O FUTEBOL TEM DESSAS COISAS
por Jorge Roberto Martins
“Ai daquele que se fizesse de besta e não se livrasse logo da Carmela”
Ele não chegava aos limites de jogar com a faca entre os dentes, tão pleno de próteses que era. Mas era seguidor da máxima “Fora da área não é pênalti”. Aí então… ai daquele que se fizesse de besta e não se livrasse logo da Carmela (era assim que Cardosão tratava a bola, ciumento dela que só ele!) em uma prudente distância da linha da grande área. Vez por outra arriscava-se a algumas “investidas” área adentro do adversário. Que desastre! Coitado do alambrado.
A cada uma dessas investidas, seu Anastácio, secretário-geral, colocava as mãos na cabeça. Sabia que seria inevitável a compra de material para recompor o coitado do alambrado, vítima das tais investidas. Mas que não tirassem do nosso atleta a espontaneidade ou se fizesse algum comentário, digamos, desairoso. Vaia então era prenúncio de tragédia. A jiripoca cantava pra valer! Cardosão era pau puro quando “azucrinado”.
Não se veja, porém, o nosso Cardosão como ser intratável. Não, isso não. Ele tinha lá suas esquisitices, mas quem não as tem? Até o Gentil Cardoso (lembram dele, um paizão pros jogadores?) às vezes rodava a baiana. Voltemos ao Cardosão.
O nosso impávido zagueiro de área e arredores era, vez por outra angelical, outra por vez impávido mesmo. Começou nas divisões de base do seu querido Halitol Sem Filtro, clubezinho que tinha uma modestíssima sede no final da rua Japiranga no aprazível Paquequara, bairro da Zona Norte da cidadezinha de Sarapitomba. O campo era regularmente aparado por Mocinha, uma cabrita parideira que só ela. Paria mas dava conta desta tarefa que ninguém pediu mas que ela se obrigava a cumprir, além de parir, naturalmente.
“Mocinha era assim-assim com Cardosão”
Mocinha era assim-assim com Cardosão. Não podia vê-lo que se assanhava toda. O assim-assim era recíproco. Para que se tenha idéia de tamanha reciprocidade, certa vez, numa pelada de sábado, daquelas em que mal é dada a saída e a turma já coloca os bofes pra fora, Mocinha levou uma bolada bem abaixo dos chifres, no centro dos olhos. Tadinha, cambaleou e caiu durinha. Foi um corre-corre que só vendo. Cardosão desesperado. Vou fazer respiração boca-a-boca! Tá maluco, cara? Preciso salvar Mocinha. Esquece, Cardosão, esquece.
Não é que Cardosão chegou aos prantos? Mas por pouco tempo, pois Mocinha já se recuperava, abria os olhinhos voltados para quem? Pois é. Os dois ficaram ali naquela chimbação até que Dona Efigênia, a dona da birosca da esquina, mandou ver: “Vamos acabar com essa esculhambação aí, ainda mais esse mela-mela de uma cabrita com um… com um…”. Preferiu não terminar.
Terminemos. Cardosão levou Mocinha pra casa. Quem foi junto?, adivinhem. Isso mesmo, Dona Efigênia que no final do expediente costumava sair de fininho da birosca em direção à casa de Cardosão, a quem na intimidade, soube-se depois, tratava-o de “minha fofurinha”. Não combina com Cardosão, mas “c’est l’amour“. Useira e vezeira a comadre Eugênia.
Os três, em volta de mesa da sala de jantar, fartaram-se com a sopa de jaca. Mocinha tomou-a todinha, e de canudinho, que Cardosão cuidava dela com desvelo hamletiano. Ao final do rega-bofe, expressão que ele usava exageradamente (gabava-se por achar nisto um sinal de erudição, junto com o hamletiano, claro), foram todos pra varanda. A noite estava linda, cheia de estrelas. Ali ficaram um bom tempo. Sem que Mocinha percebesse, Dona Efigênia começou a bolinar Cardosão, primeiro com a ponta dos pés, depois foi-se chegando mais perto e começou a roçar o seu joelho nas coxas de Cardosão. Mocinha, tadinha, nada percebia. Pudera, um bando de pulgas que passeava pelo quintal resolveu dar um pulinho na varanda e… Novamente, tadinha de Mocinha…
“Voltaram quarenta minutos depois: Cardosão, cheio de manchas roxas no pescoço”
Cardosão, já um pouco nervoso, deu três tossidas, Dona Efigênia idem, e os dois foram saindo de fininho. Voltaram quarenta minutos depois: Cardosão, cheio de manchas roxas no pescoço; Dona Efigênia, com cara de paisagem. Felizes os dois, e Mocinha, sabe-se lá como e por que, arrepiou-se toda, suspendeu as orelhas e latiu amorosamente. Faro canino, ora. Havia algo no ar.
CADÊNCIA PRA CRAQUE
Adil de Paula, o “Zuzuca”, é o criador de um dos bordões mais populares do samba.
“Festa para um rei”, mais conhecido como “olêlê, olálá, pega no ganzê, pega no ganzá”, foi o samba do Salgueiro campeão de 1971 e hoje embala craques e torcidas no mundo inteiro.
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Confira a letra original:
Festa Para Um Rei Negro (pega No Ganzê)
Nos anais da nossa história
Vamos encontrar
Personagem de outrora
Que iremos recordar.
Sua vida, sua glória,
Seu passado imortal
Que beleza
A nobreza do tempo colonial.
Ô-lê-lê, ô-lá-lá,
Pega no ganzê,
Pega no ganzá.
Hoje tema festa na aldeia,
Quem quiser pode chegar,
Tem reisado a noite inteira
E fogueira pra queimar.
Nosso rei veio de longe
Pra poder nos visitar,
Que beleza
A nobreza que visita o gongá.
Ô-lê-lê, ô-lá-lá,
Pega no ganzê,
Pega no ganzá.
Senhora dona-de-casa,
Traz seu filho pra cantar
Para o rei que vem de longe
Pra poder nos visitar.
Essa noite ninguém chora,
E ninguém pode chorar
Que beleza
A nobreza que visita o gongá.
Ô-lê-lê, ô-lá-lá,
Pega no ganzê,
Pega no ganzá
A PELADA À FANTASIA DE NILTON SANTOS
A “Enciclopédia” Nilton Santos em três momentos de descontração no Carnaval.
A MINHA PELADA DA ILHA
Por Nilton Santos (* texto extraído do livro “Veteranos do Zumbi”)
“Em 1965, quando já não jogava mais futebol profissionalmente, andei fazendo algumas partidas pelo time de uma colônia de pesca da ilha, o Z-1. Numa dessas, conheci o pessoal do Zumbi e eles me convidaram para fazer parte dessa pelada.
Primeiramente, fiz questão de pedir alguns esclarecimentos: onde eles jogavam, como eram as regras do jogo e, um item importante – eu só joguei na defesa para ganhar dinheiro e, já que estava voltando para Ilha, teria que jogar no meio campo para frente. Além deles concordarem com essa minha exigência, me ganharam logo quando disseram que lá não tinha juiz. Todos apitavam e prevalecia o bom senso. Assim comecei a fazer parte da pelada da Ilha, depois pelada do Zumbi.
Os jogos eram aos sábado, às quinze e trinta, e não tinham hora para terminar. Só acabavam quando já era noite e a gente não enxergava mais a bola. Eu chegava cedo na Ilha, passava na casa do Franz, na do Gato e na do Udinho e, juntos, íamos comer um peixe frito com um caju amigo lá na Freguesia, outro bairro da Ilha. Eu sempre tinha o cuidado de chegar antes do horário previsto. Primeiro, por respeito aos outros, e depois por não querer que eles abrissem um precedente para mim, tendo que fazer uma substituição para que eu pudesse jogar. Dizia sempre a eles que ali, eu não era um campeão do mundo e sim um simples peladeiro. Tinha que conseguir a minha própria vaga.
O campo era num terreno baldio, ao lado da casa do Huascar. Toda vez que a bola caía na casa dele um gritava: “olha o que você fez, Huascar” (que era para mãe dele não brigar). Depois fomos jogar no campo do Cocotá, mais tarde no campo do batalhão Humaitá, dos Fuzileiros Navais. Hoje em dia (*), a pelada continua, agora com a direção do Mario Duarte e a supervisão do Jorge Ferreira, na área de lazer da Varig, com nome mais sofisticado de Veteranos do Zumbi.
Nós ficávamos sentados no campo conversando, dando tempo para que todos chegassem e a pelada pudesse começar. Como eu havia parado de jogar recentemente é claro que todos ficavam mais a minha volta, curiosos com as histórias do futebol profissional. Ao final, e era o melhor da pelada, os times, vencedor e perdedor, se confraternizavam num barzinho tomando uma cervejinha com tira-gosto, com exceção do querido e saudoso Biguá – zagueiro – que só tomava leite gelado. O Biguá era baixinho, forte e troncudo. Não era muito determinado e chutava muito forte. Por isso,foi apelidado pelo Hugo Gambá de “toco de amarrá burro”. Quando ele estava perdendo e a pelada acabava, ele sempre dizia: – acabou? Logo agora que eu ia fazer o meu gol? – Nós podemos jogar até amanhã de manhã que o seu gol não vai sair, respondia o Hugo, puto, gaguejando: – “mais qui… mais qui ele não joga nada. Mais qui .. mas qui ele é um toco de amarrá burro”!
Outro fato formidável era o duelo dos irmãos Franz x Irineu. Eles só gostavam de jogar um contra o outro. Eram muito habilidosos e por terem consciência disso disputavam pau-a-pau o troféu de quem é o melhor. Mas se, por acaso, algum de nós tocasse em um deles, o outro imediatamente deixava de ser adversário para ser o maior defensor da raça.
Turma dos Veteranos do Zumbi em época de Carnaval!
Sábado de carnaval, fazíamos uma pelada à fantasia. Todos jogavam vestidos de mulher. Me lembro que o Paulinho Russo vinha sempre de Carmem Miranda. Ele era baixinho e vinha vestido com uma mini saia, uma bem criada barriga de fora,colares e maquiagem. Um turbante sensacional, bem espalhafatoso, complementava seu traje. Eu me vestia, na maioria das vezes, por ser mais fácil, de havaiana, colocando duas laranja para formar o busto. Os mais novos, em geral, nunca apareciam nesse dia. Eu costumava dizer que era porque eles não se garantiam.
Nessa pelada, como em todas da Ilha, existiam grandes jogadores que não chegaram a ser profissionais mas jogavam muito bem. Vale a pena ressaltar que na pelada da Ilha existia uma mistura muito grande. Tinha médicos, engenheiros, oficiais militares, pescadores, advogados, operários, não importava, todos tinham em comum o gosto pelo futebol.
Por eu falar demais dessa pelada, o Geraldo Romualdo, do Jornal dos Sports, um dia propôs fazer uma matéria comigo na Ilha. Fomos no meu carro e ele ia registrando tudo o que acontecia. Depois de pegar o pessoal da pelada e passarmos na Freguesia para comer um peixe, chegamos ao campo. Passado um pouco, fui a um matagal que tinha próximo ao campo e ele perguntou o que eu fazia lá. Respondi que estava trocando o calção. Geraldo ficou indignado e disse: – você é muito cínico, é um campeão do mundo, como é que pode jogar num campo desse e trocar de roupa no mato? Eu apenas ri. Como podia fazer diferente, se lá não tinha vestiário?
Nós podíamos levar convidados e eu sempre levava alguém. O Pampolini foi uma vez comigo e ficou por lá durante muito tempo. O Chico Anísio e o Paulinho da Viola também passaram por lá várias vezes. O Espezim Bermuda Neto, que foi comentarista da Rádio Globo e mais tarde juiz de futebol, era nosso companheiro também. Só que na pelada ele era goleiro. O Bob, que jogou comigo no Botafogo, foi e ficou. O Brito era outro que nas férias do Vasco sempre ia lá. Enfim, tinha o grupo dos permanentes e o grupo dos esporádicos.
Ao longo desse tempo, presenciei várias alterações nas equipes – algumas vezes, porque as pessoas saíam do Rio para outras cidades e até para o exterior, como foi o caso Franz, na Argélia; outras vezes, por problemas de saúde e também por simples renovação. O legal é o espírito do grupo: primeiro jogam os pais que vão aos poucos, trazendo os filhos. Depois, os genros, que, por sua vez, trazem os amigos. Assim, vão se perpetuando as amizades e uma pelada maravilhosa. Prova disso, foi a chegada do Cação, (com o Jorge Ferreira ainda jogando), trazendo depois o genro Manoel, o Fernando e o Xerife. O mesmo aconteceu com o Jonjoca, que trazia o Ratinho só para distribuir as camisas e as bolas, mas quando faltava alguém ele entrava para jogar. E, coitado, nunca conseguiu agradar. A derrota do time era sempre culpa do Rato. Todos esses, de quem me lembrei aqui, eram rapazes, meninos perto de muitos de nós. Mas sempre respeitavam a todos, chegavam a chamar alguns de senhor. O Cação com o Jorge, era um fato à parte, muito engraçado. Toda vez que o Cação pegava a bola, o Jorge gritava: – vai Cação, meu filho! ou – Boa, Cação, meu filho! Ele ficava danado e a gente se divertia com o Jorge. Uma vez o Cação chamou o Hugo, com todo o respeito, de Seu Gambá… – mas qui, seu gambá???
Depois vieram o Pedrinho Tostão, o PC, sei lá se estou confundindo a ordem, mas a ordem dos fatores não altera o produto. O importante é que lembro de cada um de uma maneira. Pela característica de jogar, por ser um amigo mais próximo, por ter me ajudado a sair de alguma enrascada, enfim do jeito carinhoso e saudoso que tenho para cada um deles. Ao final do ano sempre havia uma festa de confraternização e os chefes do comitê organizador eram o Zé do Armarinho e o Jorge Ferreira. Mais tarde veio o Mario Duarte, que passou a fazer parte também dessa comissão hoje assumida integralmente por ele. Em 1983, quando eu disse que ia sair do Rio para Uberaba, eles organizaram uma homenagem linda para mim, fizeram inclusive uma camisa especial com o meu retrato estampado. Convidaram o Gérson Canhotinha e o Pampolini – que jogaram -, o Zizinho e o Sabará que foram apenas para me homenagear. Ao final da pelada, tivemos um jantar com discurso e tudo, quando ganhei um troféu, que é uma bola, com o logotipo da pelada, fazendo uma declaração de amor para mim:
“Mestre Nilton: hoje eu realizei o sonho de todas as bolas do mundo: ser só tua para sempre. Obrigada, meu amor”.
A pelada da Ilha, como sempre prefiro me referir, ao invés de Veteranos do Zumbi, foi muito importante para mim. Trabalhava a semana inteira esperando o sábado chegar, ir para a Ilha, jogar, brincar e rever os amigos. Hoje ela é a agradável lembrança de um tempo maravilhoso que infelizmente passou. O que ficou foi apenas a recordação carinhosa dos que já se foram e a amizade dos que permanecem vivos. Mesmo aqueles que, como eu, estão afastados dos Veteranos do Zumbi somente fisicamente.
Quando posso vou visitar o pessoal lá no campo da Varig. Chego a levar um susto quando pergunto: quem é aquele ali? E alguém me diz: é o filho do Carlinhos, ou o filho do Mario, ou filho do Manoel, do Fernando. É, essa vida não nos deixa mesmo esquecer que envelhecemos. Noutro dia, eu estava jogando com o filho do fulano. Hoje, os filhos é que são os pais.”
A NOVA CARA DO MENGÃO
por Sérgio Lobo
Nosso colaborador top de linha, Sérgio Lobo, o Lobinho, esteve no Bar do Adão (salve, Rominho!!!) para resenhar com José Ricardo Mannarino, de 44 anos, que se apresentou ao mundo do futebol, há uma semana, vencendo o Corinthians nos pênaltis, em pleno Pacaembu, na final da Copa São Paulo de Futebol Junior, e conquistando o terceiro título do Flamengo na competição. Zé Ricardo tentou ser jogador profissional, mas foi como treinador que seguiu no futebol. Primeiro, no futsal, onde sempre trabalhou com meninos e jovens promissores, e depois no campo, onde conseguiu com a conquista da Copinha, o principal título da carreira. Equipes organizadas, com passes precisos e valorizando sempre a posse da bola são características de times comandados por Zé Ricardo, que no papo com o Museu da Pelada fez questão de destacar os peladeiros espalhados por aí. Confira:
OS MIGUÉS NOSSOS DE CADA DIA
por Marcelo Vieira
Nos dias que antecedem e sucedem o carnaval – e outros feriadões parecidos – o brasileiro se dedica a uma arte verdadeiramente nacional: dar o migué. Materializam-se atestados que alegam doenças crônicas, infecções virulentas e outros males do corpo e da alma. Antepassados ressuscitam só para serem falecidos de novo nessas datas. Há notícias de quem tenha matado a mesma avó oito vezes em um intervalo de quatro anos.
A prática do migué, que não se restringe apenas a faltar ao trabalho – pode ser um corpo mole, pipocar na hora de rachar a conta, deixar marotamente aquela louça para outrem lavar e por aí vai -, ganhou esse nome a partir da contração da expressão “dar uma de Miguel”. Mas a pergunta é que Miguel é esse??? Provavelmente é Dom Miguel, irmão de Dom Pedro I, que se aproveitou da ausência do irmão mais velho, que estava curtindo uma de imperador no Brasil, para casar com a sobrinha e usurpar o trono português. Mas, país afora, há muita gente que jura ter conhecido o Miguel que deu origem ao termo – seria um músico, um pinguço ou um boleiro, dependendo da versão.
Como tudo que é preferência nacional, o migué encontra no futebol sua mais genuína expressão. Boleiros de norte a sul, da série A até a Z, valem-se dele para evitar cartões (sair de perto e fingir que o negócio não é contigo), reverter laterais (bate rapidinho e segue o jogo) e, claro, fazer cera. Porém, a mais pura expressão do migué futebolístico é fingir ou exagerar na gravidade de lesões. Tanto que esse ramo específico da malandragem ganhou um nome de DNA completamente futebolístico: chinelinho.
Temos então que aquele jogador, supostamente contundido, passa a frequentar o centro de treinamento calçando os indefectíveis chinelos de dedo em vez das chuteiras ou tênis. O chinelinho pegou geral e extrapolou as quatro linhas, os estádios e o universo esportivo. Hoje em dia, em muitas regiões do país, tirar férias, entrar de licença médica ou qualquer folga fora da rotina virou “calçar o chinelinho”. É a pátria de chinelos.
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E o seu boleirês? Como anda? Clique aqui e contribua com o acervo de termos futebolísticos do Museu da Pelada!