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UMA COISA JOGADA COM MÚSICA – 1

17 / março / 2023

por Eduardo Lamas Neiva

Capítulo 1

Eis aqui um bate-papo à mesa da eternidade em que vivem personagens dos dois maiores cronistas de futebol de todos os tempos, com algumas participações especialíssimas que serão reveladas ao longo desta longa e divertidíssima e emocionante conversa, recheada de músicas que contam, cantam e tocam de primeira a História do esporte mais popular do mundo no Brasil. Aqui, o tempo é ilimitado. João Sem Medo, Sobrenatural de Almeida, Ceguinho Torcedor e Idiota da Objetividade marcaram um encontro no restaurante-bar Além da Imaginação.

O garçom que os recebe e participa da animada conversa é Zé Ary, nome recebido pelo pai, “seu Barroso”, que fora um fanático torcedor rubro-negro, em homenagem a dois ilustres artistas que torciam fervorosamente para o Flamengo: José Lins do Rêgo e Ary Barroso. Por isso, todos acham que Zé Ary é flamenguista, mas quase ninguém sabe ao certo, só João Sem Medo, pelo menos é o que se deduz. Seu time o garçom não revela, mas é, sim, um apaixonado por futebol e música, principalmente músicas que falam de futebol.

João Sem Medo chega primeiro, fazendo seu cumprimento característico a conhecidos e desconhecidos: dois dedos à testa com breve movimento para frente. Senta-se a uma das mesas, reservada especialmente para eles, já com as quatro cadeiras dispostas, e pede algo para beber. Zé Ary o serve.

Garçom: – “Seu” João Sem Medo, é um prazer imenso receber o senhor novamente aqui no restaurante. Fique à vontade, por favor.

João Sem Medo: – Grande José Ary Lins Barroso! Meu camarada Zé Ary, muito obrigado. O prazer é todo meu.

Garçom: – Que isso, seu João! O senhor é sempre muito bem-vindo. Há quanto tempo!

João Sem Medo: – Muito tempo mesmo não voltava pra essas bandas. Mas acompanho tudo, tudinho. Então, me diga aí, teu time ganhou hoje? (garçom faz que não com um gesto) Ih, de novo? É, rapaz, a coisa tá mal parada. Se continuar assim, a vaca vai pro brejo…

Garçom: – Nem me fale, “seu” João. E a nossa seleção?

João Sem Medo: – Meu amigo, nosso jeito de jogar futebol era único no mundo. Mas hoje em dia tem muito jogador de cintura dura dando chutão e canelada por aí. É uma correria só. Então, fica mais difícil pro técnico escolher. Perdemos muito da nossa ginga, o drible. Ainda há alguns muito bons, mas já não são tantos como antes. Quase não tem mais peladas nas ruas, em campinhos de terra batida. Eu não vejo mais isso. Você vê?

Garçom (faz que não com a cabeça): – Joguei muita bola na rua, “seu” João. Fui até atropelado uma vez.

João Sem Medo: – Verdade?

Garçom: – Não foi nada demais, apenas um susto. Mas havia mil campinhos pra jogar também…

João Sem Medo: – Hoje, onde tem campo é quase tudo de grama sintética. E a garotada que vai pros clubes mal consegue dominar a bola direito.  A especulação imobiliária, os condomínios construídos pra tentar isolar as classes média e alta da violência, e também a tecnologia, expulsaram a garotada das peladas de rua. Acabaram os campinhos de terra.

Garçom: – É verdade. No meu tempo era difícil um garoto que não gostasse de jogar bola…

João Sem Medo: – Antigamente, quando o garoto era meio fresco, não gostava de se sujar jogando futebol ou brincando de qualquer outra coisa, todo arrumadinho, a gente dizia que ele soltava pipa em frente ao ventilador e jogava bola de gude no carpete.

Garçom (rindo): – Um tempinho atrás faziam isso tudo no computador, agora é no celular.

João Sem Medo: – Ó, Zé Ary, tô esperando uns amigos pruma resenha boa. Eles vêm de mais longe, por isso demoram um pouco mais.

Garçom: – Eu tô sabendo, “seu” João! O papo vai render…

João Sem Medo: – Dizem que a melhor coisa que existe no futebol é o gol feito pelo time que se torce. Talvez seja. Mas eu acho que o melhor de tudo é o papo.

Garçom: – Também gosto muito.

João Sem Medo: – O papo depois dos jogos conserta qualquer coisa, ganha o jogo perdido, enaltece o perna de pau, reduz o valor da estrela da partida, enfim resolve qualquer parada. E quando o papo é meio sobre a ignorância, ainda assim é bom, porque às vezes resulta em boas brigas. O papo é a vida do futebol. Quem é que gosta de ir aos jogos sozinho? Ou mesmo de escutar pelo rádio (ou assistir pela TV) sem ter alguém para comentar?

Garçom: – Por isso, o senhor foi o comentarista que o Brasil consagrou.

João Sem Medo: – O comentário pra mim era como um bom papo sobre futebol na mesa de um bar. Os músicos confirmaram?

Garçom: – Os músicos já estão sabendo e prepararam um repertório especial pra acompanhar a resenha.

João Sem Medo: – Muito bom. Hoje o repertório somos nós que vamos ditar. Quero que eles agradem à moçada que vem aqui hoje.

Garçom: – Tá bom, “seu” João. Ainda tem o nosso aparelho de som e o telão também pra mostrar uns vídeos. Daqui a pouco os músicos chegam. Um deles me contou que o futebol e a música brasileira tiveram um início muito parecido. Era música e futebol de branco, cintura dura?

João Sem Medo: – Isso mesmo. Era futebol pra inglês ver e jogar. A música…

Garçom: – Ah, é verdade que o senhor é primo do Tom Jobim?

João Sem Medo: – É, por parte de mãe.

Garçom: – Ele vinha muito aqui. Gostava muito do “seu” Tom.

João Sem Medo: – A turma dele tinha um papo muito intelectual, gosto mais da linguagem do povão… No início, a música tocada no Brasil era toda da Europa: polca, valsa, erudita… Mas aí, os negros foram entrando e deram o batuque, a ginga. O chorinho nasceu dessa mistura. Era tão elitizada e preconceituosa a coisa que era proibido tocar samba. Bom, fomos o último país a abolir a escravidão, você sabe. Aliás, pelo que tenho lido, ainda existe lá na minha terra, o Rio Grande do Sul. Mas não só lá, claro.

Garçom (faz que sim com a cabeça): – Vou ligar o som enquanto os músicos não chegam.

Zé Ary põe um LP na antiga vitrola do restaurante ainda com aspecto de novinha em folha. Toca  “Só se não for brasileiro nessa hora”, de Galvão e Moraes Moreira.

João Sem Medo: – Que coisa, linda, Zé Ary? 

Garçom: – É o Moraes Moreira cantando, nos tempos dos Novos Baianos. Do disco Novos Baianos Futebol Clube. Ele prometeu vir mais tarde tocar um pouco pra nós também.

João Sem Medo (prestando atenção na música e apreciando): – Muito bom. (e cantarola baixinho): – “Só se não for brasileiro nessa hora. Só se não for…”.

FIM do Capítulo 1

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4 Comentários

  1. Anthony Ferreira

    Que maravilha

    Responder
    • Eduardo Lamas Neiva

      Muito obrigado, Anthony! Sexta-feira que vem tem mais. Espero que possa acompanhar a série. Abs.

      Responder
  2. Mauricio Capellari

    Uma viagem no tempo, talento puro!

    Responder
    • Eduardo Lamas Neiva

      Agradeço demais, Mauricio. Volte sempre. Abs

      Responder

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