A RAPOSA ENGOLIU A ZEBRA
por Pedro Redig, de Londres
“Dilly ding, dilly dong”, opera, rap, elogios de políticos, pizza, batata frita, frio de menos 135 graus, chuva e calor. Foi assim que o Leicester chegou ao glorioso título de campeão inglês, botando os gigantes da Premier League no bolso.
O arrogante José Mourinho, despedido durante a temporada pelo Chelsea e queridinho da mídia esportiva inglesa, dá lugar ao irreverente Claudio Ranieri.
É um triunfo duplo e inédito nos 23 anos da divisão de elite. O italiano venceu o primeiro campeonato nacional depois de 29 anos e o Leicester faturou o primeiro título em 132 anos de existência.
Antes dos “Foxes”, como são apelidadas as “raposas”, o último time a vencer pela primeira vez foi o Nothingam Forest em 1978. O triunfo do Leicester já rendeu amistosos contra os poderosos e milionários PSG e Barcelona e o clube agora pode agora surpreender na Liga dos Campeões.
O milagre do romano Ranieri, comparado ao imperador César e ao poderoso chefão, começou na verdade no fim da temporada passada. Depois de passar 140 dias na lanterna, o time então comandado por Nigel Pearson arrancou sete vitórias nos últimos nove jogos para escapar de fininho do rebaixamento.
Por conta disso, o Leicester era cotado a 5000 por 1 libra para ser campeão este ano. Quem apostou 100 libras, teve direito a meio milhão, ou seja R$ 2,5 milhões de reais. O sucesso no campo virou um tremendo prejuízo para as casas de jogos.
Da noite para o dia, o clube passou a 12º mais rico da Inglaterra e ficou em 24º lugar do ranking mundial. O Leicester gastou um total de £52,8 milhões de libras para montar o time campeão – menos do que o Manchester United pagou apenas para ter o atacante frances Anthony Martial. O título vai render ao clube um mínimo de £150 milhões de lbras, cerca de £750 milhões de reais.
“Dilly ding, dilly dong” foi o jeito que o impagável Ranieri encontrou para manter os jogadores na ponta dos cascos nos treinamentos. Quem tivesse meio distraído, ouvia este som de campainha berrado pelo treinador de 64 anos que também levantou a moral do time bancando pizza para todos os jogadores.
– Eu sou um cara que pensa e não um maluco – desabafou Ranieri depois de conquistar o título com duas rodadas de antecedencia. “Dilly ding, dilly dong, nós estamos na Champions League,” emendou o italiano todo feliz.
O Leicester não gastou quase nada mas comprou muito bem em relacão ao rivais que desembolsaram centenas de milhões sem conseguir superaro modesto clube da regiao central da Inglaterra conhecida como Midlands.
O artilheiro Vardy e o meio-campo Mahrez custaram juntos £1,5 milhão. O atacante foi pescado de uma liga semi-amadora em 2012 e o argelino veio do Le Havre da segunda divisão francesa. Mahrez começou a ganhar fama atuando em peladas num estacionamento em Paris e está agora na mira do Real Madrid.
Outra peça-chave foi o frances Kanté, festejado como o melhor volante da Premier League. Isso sem falar no goleirão Kasper Schmeichel, herdeiro da categoria do pai Peter, considerado por muitos como um do melhores goleiros de todos os tempos. O capitão Morgan também foi destaque num time em que a maxima era “um por todos, todos por um.”
A façanha do Leicester mereceu elogios do novo presidente da FIFA Gianni Infantino e do primeiro ministro inglês David Cameron com palmas no Parlamento e um deputado de cachecol azul e branco – as cores do novo campeão.
O jornal ‘The Guardian’ publicou na primeira página um poema como se o rei Ricardo III tivesse fazendo uma elegia ao Leicester. Os mais supersticiosos acreditam que o restos mortais do monarca inglês enterrados na cidade há pouco mais de um ano foram o talismã que faltava para o Leicester.
Cantores de rap locais encheram a bola de todos os jogadores, um coro festejou a glória do time em ritmo de gospel e o tenor Andrea Bocelli abriu a festa da entregada taça com uma interpretação emocionada de “Nessun Dorma”, vestido com a camisa do Leicester.
Depois de 139 dias na liderança, o Leicester recebeu o troféu ao final de uma goleada de 4 a 1 sobre o Everton na penúltima rodada. A festa teve batata frita de graça para a galera debaixo das cadeiras. Foi o presente de um patrocinadorno estádio onde o Brasil jogou e ganhou da Jamaica por 1 a 0, gol de Roberto Carlos, em 2003, numa seleção que ainda tinha Ronaldo no comando de ataque.
O ‘enorme’ chefe da torcida e tocador de bumbo fez um strip tease para mostrar um baita escudo do clube tatuado nas costas. O torcedor do clube e veterano artilheiro Gary Lineker não cumpriu a promessa de aparecer de cueca no programa “Match of the Day” que apresenta, mas a imagem dele quase peladocirculou nas redes sociais. A direção do programa da BBC esclarece que Lineker prometeu aparecer no ar de cueca na primeira rodada da próxima temporada em agosto.
São muitos os segredos para uma conquista tão especial e uma das armas do Leicester foi um compartimento que é uma espécie de sauna ultra gelada capaz de produzir um frio de até 135 graus negativos. O choque térmico serve para recuperar os músculos e a energia dos atletas no intervalo entre os jogos.
Com a coroa do troféu na cabeça, Ranieri confessou que começou a acreditar que o sonho era possível quando perdeu de 2 a 1 com 10 jogadores mas deu um calor no Arsenal – o único time que venceu o Leicester duas vezes no campeonato.
– Jogamos com o coração, nao quero acordar e sim continuar sonhando – confessou Ranieri.
Para ele, os favoritos de sempre falharam porque não mostraram a mesma consistência do Leicester. Desde a fundação em 1992, aPremier League só teve cinco campeões: Manchester United, Chelsea, Arsenal, Manchester City e Blackburn Rovers.
O Leicester agora pode fazer história na Europa. Assim como o Atlético de Madri, usa a tática dos boxeadores que absorvem os golpes, mas são capazes de ‘matar’ o adversário com um simples contra-ataque. O time inglês derruba o mito de que domínio ganha jogo.
Com menos posse de bola, chutes a gol, sofrendo mais e marcando menos gols por jogo do que a maioria dos outros campeões da Premier League, a raposa que engoliu a zebra vai em busca de novas presas.
Na base do bom humor, brincadeiras e muita solidariedade, Ranieri conquistou os jogadores e fez o mundo do futebol acreditar, espantado, que o impossível às vezes acontece. Parabéns aos novos campeões.
O Futebol é cimento, o do chão e o da alma
por Paulo Junior, do ABC Paulista
Cimento. Deve ter um ano, eu li numa entrevista de um jornal português com o escritor brasileiro Sérgio Rodrigues. Cimento. O repórter perguntava se o futebol era bom ou ruim para as relações familiares. E o Sérgio respondeu que era o cimento principal das primeiras alianças entre pais e filhos (cada vez mais mães e filhas também, ele ressalta) pequenos. Cimento. Nunca havia pensado numa expressão melhor.
Cimento porque está lá, estável, velho, desgastado, com aspecto duvidoso, mas estável, cimentado, oras, da forma que passou pelos últimos anos todos e suportará tantos vários outros domingos em que a família se reconhece na saudade do camisa 10 que não existe mais, na raiva uníssona direcionada ao goleiro frangueiro que passa pela chaleira do café, rebate no encosto do sofá e reverbera na tela da televisão, no rádio que vai sendo abafado pelo calor do banho.
E aí vem um cineasta na faixa dos 40-50, duas décadas sem ver o pai na mão e uma nostalgia de Pacaembu na cabeça, com uma ideia dessas, que pega lá no cimento: radicado na Espanha, Sergio Oksman convida o pai para assistirem a Copa do Mundo juntos, perambulando por São Paulo, e gravando um documentário deste mês de reencontro.
O Futebol, filme que acaba de vencer o Festival É Tudo Verdade e está em cartaz em circuito comercial (Caixa Belas Artes, em São Paulo), tem uma sensibilidade rara. Simão, o pai, é um senhor que ainda trabalha duro, bom de papo, rabugento na medida certa, nostálgico de escalar o Palmeiras da primeira vez com o filho no estádio ou de desafiar, de boteco em boteco, alguém que tenha mais memória futebolística que ele: quem foi o árbitro da final do Paulista do Quarto Centenário?, quero só o árbitro do jogo, quem?
Sérgio, diretor e filho, conduz tudo com paciência e carinho, sugere sem invadir, documenta bancando uma narrativa imprevista, que faz chover no reencontro no Estádio Municipal, que traz a doença em plena chegada do fatídico 7 a 1, que tem como cimento segundo – do primeiro já falamos – o do cinema, o da vontade do idealizador em fazer cinema, independente de questões outras.
Sem heróis nem romantismo, O Futebol é a vida como ela é, um almoço de domingo lembrando derrotas do Palmeiras. Umas mais doídas, mais surpreendentes que outras, principalmente quando remetem à primeira sola do pé, ainda pequeno, no chão frio do quintal.
O CRAQUE GLAMOUR
por Zé Roberto Padilha
Sou daquelas pessoas que deveria todos os dias passar pelas portas das igrejas, templos, sinagogas, entrar e agradecer. Seja virado para Meca ou Jerusalém, tenha a Bíblia, o Evangelho Segundo o Espiritismo ou o Alcorão às mãos, levantar as mãos para os céus e dizer: muito obrigado! Era um bom ponta esquerda, o Beto bom de Bola por aqui, mas que quando cheguei para fazer testes, aos dezesseis anos nas Laranjeiras, tinha Betos bons de bola às pencas. De Friburgo, Teresópolis, Mesquita, Campos e Muriaé. Fui treinando, me esforçando, abrindo mão de uma adolescência que pouco vivi fora da minha rotina de dormir cedo, não fumar ou beber, disputar a pole na subida das Paineiras com o Edinho, Toninho Baiano e o Pintinho. Muitos amigos trirrienses foram treinar no Rio. Dispensados, voltaram debaixo de um vaia silenciosa, que os marcaria para o resto da vida. Tinha vergonha desta volta, e treinava, treinava, treinava. Alcançar o título de campeão carioca juvenil, em 1970, nos ajudou a ficar. Como o Fluminense, por ser campeão, foi a base da seleção sub-20 que disputou o sul americano e o Torneio de Cannes, em 1971, fui convocado junto ao Nielsen, Abel, Marinho, Marco Aurélio e Rubens Galaxe. Campeões, na volta, encontrei o Zagalo treinando o profissional. Achou meu falso ponta parecido com o falso ponta que exerceu, e me lançou aos 19 anos contra o América, no Maracanã. Com isto, assinei meu primeiro contrato e alcancei meu sonho: ser jogador de futebol profissional. Mais que isto: do meu time de coração.
“E quando ele chegou de Marselha, eu estava ali, caneta, chuteiras e uma folha de papel para pedir um autógrafo de um tricampeão do mundo.”
Mas teve mais bênçãos para agradecer: jogar três Taças Guanabara seguidas ao lado de três monstros sagrados do nosso futebol. Em 1974, ao lado do Gérson, 1975, com Rivelino, 1976, coroando com Zico. Mas faltava o toque da cereja. Faltava conhecer um gênio de perto. E quando ele chegou de Marselha, eu estava ali, caneta, chuteiras e uma folha de papel para pedir um autógrafo de um tricampeão do mundo. Tinha tempo. Concentrávamos no Hotel Nacional, disputamos o Torneio de Paris, ganhamos a Taça Guanabara, o estadual, relaxei, fui deixando, e não peguei o autógrafo até hoje.
“Paulo Cézar Caju foi o craque mais glamouroso que conheci.”
Paulo Cézar Caju foi o craque mais glamouroso que conheci. A elegância com que deslizava pelo lado esquerdo, cabeça erguida e uma bola que não desgrudava dos pés, era acompanhada fora de campo por um bom gosto jamais visto nos campos de futebol. Trouxe da França, onde jogou por quatro anos, um guarda roupas que não havia na Bibba. Nem na New Man ou na Windsor, as lojas que ditavam as tendências em Ipanema. Chegava num Puma branco conversível para treinar, e o perfume que usava pós treino era tudo que Arnaldo Guinle sonhou um dia a aromatizar seu nobre clube, ao erguê-lo com arquitetura inglesa, vitrais franceses, ao lado do palácio onde sua família morava. E quando a falta era na entrada da área, ele cobria a barreira com uma elegância que aos Andradas, Wendell, Renatos, só restava olhar. Pular para quê?
“Muita arte, bom gosto e sensibilidade junto a uma bagagem que poucos alcançaram, era normal que PC tivesse uma biografia diferente dos outros ídolos.”
Muita arte, bom gosto e sensibilidade junto a uma bagagem que poucos alcançaram, era normal que PC tivesse uma biografia diferente dos outros ídolos. O céu e o inferno passaram ao seu lado, e sempre foi e será assim quando um negro ousar ascender socialmente no país. Millor Fernandes disse um dia, para refletirmos: “O Brasil não tem racismo porque o negro conhece o seu lugar”. Paulo Cézar Caju, meu ídolo, tratou ele mesmo de construir o seu lugar.
O bêbado e o bandeirinha
Jornalista e pesquisador preocupado em preservar a memória do futebol, o craque Roberto Assaf deu a sua primeira contribuição para o Museu da Pelada. Assaf conta uma história divertidíssima que ocorreu no Estádio Ítalo Del Cima, em Campo Grande, no Rio de Janeiro. Enquanto cobria uma partida entre Fluminense e América, o jornalista e todos presentes no estádio perceberam um torcedor visivelmente embrigado xingando o bandeirinha de forma incansável, do início ao fim do duelo. O mais curioso é que o tal torcedor não torcia para nenhum dos dois times e não estava nem aí para futebol.
O dia em que quase desejei ser vascaína para agradar ao meu pai – mas ele preferiu que eu fosse eu mesma
por Hérica Marmo
Houve um tempo em que eu achava besteira ter que torcer pro mesmo time do pai. Filha de uma botafoguense e de um vascaíno, minha primeira rebeldia foi me apaixonar pelo Flamengo. Logo o Flamengo. A ovelha-negra da família, dizem os primos alvinegros fanáticos. Ovelha rubro-negra, devolvo vidrada nas cores que me fascinam. Não foi capricho. Nem acaso. Apenas era muito complicado para os meus 6 anos só poder torcer para o Zico quando ele vestia verde e amarelo. Driblei o conflito interno e simplifiquei: meu time seria o que contasse com aquele camisa 10.
Na adolescência, quando o tema ainda era um tabu em casa, convenci meu pai a me levar pela primeira vez ao Maracanã. Em pleno domingo de clássico, propus a aposta que jamais poderia pagar: “Se seu time ganhar, eu viro Vasco”. Ele respondeu com uma piada que guardava um simbolismo que nem imaginávamos: “Não quero que você vire Vasco. Quero que você continue sendo Hérica”. Mas, empolgado com a excelente campanha do seu clube, que terminaria campeão brasileiro naquele 1989, resolveu pagar pra ver. “Vai que, né?”, deve ter pensado… Não deu… Quando subi as escadas e me deparei com a lindeza daquela arquibancada vermelha e preta, chorei de alegria e pertencimento. E rezei pra não perder a aposta. Recordar é viver: Bujica ouviu minhas preces, fez dois gols, ganhei uma camisa na saída do Maraca e nunca mais precisei esconder a minha paixão.
Meu pai pareceu levar na boa as duas derrotas. A partir daí, viramos rivais declarados. Mas, enquanto em mim o encanto pelo meu time só crescia, ele se envolvia cada vez menos com o dele (“Enquanto Eurico Miranda mandar, não quero saber de Vasco”, prometia). Mesmo assim, na contramão das estatísticas, eu me tornei minoria em casa: uma solitária rubro-negra contra dois vascaínos (meu pai e minha irmã) e dois botafoguenses (minha mãe e meu irmão). Acima de tudo, quatro fervorosos membros da torcida arco-íris. Não havia vitória do Vasco ou do Botafogo que os mobilizasse mais do que uma derrota do Flamengo. Quando o assunto era futebol, pegar no meu pé era o maior prazer da família.
Movida por essa certeza, comentei uma vez com o meu pai: “Você até gosta que eu torça pro Flamengo, né? Porque você adora implicar comigo quando eu perco”. Para a minha surpresa, ele desfez seu quase permanente sorriso e confessou com profunda tristeza: “Não, eu preferia que você torcesse para o mesmo time que eu”. Meu coração ficou pequenininho, mas já não tinha condições de voltar atrás.
Foi ali que entendi que herdar a paixão futebolística do pai não é besteira. Invejei todos os meus amigos que foram ungidos com essa benção. E fiz um acordo comigo mesma: se um dia tivesse um filho, eu o deixaria torcer para o mesmo time do pai, ainda que eu não tivesse competência para casar com um seguidor de Zico.
No papel de filha, consegui aplacar parte dessa frustração na Copa de 1994. Eu já morava em outra cidade e assisti aos primeiros jogos com os amigos da faculdade. Mas, quando Romário e cia chegaram à final, decidi ver o último jogo em casa. Meu desejo secreto: comemorar um título com o meu pai. Minha preocupação ainda mais secreta: meu pai se emocionar tanto com a vitória do Brasil e ter um infarto. Na minha cabeça maluca, eu tinha que estar lá para evitar que isso acontecesse. No momento em que Baggio chutou a bola pro alto, porém, o que fiz foi me jogar no pescoço do meu pai pra gritar junto com ele: somos campeões!!! Pela primeira vez, campeões ao mesmo tempo! Choramos abraçados e, se o coração dele realmente não aguentasse tanta emoção, a culpa teria sido toda minha.
Graças a Deus, salvo a minha neurose, ninguém estava doente. Com apenas 51 anos, meu pai gozava de plena saúde. O coração generoso, felizmente, continua batendo forte, agora, quando meu herói completa 73 temporadas de riso fácil, otimismo e respeito ao próximo.
Com a simplicidade de quem trocou a escola por uma boleia de caminhão, meu pai me ensinou que não precisa pensar igual para conviver bem com alguém. O futebol, claro, não foi o único campo da vida em que vestimos camisas diferentes. Mas em todas as vezes em que escolhi a arquibancada adversária, ele manteve o espírito esportivo. E eu aprendi a ter também.
Pai, desculpa pelo Flamengo e pelas outras decisões que causaram frustração. E muito obrigada por sempre me incentivar a ser tudo o que eu quis ser. Se o mundo fosse feito de mais pais como você, talvez não houvesse tanta demostração de ódio e intolerância por aí… Obrigada, obrigada, obrigada! Te amo!
Seu Ary e o seu sorriso indefectível