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O ARRASTÃO

Por Sergio Pugliese


Os amigos da pelada, no Canaveral. Emir (em pé),  Flávio Bigode, Eduardinho, Albertão Ahmed e Vico.

Os amigos da pelada, no Canaveral. Emir (em pé),  Flávio Bigode, Eduardinho, Albertão Ahmed e Vico.

Ninguém suporta mais tanta violência na cidade. São arrastões, balas perdidas, brigas de trânsito, falta de respeito generalizada. Numa dessas resenhas, a equipe do Museu da Pelada ouviu uma história que poderia ter virado tragédia, mas se transformou num caso tipicamente carioca, envolvendo boleiros. 

O papo no carro era divertido. Também pudera, Albertão, Tico Tico e Shrek juntos garantem boas risadas, animam qualquer rodinha, prolongam qualquer conversa. Albertão estava mais afiado do que nunca!

– Se velocidade ganhasse jogo, o Bolt seria convocado para a seleção – implicou com Tico Tico, pontinha arisco.

De família árabe, Albertão Ahmed é craque, joga fácil e tem cacife para fazer suas críticas. Paraibano de Quipapá, Tico Tico poderia ter o estilo dos velhos pontas, tipo Mauricinho, Nilton Batata e Joãozinho, do Cruzeiro, porque dribla bem e chuta forte, mas falta o tempero. E o carioca Shrek….bem Shrek é um bom motorista e mesmo assim tem recebido multas além da conta. Quando Albertão iniciava mais uma frase de efeito, Shrek freou bruscamente.

– Ferrou, arrastão!!!!! – gritou Tico Tico, enquanto tentava esconder seu meio metro de corpo sob o banco do motorista.

– Dá uma ré rápida, ô roda presa – ordenou Albertão.

Shrek e Tico Tico deveriam funcionar como seguranças de Albertão, empresário de sucesso. Precavido, muitos carnês para pagar, ele ainda contava com duas outras feras, Serginho e Enágio, num carro na retaguarda.

– Como vou dar ré se esses dois pregos estão colados na minha traseira? – reclamou Shrek.

Em segundos, cinco homens cercaram os carros. Com fuzis e fisionomias apavorantes, mandaram todos descerem. Tico Tico preferiu esconder seu canivete sob o tapete do carro. Parecia que Albertão passara Super Bonder na carteira. Ela não desgrudava de sua axila por nada e precisou Enágio arrancá-la e entregá-la aos bandidos.

– Esquece Betão, não te pertence mais!

– De que lado você está, paraíba desalmado? – disparou Betão, fulo da vida.

Um dos homens chegou a apontar a arma para o empresário.

– Calma, rapaziada, esse homem é o nosso ganha pão!!! – suplicou Enágio, meio-campo estilo cachorro em mudança.

Os bandidos entraram no carro e sumiram na Avenida 24 de Maio. Era fim de tarde e Albertão ficou encarando o quarteto, cabisbaixo, trêmulo. De repente, lembrou-se de algo e gritou:

– PQP, meu tênis estava no carro!!! Meu tênis!!!! Meu tênis!!!! – berrava, enquanto sentava-se, desolado, ao meio-fio.

Os quatro sabiam da loucura do patrão pelo tênis Nike preto, 46, comprado em Madri, encaixe perfeito, difícil encontrar igual no Brasil. Só sob encomenda. E no dia seguinte, cedinho, ele tinha uma pelada apostada com Guido, estrela do Caldeirão do Albertão. Valia cerveja e churrasco. Foram para a delegacia com Albertão choramingando “meu tênis, meu tênis!”….. Ele não estava preocupado com o carrão, dinheiro e roupas levados pelos gatunos. O tempo o ensinou a dar valor às pequenas coisas da vida. Bon vivant, passara por altos e baixos, já havia sido o rei do Hippopotamus, aprontado na alta sociedade e perdido amigos na fase das vacas magras. Hoje, bem de vida, prefere curtir os filhos, a pelada e os pastéis do Bar do Adão, do parceiro Rominho.

– Hilux localizada no Méier!!!! – gritou um policial, no fundo da delegacia.

– Prenderam os safados? – quis saber Tico Tico.

– O que foi, virou macho agora projeto de pigmeu? – ironizou Albertão.

Voaram para o local!!!! Mas para desapontamento de Albertão, o par de tênis não estava na mala.

– Merda!!!!!!!!!! – gritou para espanto do policial.

Aquilo não ficaria assim e, dono de gráfica, levou todos para a empresa e mandou imprimir centenas de cartazes oferecendo recompensa a quem devolvesse o par de Nike.

– O Disque Denúncia não vai acreditar quando ouvir essa – resmungava Serginho enquanto colava um cartaz no poste.


Albertão Ahmed colando cartaz no poste

Albertão Ahmed colando cartaz no poste

Ligaram alguns engraçadinhos oferecendo Kichutes, Congas e um All Star de cada cor. A operação falhou. Albertão foi dormir triste, mas por outro lado percebeu que seus valores são outros, suas prioridades mudaram. No dia seguinte, de birra, jogou descalço e divertiu os amigos na resenha relembrando o caso e falando sobre sua única certeza na vida: precisa substituir com urgência os seguranças.    

SAUDADES DO EDINHO

Por Zé Roberto


Foto: Reprodução

Foto: Reprodução

Pensei que era apenas uma rixa com o Fred. Mas contra o Flamengo, ele trocou socos durante 90 minutos com o Guerrero. E ontem, contra o Volta Redonda, voltou a exibir a marca das travas da sua chuteira para o artilheiro do estadual, o Tiago Amaral. Lento, violento e indisciplinado, Rodrigo, zagueiro do Vasco, definitivamente não está fazendo o que gosta. Depois que as lentes das câmaras se aproximaram dos lances e exibiram as feições dos jogadores, na mesma proporção que o bom futebol se afastou delas, xingar os bandeirinhas, chutar a bola para longe e peitar constantemente o juiz são indícios de que este rapaz não está curtindo o que faz nas tardes de domingo.

Pior que irradia. Se fosse a arte, e não chutões, que iniciasse as jogadas do Vasco por seus pés, Andrezinho não se acharia no direito de distribuir pontapés. O mau exemplo tem potencializado a natural agressividade do Marcelo Mattos, hoje um especialista em agarrar camisas adversárias nos cruzamentos sobre as áreas. Até Nenê, que saiu do Brasil jogando com a 8 porque tinha Conca, Roger, Thiago Neves e outros célebres canhotinhas atuando, não tem mais a humildade em reconhecer que sua 10, na volta, é o retrato maior da falta de talento dos nossos atuais meio campistas e começa a se achar, se irritar, e perder pênaltis ao se contagiar pelo modo Rodrigo de atuar. 


Foto: Reprodução

Foto: Reprodução

No jogo de ontem me deu saudades do Edinho. Aos 19 anos, o zagueiro tricolor, revelado por Pinheiro, chegava uma hora antes do treino para jogar tênis com os associados do clube. Depois, era pole position nas corridas de 5 km nas Paineiras e saia do treino direto para a rede de futevôlei, em Copacabana. Às vésperas de um Fluminense x Vasco, em 1975, Assis, uma lenda paraense que formava a zaga com o Silveira, se machucou e Paulo Emílio corajosamente lançou o menino. Jogou tão bem que o Assis teve que se transferir para o Sport Recife e ninguém nunca mais segurou o Edinho. Saía jogando com extrema categoria, não dava pontapés porque se antecipava aos adversários e se tornou uma das principais armas da máquina tricolor bicampeã carioca. Convocado por Telê Santana, disputou duas Copas do Mundo e encerrou sua carreira na Udinese, da Itália.

Desde a antiguidade que o homem, inquieto, ilógico, porém racional, descobriu que a maior razão da sua existência era a felicidade. Entre Rodrigo e Edinho só existe uma semelhança: batem muito bem uma falta. A diferença é que depois das cobranças, Edinho acariciava a bola e agradecia a oportunidade por ela concedida. Rodrigo, contrariado, volta pro seu campo batendo nela, nos adversários e nos sonhos de tantos garotos que gostariam de estar jogando no seu lugar.

CHAPA QUENTE

Por Sergio Pugliese


Na foto, Tico, Álvaro e Bacana tentando intimidar o experiente Índio.

Na foto, Tico, Álvaro e Bacana tentando intimidar o experiente Índio.

O árbitro Luiz Antônio Silva, o Índio, é figura tradicional dos estádios e volta e meia é escalado para apitar um clássico. Ontem, no Flamengo x Vasco, em Brasília, protagonizou um lance curioso ao expulsar Luis Fabiano e ainda marcou um pênalti inexistente para o Vasco nos acréscimos da partida, mas não perdeu a pose. Quem se lembra da Taça Rio, de 2009, quando ele distribuiu 11 cartões no Vasco 2 x 0 Flamengo? Expulsou Carlos Alberto, Tite e Ramon, do esquadrão cruzmaltino, e Willians, Léo Moura e o técnico Cuca, do Mengão, na época chamado de “Bonde sem Freio”. Na partida final do Carioca, entre os mesmos times, estava lá novamente e vermelhou um de cada lado, Alan e Willians.

 – Sem qualquer exagero, isso eu tiro de letra, difícil mesmo é encarar Bacana, Tico e Álvaro – admitiu.

 O trio em questão é objeto de estudo psicanalítico, incendeia qualquer pelada e já aposentou mais cedo muitos árbitros. Atualmente podem ser encontrados, nas noites de terça, no campo da ASBAC (Associação dos Servidores do Banco Central), e nas de quinta, no Caldeirão do Albertão, no Grajaú. Os três, craques de bola, odeiam perder, jogam com extremo vigor, em hipótese alguma concordam com a arbitragem, simulam faltas e ameaçam adversários.

 – Muitos árbitros de nossa empresa se negam a apitar para eles e já chegaram a cobrar adicional de periculosidade – afirmou Marino Najaine, o Ted, um dos profissionais mais requisitados da cidade.

Álvaro, Tico e Bacana são cidadãos de bem, têm famílias, trabalham, pagam impostos, colaboram com ongs e acariciam bichanos nas ruas. No Caldeirão, Tico sempre alimenta os cães de Sandrinho, o caseiro, e emociona a rapaziada.

 – Quem diria que esse doce de pessoa vira um monstro quando entra em campo – comentou Celso Ladrão, outro árbitro que tem taquicardia quando apita seus jogos.

E quando os três caem no mesmo time? Aí, é o inferno! Nitroglicerina pura!!!! Os decibéis atingem níveis insuportáveis e o rico vocabulário atormenta a vizinhança. Dá-lhe 190!!! Jamais seriam convidados para a pelada do cracaço Pedro Porfírio, no Condomínio Península, na Barra, onde palavrões são proibidos. Na ASBAC, a pelada já virou atração e alguns vizinhos desistiram de reclamar e juntaram-se aos inimigos. Chicão, do segundo andar, é um desses. Basta a partida começar para ele, da janela, começar a berrar os apelidos que cria para cada um, vaiar as “pernadepauzices” e os gols perdidos.

– A pelada sem o Chicão xingando não tem graça – disse Porquinho, o Mamute Dourado, lateral ofensivo.

– Encarar essa turma é para quem tem nervos de aço – emendou Índio.


Para não estressar os árbitros de sua empresa, Marino criou um rodízio, mas quem vai uma vez não quer mais voltar. Há alguns meses, após áspero bate boca entre o destemperado Álvaro e a traumatizada Daniele, a história quase foi parar na delegacia. O motivo: um gol anulado. Depois disso, Marino convocou árbitros monges, Márcio Vieira, Marcelo Borges e Júlio César, mas os três quuase foram parar numa clínica de combate ao estresse.

– Eles não deveriam jogar de colete, mas com camisa de força – sugeriu Marino.

Os três defendem-se, dizem-se incompreendidos. O gigante Tico, também conhecido por Herculano Quintanilha, atendendo a conselho de amigos, chegou a entrar em campo, por dois meses, com um esparadrapo na boca, mas quando foi arremessado no alambrado pelo “trator” Limão e o pênalti não foi marcado, arrancou o curativo e partiu para cima de Marino gritando “corre, seu filho da p….”. Claro, Marino correu e só reapareceu meses depois. Na última vez em que “enfrentou” os “monstrinhos”, Índio também se aborreceu e expulsou Bacana. Foi preciso a intervenção de PC, o Jorge Mendonça, policial civil e meio-campo habilidoso. A equipe do Museu da Pelada acompanhou esse jogo e se impressionou com o descontrole do trio. O experiente Índio safou-se, mas avisou que não voltaria mais ali. Tchau!!!

– Aqui quem manda somos nós – avisou Bacana.

Pena Índio ter ido embora sem participar da resenha. Até Marino apareceu. Tico servia batata frita para Álvaro, que abraçava Bacana, que gragalhava com Limão, que brindava com Porquinho, que pediu um minuto de atenção para celebrar aquela amizade de tantos anos, prontamente aceito pelo trio bipolar, demônios em campo, anjos na mesa do bar.    

 

A CONVOCAÇÃO

Por Sergio Pugliese

– Faltam quantos pra fechar, Hugo? 
– Oito. 
– Não é melhor sair ligando pro pessoal? Feriado é fogo! 
– A lista tá aqui. 
– Fala, Xanduca, tá chegando? Chegando em Maricá??!! Pirou? Não ouviu o que o Eduardo Paes falou sobre Maricá?
– Ah, você tem alma de pobre? Deve ter mesmo porque está devendo dois meses de mensalidade. 
– Desligou na minha cara, Hugo. Esse pessoal não gosta de bola. No último feriado fui para a Itaipava, olha o nível de lugar, desci para jogar e voltei. Vou tentar o João…
– E aí, João, só faltam dois pra fechar, tá vindo? Tá em Iguaba??!! Tá maluco? Hugo confere aí se Iguaba está na lista do prefeito.
– Está não, Sizinho.
– Mas devia porque está atrapalhando nosso quórum. 
– Mas, João, o que está fazendo aí? Foi chamado para um amistoso entre Casa dos Parafusos e Pneus Toinho? Nos trocou por essa depressão?
– Desligou….
– É, Sizinho, não existe mais fidelidade partidária….
– Pirou, Hugo, não mistura futebol com política.   


João Perdigão, no condomínio Vila Branca,  quando trocou a pelada oficial por um amistoso

João Perdigão, no condomínio Vila Branca,  quando trocou a pelada oficial por um amistoso

– Liga pro Carlito, então, está duro e não deve ter viajado.
– Fala, Carlito! Corre senão vai ficar fora da primeira, hein! O que, tá em Paquetá!!?? É diversão ou castigo? Cuidado com os pedalinhos, hein! Caramba, nosso grupo tem um péssimo gosto pra viajar. O Eduardo Paes nunca jogaria conosco..
– Tá feia a coisa, hein Sizinho! Tem o celular do Sergio Maluco? Não tá aqui na lista.
– Não tá porque ninguém liga pra ele. Não vamos começar com apelação. A hora é de manter a calma.
– Mas estamos precisando de aliados…..
– Aliados? Lá vem você de novo misturando os canais. 
– Você também falou em pedalinhos….
– Verdade, esquece. Apesar de o Sérgio Maluco estar mais para black bloc porque da última vez mandou dois para o hospital, vou ligar.
– Fala, Serjão! Saudade!! Tá faltando um zagueirão do seu nível! O que, traçou uma feijoada agora? Então, vem vindo devagarzinho para fazer a digestão. Claro que joga a primeira!!! 
– Ferrou, ele vem. 
– Chegou o Tico, faltam sete! 
– E os goleiros? 
– É mesmo. Vou tentar o Neneca. E aí, frangueiro, cadê você? Virando laje? Aproveitando o sol? Peraí, sol é pra jogar bola, curtir uma praia, mas levantar laje é o fundo do poço. 
– Outro com alma de pobre que não vem. Essa pelada está povão demais, é Iguaba, é feijoada, é laje…. 
– Tenta o Kayron!
– Chegou o Soninho!!!! 
– Faltam seis. Vai ter jogo, sim. O pessoal tá chegando aos poucos. 
– O do Kayron tá fora de área. 
– Vamos ter que ir de Franz mesmo, hein! – Vamos esperar um pouco. Sérgio Maluco, Franz, aí é quase um golpe. 
– Mas é bom garantir, né! Eu não quero ir pro gol. Vai, liga! 
– Franz, cadê você, amigão? Não vem levar meus gols hoje? Como é que é, você tem vindo e não tem jogado? Injustiça, mas hoje é um bom dia. Estamos reformulando o partido, quer dizer, o grupo. Pega o material e vem logo. 
– Não falei que ele vinha. 
– Com esses incautos a gente pode contar. Ficam ao lado do telefone esperando tocar. 
– Chegou o Menino Lobo! Só falta um goleiro, então. 
– Não. Esqueceu que o Franz confirmou?
– Faltam seis ainda. Dá mais umas ligadas, aí, mostre o nosso poder de mobilização. 
– Limão? Fala, triturador, cadê você que não chega? Tá descendo do táxi com o Naná? Boa! De carniceiros não precisamos mais!
– Faltam quatro. 
– Chegou o Romeu! Vai ter um goleiro a mais…. 
– Liga logo pro Franz e avisa que não precisa mais vir. 
– Caramba, fora de área…. 
– Esse desespero de ficar ligando dá nisso. 
– Chegou o Camilo! O Bacana! 
– A pelada vai ser boa! Vamos começar a aquecer. Agarra lá, Menino Lobo!
– Chegou o Hugo! O Richa! Fechou!!! Divide logo os times, rápido antes que o Franz e o Sérgio cheguem!!!! 
Com os times prontos para dar a saída, aparece Franz, uniforme impecável, luvas brilhando, camisa pra dentro, cheiroso. Em seguida, esbaforido, suando, ainda sob efeito da feijoada, chega Sérgio Maluco. Todos os presentes eram mensalistas. E mensalista, como se sabe, não dá a vaga nem pro Moro. 
– O que falamos para eles, Sizinho?
– Ué, você não estava falando como político o tempo todo? Quem mandou eles acreditarem em nós?
– Vim correndo só porque vocês chamaram, hein – resmungou Franz. 
– Eu também – emendou um desconfiado Sérgio Maluco. 
Cláudio Cachaça, torcedor símbolo, tentou amenizar. 
– O segundo turno, quer dizer, a de fora vai ser boa! Tem vocês dois e tá chegando o Fernando (uma espécie de Tiririca do futebol).
– Isso é falta de respeito – insistiu Franz. 
Mas a bola estava rolando e não havia mais o que ser feito. Franz e Sérgio Maluco, bicudos, mas resignados, ficaram fora da primeira mais uma vez.
Brasil!!!!!!!!

Da várzea ao sonho. Para Tavito, com amor!

::: por Marcelo Mendez :::


Em um domingo de sol, para Truffaut renascer e filmar, acordei para mais um dia de futebol de várzea, no ABCD, com aquele bom sorriso de menino saudoso no rosto e um som do Tavito nos fones, a caminho do campo do Nacional, onde Guaraciaba e Marajoara se enfrentariam pela decisão do Campeonato de Santo André. Pelo caminho, vi rostos, vi instrumentos de samba, vi sonhos, vi alegrias…

Senti firmemente a possibilidade intrínseca do surgimento de um milhão de odes poéticas que o futebol de várzea é capaz de me dar. Entrei no campo do Nacional e, naquele momento, “Rua Ramalhete” era a música que tocava e o verso citado é a premissa inevitável que rege os momentos que antecedem uma final da várzea. Em mim é assim, não tem como ser diferente…

“Sem querer fui me lembrar…” – Lembrei de tudo. Do menino que fui, do garoto que jogou bola, que amou, que se entorpeceu de paixões e fugas, do homem que em meio a tempestades, decepado, segurou muito mais do que apenas a primavera dos dentes. Eu quis a vida. Hoje quero a várzea…

Pelas ruas do Parque Novo Oratório, em meio aos ramalhetes que me são possíveis, sigo fortemente pelo caminho que pode me levar a algum lugar que não seja apenas calmo. Quero mais, quero tudo. Busco nos rostos e nos corações dos homens pela centelha de alegria que os moveu um dia e que por alguma estranha razão se apagou. A renitência do poeta em fazer dessa mínima centelha uma labareda de paixões e versos é o que mantém viva a beleza. Escolhi o futebol de várzea porque na várzea eu encontro tudo isso.

Asseguro aos senhores que em uma final de várzea reside toda a carga poética de um milhão de Shakespeares em fúria. Nada, absolutamente nada do que se ouse imaginar como épico, chegará aos pés de uma final de futebol de várzea. Obra prima alguma passará da condição de reles chanchada mal feita, ante uma partida de futebol dessas.

Uma final de várzea começa dez segundos antes do encanto e termina vinte séculos após o beijo na boca. Vejam esse domingo último, no campo do Nacional. Havia por lá dois times de futebol. Guaraciaba, lendário, tradicional, com toda a pompa de décadas de grandeza, de conquistas e títulos que o elevaram a condição de grande no futebol de várzea da cidade; Marajoara, novo, recém fundado em 1992, encontra-se na fina flor da lira dos seus 20 anos. Ambos querem obviamente o título, mas, de maneiras distintas.

Guaraciaba quer afirmação, calmaria, regozijo, mais uma glória entre tantas em sua história; Marajoara quer a festa! Na fúria e ira santa de seus 20 e poucos anos, o time recém chegado às grandezas curte a busca pelo título da mesma forma que um adolescente virgem vive sua primeira paixão. Uma coisa forte, sanguínea, intensa. Assim foram ao jogo.

Duro, pegado. O 1 × 1 levou aos pênaltis, não por nada de tática ou coisa parecida, de forma alguma. A decisão da marca da cal serviu para que sons de silêncio fossem ouvidos. Para que o mundo parasse para ver o campeão da várzea de Santo André. Quando Jorge finalizou a quinta cobrança dando o título ao Guaraciaba a magia estava feita. Abraços foram dados, bocas se beijaram e os corações voltaram do tempo em que foram paralisados até a bola definir seu destino: as redes. Título para o Guaraciaba e ode feita ao mundo.

Quem esteve no campo do Nacional viu: a várzea novamente abençoou o domingo.