traduzi-la, com a ajuda da esposa, Aída, para a Língua Portuguesa. Trouxe um time estrangeiro para jogar no País, no caso, a seleção chilena. E fez do América um clube para banir o preconceito ao aceitar o ingresso de atletas negros. Partiu dele a iniciativa de criar, em 1915, um campeonato de terceiros times para popularizar ainda mais o futebol no Rio de Janeiro.

Todos esses feitos de Belfort Duarte foram traduzidos na medalha que é entregue ao melhor desportista brasileiro. O primeiro a receber a medalha foi “half-direito” Antonio Motta Espezim (1914–2010), o Tonico, do Coritiba EC, no dia 25 de junho de 1948. Já o primeiro grande craque de Seleção Brasileira a ser agraciado com o prêmio foi Jaime de Almeida, no dia 24 de novembro de 1949. Tal premiação tornou-se cada vez mais escassa devido ao excessivo número de faltas que o futebol passou a ter.

O ex-craque também influenciou politicamente o Palestra Itália, o hoje Palmeiras.

O terreno do Parque Antarctica, que atualmente pertence ao alviverde paulistano, já foi da Companhia Antarctica Paulista de Bebidas, que o alugava, primeiramente ao Germânia, do craque alemão Hermann Friese, e, depois, ao América – braço do América carioca na capital paulista —, que não conseguiu arcar sozinho com as despesas de locação. Em 1917, o clube do Rio de Janeiro fez um contrato de aluguel com o Palestra Itália, que também passou a utilizar o campo para treinar e disputar jogos. Em 1920, o Palestra fez uma posposta de compra do estádio à empresa de bebidas, que não se opôs ao negócio desde que Belfort Duarte, que na época já morava em Rezende, no Pico do Itatiaia, concordasse.

Vasco da Gama Stella Farinello, um dos líderes políticos do Palestra, tomou um trem no qual viajou durante dez horas, até a casa de Belfort. A proposta seria uma ajuda ao América para obter uma vaga na Associação Paulista de Esportes Atléticos, o que não aconteceu porque o América paulista encerrou as atividades meses após o encontro entre os dois dirigentes. Belfort aceitou os argumentos de Vasco da Gama e o Palmeiras, graças ao craque do América e ao cartola Vasco da Gama, ganhou o seu estádio.

O Coritiba também homenageou Belfort Duarte. O estádio Couto Pereira foi batizado inicialmente com o nome do inesquecível craque americano. Reconhecimento justo pelo que Belfort representa para a história do futebol brasileiro.

O América crescera, e o craque foi se afastando aos poucos do clube, mas sem mágoas. A figura altiva e dominadora não cabia mais naquele cenário.

Vítima de uma gripe muito forte (há quem diga tuberculose), Belfort refugiou-se em seu sítio, no distrito de Campo Belo, município de Rezende, interior do Estado do Rio de Janeiro. Afinal, todo o cuidado era pouco, pois a temida gripe espanhola, uma epidemia que matou milhões de pessoas no Brasil e um terço da população mundial, acabara de chegar por aqui.

Na estada em Campo Belo, na região de Itatiaia, no sul fluminense, o ex-ídolo do América foi assassinado por Antonio Monteiro de Sá Freire devido a uma briga por posse de terras, segundo o testemunho de sua filha, Mary.

Como descreveu reportagem do jornal “O Imparcial”, Sá Freire era o zelador do núcleo de fazendas da região de Itatiaia. Quando fazia uma inspeção, constatou que Belfort estava construindo uma cerca que contrariava as normas de administração do local. Sá Freire o repreendeu. O ex-craque ofendido, iniciou uma áspera discussão com o zelador. Sentindo-se acuado, Sá Freire sacou sua arma. Bastou um tiro para que Belfort Duarte tombasse na terra, deixando-a banhada de sangue.

Após o crime, Sá Freire desceu de Itatiaia até Campo Belo e entregou-se à Polícia, alegando ter agido por legítima defesa. “O morto ha muito que era colono do Nucleo e apezar de ser cavalheiro distincto, era malquisto pelos seus vizinhos devido às contendas que com elles mantinha”, descreveu “O Imparcial”. Mas o mesmo jornal mudou de opinião dias depois: “As primeiras noticias fornecidas à imprensa desta capital sobre o bárbaro crime de Itatiaya, deturparam propositalmente os factos, com o intuito de facilitar a defesa do assassino (…). Com effeito, desde logo ressalta a má-fé de taes informações, que emprestam ao Dr. Belfort Duarte, grande antipathia em relação aos colonos de Itatiaya, quando é sabido que o distincto ‘sportman’, portador de excellente cultura, era geralmente estimado em todas as rodas sociaes aqui como naquelle recanto fluminense”.

O jornal frisou que Sá Freire estava empolgado com a ideia de “mandonismo”, embora o núcleo de terra nada mais tinha de influência do poder público.

Mais adiante, a reportagem destaca que Sá Freire, na manhã do crime, segundo parentes do algoz de Belfort e de outras testemunhas, vociferava que deveria matar alguém. “Effectivamente, o Sr. Sá Freire, que assim se expandia, armou-se de revólver, carregando, nos respectivos pentes, 18 balas e horas depois, esbarrando seu cavallo à porta da chácara do Dr. Belfort Duarte, o chamou, com voz alterada, como quem intima”.

Belfort Duarte, que estava no quintal, atendeu ao chamado de Sá Freire, que o teria proibido de colher inhame para os porcos. Belfort ponderou que o legume colhido prejuízo algum causaria à fazenda. Sá Freire e Belfort intensificaram a discussão e o desfecho foi o mais trágico possível.

Belfort Duarte morreu no dia 27 de novembro de 1918, no dia em que completava 35 anos. Na trágica ocasião, lenda ou não, há testemunhos de que estaria vestido com a camisa rubra do América. A diretoria do clube tentou trazer o corpo do ídolo para o Rio de Janeiro, mas o estado de decomposição do cadáver já estava bastante adiantado. Às 8h, Belfort Duarte foi enterrado na pacata Campo Belo. Tombou brigando, exatamente como sempre fez pelo seu querido América.

UMA NOVA CASA COMO PRESENTE DE 115 ANOS

por Robson Aldir

Um clube de futebol vive de suas relações sociais, todos nós sabemos. São amizades, graus de parentescos e seriedades que são firmados ou aprofundados em torno de uma única paixão; o chamado esporte bretão. Mas no Rio de Janeiro há um caso ainda mais especial nas relações de afetividade, e isso é bom exaltar numa época em que o afeto anda um pouco em baixa no nosso cotidiano. Trata-se do América Football Club, para muitos o Mequinha, tratamento carinhoso, diga-se de passagem; e para outros tantos o Mecão, tratamento dado pelos conhecedores dos pilares do futebol brasileiro. O América desperta tanto carinho Brasil a fora que chega a comover, e isso tem um motivo bem pitoresco: ele é o pai de todos os Américas. O país tem diversos clubes de futebol com esse nome graças, claro, ao desbravador Américo Vespúcio e ao continente batizado com o nome dele. Porém, não há dúvidas, em se tratando de intituições de futebol, esses clubes, alguns bem populares como o mineiro e o de Natal, fazem homenagem ao “diabo” do Rio de Janeiro por ser o mais antigo e o mais iluminado de todos. Este verbete merece uma explicação diante da confusão geral do pensamento nacional atual. O simpático time da Rua Campos Sales, na Tijuca, tem esse apelido associado não ao antagonista do todo poderoso do céu e da terra, mas sim a traquinagem, a travessura, e a saudável molecagem de rua. Era um time de jovens travessos e os mais antigos da época diziam que eram “os garotos encapetados”. Nunca teve nada a ver com questões religiosas. Feito o esclarecimento, voltamos à crônica informando que neste texto você vai encontrar muitas vezes os subtantivos/adjetivos diabo, capeta, capetinha e enbiabrado sem qualquer conotação religiosa.

Esclarecida a relação de afetividade nacional do América, temos que aprofundar também os motivos da relação de carinho dos cariocas com este clube ante rivalidades tão acirradas na própria praça que abriga ainda grandes massas em torno de Flamengo, Botafogo, Fluminense e Vasco. O grande jornalista João Máximo defende uma tese que parece ser próxima da realidade. Ele diz que no coração acolhedor do carioca sempre coube mais de uma paixão. Algumas protagonistas, outras complementares, mas sempre paixões. O América é isso, é o complemento com total aceitação. Os corações cariocas são divididos pelo protagonismo dos quatro grandes, porém todos têm o América como complemento e sem rejeição. Na verdade, esse sentimento que une esses milhões de corações no Rio de Janeiro se revela uma gigantesca demonstração de afetividade explícita, talvez jamais vista no futebol do Brasil. O América é o grande irmão dos cariocas.


(Foto enviada por Robson Aldir)

Esse grande irmão está passando por uma profunda transformação atualmente. Aliás, é a terceira tentativa histórica de resgate. A primeira aconteceu na virada dos anos 60/70 do século passado quando o lendário estádio da rua Campos Sales foi entregue a uma contrutora para um empreendimento imobiliário. Em troca, o diabo teria recursos para a montagem de um grande time. Um acanhado estádio foi contruído no bairro do Andaraí para abrigar o time endiabrado, mas a tentativa não foi próspera. Anos depois, a direção decide ceder o espaço do Andaraí para a contrução de um shopping em troca de um novo estádio na região de Édson Passos, na Baixada Fluminense, iniciativa que também não atingiu o sucesso esperado. Agora, a famosa sede da Rua Campos Sales foi demolida para dar lugar a um moderno shopping. A promessa é de uma nova sede social no terraço deste futuro centro comercial, reforma completa do estádio Giullite Coutinho, e quitação total da dívida do clube. O Museu da Pelada, plataforma de construção da memória do futebol brasileiro, esteve no local e registrou a transformação. Com erros e acertos, com críticas ou apoios, fica sempre a torcida para que desta vez dê certo. O início das obras do shopping e da nova sede celebra o aniversário de 115 anos do “capetinha” da Tijuca. Além da celebração, fica também um alerta às autoridades públicas, aos dirigentes esportivos da Federação do Rio e da CBF, e à imprensa esportiva para que o resgate deste símbolo do futebol e da cidade aconteça com consistência. A flagrante decadência do Rio está gerando terríveis incômodos na própria população e o levante de um símbolo tão cercado de afeto pode ser o deflagrador para uma virada maior.

Finalizando, eu cito o compositor Djalma Sabiá, fundador da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro: “Se o bairro da Tijuca fosse uma nação e tivesse uma bandeira, esta teria as cores vermelha e branca por causa dos seus maiores símbolos: Tijuca Tênis Club, Salgueiro e América”.

 

LUISINHO LEMOS, O DOS GOLS ENDIABRADOS DO AMÉRICA

por André Felipe de Lima


De Andrada a Renato, goleiros que se notabilizaram no futebol carioca na primeira metade dos anos de 1970, a opinião era unânime quando perguntavam a todos qual o centroavante mais perigoso do momento: “Luisinho Lemos. Ele é um demônio. Corre, zanza, fustiga, chuta e cabeceia”. Que time não o queria no comando do ataque? O América foi o mais sortudo. Lusinho é, sem dúvida, o melhor centroavante da história do querido Alvirrubro, que voltou à primeira divisão carioca tendo como treinador o próprio ídolo.

Irmão de César “Maluco” Lemos e de Caio Cambalhota, Luisinho foi campeão da Taça Guanabara, em 1974; da Taça Rio, em 1982, e do Torneio Campeão dos Campeões, também em 82, defendendo com extrema devoção e amor as cores do seu querido América. Foi um jogador que não fugia do pau. Se o América tinha alma, ela se chamava Lusinho. Sem ele em campo, os gols escasseavam. Os números não mentem. Foram pouco mais de 300 gols que o consagraram como o maior artilheiro da história do clube da rua Campos Sales, na doce e incomparável Tijuca.


Quem deve ter lamentado muito foi o Fluminense, que o dispensou ainda juvenil. Telê e Pinheiro o treinaram. Luisinho “jogava” como ponta-direita. O “jogava” é entre aspas mesmo. Na verdade, jamais entrou em campo pelo tricolor. Apenas treinava. Foram dois anos (1968 e 69) infrutíferos. Por pouco não deixou para trás a ideia de ser jogador de futebol. Acabara de ingressar do serviço militar. Porém, jogando pelo time do Exército, a sorte parecia acenar para ele. Alguém do Vasco o viu batendo uma bolinha e queria levá-lo para São Januário. Lusinho topou, mas sob uma condição: manter-se amador. Talvez por receio de sofrer a mesma decepção que teve nas Laranjeiras, o jogador atuava apenas pelo time de aspirantes do Vasco, e com ele foi terceiro colocado da categoria em 1970.

Vendo que a situação do irmão não era fácil no Vasco, César o levou para o Palmeiras. No clube paulista, Lusinho tornou-se profissional, mas permanecia sem espaço. Como barrar o irmão, centroavante como ele e ídolo da torcida? Perambulou de forma fugaz pela Ferroviária. Voltou ao Parque Antarctica e, após uma transação com os cartolas palmeirenses, o César ficou com o passe do irmão, emprestando-o, em seguida, ao América.


Enfim, Lusinho teve o futebol reconhecido. Brilhou intensamente. Era tão ídolo quanto Edu, o irmão do Zico. O Flamengo o queria a todo custo, e conseguiu o passe do cabeludo e barbudão goleador. Pagou um cifra milionária. “Era dinheiro pra burro”, reconheceu Luisinho, que chegou à Gávea para formar dupla com o próprio Zico. Deu certo. Marcou 82 gols em 183 jogos. Média excelente. Mas não se sentia à vontade na Gávea. Certa vez, disse o seguinte ao repórter Lédio Carmona: “Os gols no América são muito valorizados. Aqui, nós marcamos um gol e somos considerados heróis. No Flamengo, por exemplo, o artilheiro faz três gols em um jogo e assim mesmo é fuzilado”.

Com a chegada de Cláudio Adão à Gávea, Luisinho foi perdendo espaço. Difícil para ele reconhecer que no Flamengo foi pouco valorizado apesar dos muitos gols que marcara. Afinal, desde garoto torcia pelo rubro-negro. Deu de ombros, superou a desilusão e seguiu seu rumo de volta ao América para levantar mais taças e marcar muito mais gols. Lá o valorizavam. Lá era ídolo incontestável. Lusinho já não era mais torcedor do Flamengo. Batia no peito o coração vermelho… vermelho do seu amado Mecão.

Luís Alberto da Silva Lemos, nasceu no dia 3 de outubro de 1951, em Niterói. Ah, o apelido “Tombo” nasceu como contraponto ao “Cambalhota”, do irmão Caio, e o América assim construiu o seu gigante artilheiro. A inesquecível legenda Luisinho Lemos.

SORRIR É O MELHOR REMÉDIO

texto: Marcos Vinicius Cabral | foto e vídeo: Guillermo Planel | edição de vídeo: Daniel Planel

– Alô, é da casa do País? – perguntei com receio de ter ligado para o número errado.

– Sim, é da casa dele. Quem está falando? – perguntou uma voz feminina.

– Aqui é o Marcos Vinicius, do Museu da Pelada.

– Oi Marquinhos, vou chamá-lo, mas ele está muito triste. Um instante – disse dona Maria Lúcia, sua esposa, sem dar tempo de perguntar o motivo da tristeza.

– Oi amigo, é amanhã que a gente vai pegar minhas fotos? – me indagou uma voz aveludada. 

– Isso mesmo, estou ligando para avisá-lo que amanhã às 14h, irei te pegar com a equipe do Museu da Pelada, para irmos no Largo do Machado buscar seu álbum digitalizado, como prometido.

– Amanhã te espero e obrigado pelo que estão fazendo comigo! – exclamou sem saber o real motivo da nossa ida à cidade maravilhosa.

 – Ok querido, “tamu junto”! – me despedi respeitando sua tristeza.

Na manhã seguinte, na sexta-feira (16), ao ir trabalhar, fiquei imaginando quais motivos deixariam o grande goleiro País tão para baixo a ponto de não mostrar a mesma alegria que nos recebera, no início do mês, quando estivemos em sua casa, fazendo uma entrevista com ele.

Diferentemente daquele dia, percebi que algo estranho estava presente por trás dos minúsculos óculos, que escondiam a tristeza em seu olhar.

Parei o carro em frente ao número 4.497, na rua Marajó, no Boa Vista, liguei o pisca alerta do veículo e fui tocar a campainha de sua casa.

Ao abrir o portão, dona Maria Lúcia, sua esposa há 43 anos, me disse para ter um pouquinho de paciência com ele, pois estava muito emocionado com a partida do Bil, com quem conviveram por 12 maravilhosos anos, desfrutando da mais sincera lealdade numa amizade.

– Marquinhos, o Bil morreu ontem e estamos arrasados – disse com lágrimas nos olhos.

Dei um abraço nela e tentei passar uma energia boa com a perda, mesmo ainda sem saber quem era o Bil.

Antes de entrar no carro, cheguei o banco do carona para trás – por ter quase dois metros de altura – imaginei que seus joelhos ficariam encostados no painel e isso lhe causaria um incômodo desnecessário.

Ao entrar no carro, recebi do País um abraço tão apertado, que com a emoção destinada naquela ação, conseguiu destravar o cinto de segurança que havia colocado ao me sentar para dirigir.

Demos tchau em um ato ensaiado, e pegamos a BR-101, sentido Rio de Janeiro.

Liguei o rádio na 97,5 (Melodia) e coloquei bem baixinho esperando pelo ex-arqueiro do América-RJ puxar assunto, já que sempre limpava os óculos que estavam embaçado pelo choro incontido, pela lembrança do Bil.

Fomos até a subida da ponte, sem trocar uma palavra.

O sentimento era de um silêncio fúnebre, enlutado pela tamanha perda.

Ao chegar no vão central da Ponte Presidente Costa e Silva, popularmente conhecida como Ponte Rio-Niterói, liguei para o cinegrafista Guillermo Planel, que estaria já nos esperando com o (suposto) álbum digitalizado.

Entre gaivotas dando rasantes e alternando belos mergulhos, naquele magnífico céu azul com sol refletindo nas águas da Baía de Guanabara e reluzindo nos vidros dos carros a nossa volta, País observava com olhos marejados e atentos, tipo criança quando vai a algum lugar pela primeira vez. 

Depois de quase 20 minutos sem trocar uma palavra sequer, nossa parada técnica – termo usado para designar uma pausa nas partidas de futebol e também hidratar os atletas – foi com um comentário que hidratou a partir de então, nossa conversa.

 – Sabe de uma coisa, Marquinhos? Certos animais não deveriam morrer nunca. E o meu cachorro era um deles – desabafou o goleiro, que iniciou a carreira profissionalmente em 1971 e assumiu a camisa número 1 do Mequinha em 1974.

Concordei, balançando a cabeça positivamente e tentando estancar aquela dor, que era igual a de 1977, quando o presidente do América-RJ, senhor Wilson Freire Carvalhal, se negou a vendê-lo para o Atlético de Madrid, após uma atuação épica na vitória por 1 a 0, dentro do Vicente Calderón (na época, chamado de Manzanares), no torneio Teresa Herrera.

– Hoje eu vivo com uma aposentadoria que dá para sobreviver mas se eu fosse vendido para fora, estaria em melhor situação – confidenciou.

Contudo, se no final da década de 70, a chance de fazer a independência financeira não se concretizou, restou como consolo ser um dos melhores goleiros do Brasil, sendo inclusive, posteriormente, convocado por Cláudio Coutinho para a seleção brasileira que iniciava a preparação para a Copa do Mundo na Argentina, em 1978.

Mas se nossa conversa se restringiu a fatos tristes, chegando no Largo do Machado, uma surpresa o esperava.

Sem revelar a verdade – pois ele acreditava que iria buscar o material dele com fotos, recortes de jornais e revistas todo digitalizado – ele estava sendo aguardado pelos ídolos rubro-negros e seus companheiros no Fla-Master, Adílio e Júlio César Urigeller, no consultório do nosso querido Dr. Lulinha, para iniciar seu tratamento dentário.

Portanto, chegando lá, foi recebido com todo carinho e voltou a mostrar para os que o conhecem, o sorriso, que ao lado de sua generosidade, são duas marcas características do grande ser humano que é. Sua dor deu lugar a um respiro, ainda que fraquinho, de alegria pela surpresa e esse respiro ínfimo me encheu da mais pura alegria, ao ver novamente o sorriso bonito do nosso número 1.