A REGADORA DE SONHOS
por Sergio Pugliese
A casa estava de cabeça para baixo e o som alto da tevê obrigava Cintia a espremer o celular no ouvido com o ombro enquanto temperava o feijão. Na posição preferida do torcicolo, tentava fechar negócio. Por baixo da porta as contas não paravam de chegar. O interfone tocou ao mesmo tempo em que a máquina de lavar pifou. Abandonou a cozinha correndo, recolheu as roupas do varal na área de serviço e despejou a montanha de panos no sofá. O interfone tocou novamente e a panela de pressão apitou. Do banheiro, o filho Luan, de 13 anos, pediu ajuda: “Mãe, cadê o meu short!”. Do bolo, resgatou o uniforme da Portuguesa e vestiu o craque mirim. Pegou o meião, a chuteira dourada novinha em folha da Nike e calçou o moleque enquanto ele assistia o Sportv despejado na poltrona. Desligou o telefone e, “uhuuuu”, comemorou a venda de um seguro. Olhou para o relógio e faltava uma hora para o treino, na Ilha do Governador .
“– Chuta, Luan, chuta!!!!!!!!!!!”
Deu uma conferida relâmpago no espelho e constatou que precisava pintar a raiz preta do cabelo louro. Desligou todos os botões que viu pela frente, pegou a mochila, a corneta, puxou o filho pela mão e em poucos minutos estava na arquibancada incendiando a torcida organizada, xingando o juiz, discordando das táticas do treinador e incentivando a razão de sua vida.
– Chuta, Luan, chuta!!!!!!!!!!!
No Dia das Mães, a equipe do Museu da Pelada apresenta Cintia Oliveira, securitária, dona de casa, flamenguista, solteira, batalhadora, especialista em lasanha pronta da Sadia e mãe do artilheiro Luan. Acompanhamos sua chegada ao estádio da Portuguesa para o jogo-treino. Ela entrou triunfal, dançando e batendo palmas. Antes de ser liberado para o aquecimento, o filho passou por uma geral: camisa para dentro do short, penteada básica no cabelo e beijo estalado na bochecha. Luan assumiu o constrangimento. Tímido, misturou-se rapidamente aos amigos Hiago, Eisy e William. Nosso fotógrafo e especialista em psicologia infantil, Reyes de Sá Viana do Castelo, também sentiu na pele esse assédio quando treinava basquete pelo Flamengo. Experiente, diagnosticou friamente o caso: “É o bullying materno”. As mães ao lado morreram de rir. A frenética Cintia não estava nem aí. Andava de um lado para o outro e quase invadiu o campo quando o seu menino foi derrubado.
“– Pênalti!!!!”
– Pênalti!!!! – berrou ela, mesmo a falta tendo sido muuuuuito longe da área.
O árbitro riu porque conhece a fera. Mas quem não conhece Cintia? Ela não perde uma partida do filho, seja em pelada ou nos campeonatos disputados pela Portuguesa. Já era assim, no futsal do Grajaú Tênis e Bradesco. Luan sonha ser Neymar, Messi, Cristiano Ronaldo, mas sabe que a prioridade são os estudos e às 13h em ponto chega à Escola Francisco Manoel. Ao contrário da garotada dos tempos modernos aposentou o Playstation e só pensa em bola e pipa. Sergio Sapo, antigo técnico da escolinha do Grajaú Tênis, elogiou o desempenho do canhotinho e lembrou que em 2010 o moleque foi artilheiro do torneio interno do clube com 11 gols e certa vez guardou sete num só jogo. O celular de Cintia tocou. Era uma possível venda, então refugiou-se num cantinho na tentativa de abafar o grito da galera. Sentou-se sem desgrudar o olho do pimpolho e minutos depois desligou com ar de felicidade. Toda ajuda é bem-vinda, ainda mais agora com mensalidade nova na área, a do PFC, canal pago esportivo. Precisou trocar a escola particular pela pública.
“– Antes meu irmão ajudava nas contas, mas agora mato um leão por dia, sozinha, mas vamos levando a vida em frente e com felicidade”
– Antes meu irmão ajudava nas contas, mas agora mato um leão por dia, sozinha, mas vamos levando a vida em frente e com felicidade – comentou.
O jogo-treino estava duro, truncado. Mas a bola sobrou no meio e Luan ganhou a dividida com o zagueiro. Cíntia largou a corneta no chão, segurou firme o alambrado e arregalou os olhos. O menino venceu o desequilíbrio e com o molejo dos ensaboados deixou o segundo adversário para trás. Só faltava o goleiro. A mãe estava rouca e acabara de pegar uma receita mágica com a amiga Rose Marie: gargarejo com caipirinha de lima. Com um biquinho no canto, o artilheiro resolveu a parada. Cíntia ergueu os braços com toda a felicidade do mundo. Do meio do campo, Luan se despiu da timidez, desenhou um coração no ar e apontou na direção da mãe, a parceirona de todas as horas. Ela olhou incrédula para as companheiras de arquibancada e, corpo arrepiado e coração pulsando como um bate-estacas, sentiu a felicidade extrema, o amor exclusivo e inatingível das mães.
Orlando Abrunhosa
Morreu ontem o fotógrafo Orlando Abrunhosa, autor da foto que virou símbolo da conquista da Copa de 70, feita no primeiro jogo do Brasil contra a Tchecoslováquia. O Museu da Pelada agradece a Orlando pelo registro que eternamente ficará na memória dos amantes do futebol arte.
OS AMIGOS DA MANET
texto: Sergio Pugliese | foto e vídeo: Guillermo Planel
Pode ser Uber ou amarelinho, não importa, adoro ouvir histórias de motoristas, suas reclamações, suas opiniões sobre política, temperatura, conquistas, violência, obras e comportamento em geral. Os caras passam o dia transportando todo o tipo de gente, acompanham as transformações da cidade, muitoooooos são formados e trocaram recentemente de profissão, ou seja, alguma pautinha sempre sai desses papos. No final, quase sempre tem troca de cartões e o início de uma nova amizade. Com o Henrique, do amarelinho, foi assim. Logo que me despedi de dois amigos e segui a corrida, ele abriu os trabalhos:
– Amizade é tudo, né parceiro?
– Amigos são mais importantes do que muitos parentes, com certeza!
– É isso! E estou vivendo um dilema justamente por isso…….. – disse, olhos fixos no espelho.
– Perdeu algum amigo?
– Minha mulher recebeu um convite para trabalhar em Londres, em hotelaria. Meu irmão mora na Europa há alguns anos…..
– Mas isso é bacana!!!!
– Claro, ruim não é, mas e como fica a minha resenha de domingo com os amigos da pelada?
Peraí, o cara subiu no meu conceito estratosfericamente em segundos!!!! Sabe aqueles medidores dos desenhos animados que explodem quando alguém dá uma martelada? Foi isso!!!!
– Verdade, não sabia desse outro lado – comentei, semblante preocupado.
– Vi que são jornalistas, né? Por isso estou passando o meu ponto de vista.
– Mas lá deve rolar uma peladinha também – tentei amenizar.
– Cara, mas lá não vai ter um Orelha, um Marquinhos Diarréia, um Pedrinho Chuta-Chuta.
Verdade, pensei. Fazia todo sentido o seu coração amargurado.
– É, um Marquinhos Diarréia acho que não vai encontrar por lá, mas de repente um Peter Kick-Kick……
– KKKKKKK, mas é diferente. Não vai ter o churrasco no Trailer do Careca, nem as zoações. Eu, por exemplo, não sou o Henrique, mas o Hula ou o Zé Gotinha ou o Paralisia Infantil….
Ah, o bullying, pensei, realmente não faz parte do universo peladeiro.
– Aí é impossível, parceiro, Paralisia Infantil é imbatível. Já explicou isso para a sua mulher?
– Pirou? Isso ninguém entende, só nós mesmos…..
– Então seja o que Deus quiser!
– Isso, Deus é peladeiro, vai dar tudo certo!
Claro que antes de me despedir, trocamos cartões, anotei o endereço da pelada, Praça Manet, em Del Castilho, domingo, às 8h, e no fim de semana seguinte estava lá. Quando cheguei rolava Barcelona x Real Madrid, clássico espanhol em Del Castillo!!!! Sentiram a troca de Castilho por Castillo para “espanholar” ainda mais o clima? Casa cheia para prestigiar o Torneio Liga da Europa! O Henrique chegou marrento com a camisa do Arsenal e, pelo climão festivo, entendi sua tristeza em deixar tudo aquilo para trás. A outra certeza foi quando a bola rolou: sua desenvoltura em campo facilitou o meu entendimento sobre o “Paralisia Infantil”.
Valeu, Henricão!!!!!!!!!
“se reciclou aonde?”
Popular entre os boleiros, a frase “Jogou aonde?” ganha uma nova versão de PC Caju após os fiascos de Tite no Corinthians e Muricy no Flamengo.
O INVENCÍVEL
Por Zé Roberto Padilha
Com poucos recursos, o Vasco apostou desde o ano passado na contratação de um jogador que não está à venda em nenhum clube. Para obtê-lo, pouco importa se a janela europeia está fechada ou aberta. Muito menos, ele pode ser adquirido em um troca-troca ou a imprensa criticá-lo pela idade avançada. Seu nome: entrosamento. Nem por isto seu preço é baixo no mercado esportivo, para obtê-lo foi preciso enfrentar a ira de sua enorme torcida que queria a cabeça até do Almirante após a derrota de 6×0 para o Internacional. E aberto o inevitável caminho para o rebaixamento. Para obtê-lo e estar, hoje, há muitos jogos invictos e disputando o bicampeonato carioca, foi preciso nadar na contramão da mesmice.
Jorginho e Zinho comemoram um gol do Vasco ( Foto: Reprodução)
Primeiro, manter o treinador após uma pancada daquelas. Jorginho e Zinho formam uma admirável dupla de ex-atletas corretos profissionalmente, poucas vezes expulsos de campo e que nunca deram trabalho aos seus treinadores. Podem se impor ao grupo como exemplos, têm moral para pedir seriedade e disciplina, ao contrário de medalhões espertos que fugiam da concentração para ir ao encontro das suas Marias Chuteiras, quepassavam mais tempo de chinelinhos no departamento médico, suspensos pelo milésimo cartão amarelo do que jogando. E que, após assumirem a direção de um clube de futebol, distribuem bíblias nos vestiáriosachando que suas santas páginas vão apagar a lambança das que escreveu jogando. Segundo, manter o elenco, mesmo diante das suas visíveis limitações.
Já fui um dia figurinha de álbum de futebol. Não carimbada, é claro. Fotografado para o álbum Panini do campeonato carioca de 1976, cansei de passar por torcedores do Flamengo irritados de tanto “bater na minha cara”. As minhas, do Jaime, do Toninho, Rondinelli e do Cantarelli vinham aos montes no pacotinho, e cadê que saia a carimbada do Zico para eles fecharem o álbum? Só era possível sua confecção porque o torcedor, o treinador, a imprensa sabia o seu time de cor. O escalavam com os olhos fechados. Hoje, o único time carioca que consigo escalar é o do Vasco. Nem o do meu Fluminense ouso tentar, como saberquando é o Magno Alves, o Osvaldo ou o Marcos Júnior que começam jogando? A zaga, então, é um enigma dos horrores, nem Osvaldo de Souza ou Mãe Dinah ou Alfred Hitchcock ousam opinar.
Jogadores comemoram o título da Taça Guanabara (Foto: Reprodução)
Jogando o tempo todo juntos e sabedores de suas limitações, Rodrigo chega forte e dá chutões, Luan faz corretamente suas coberturas, o novo lateral direito usa sua juventude e o esquerdo a sua experiência. Marcelo Mattos marca e não tenta nada mais do que não sabe, o paraguaio cobre as subidas do Madson, o Andrezinho joga o seu correto feijãozinho e o Nenê puxa a bola para lá e para cá e se joga buscando uma faltinha. E todos vão para a área esperar uma falha do Jefferson. Na frente, Jorge Henrique tem sido o melhor do time e o Riascos… bem, Riascos é um risco até para ser analisado. É pouco, mas é constante. Estão no mesmo lugar, se doam muito e socorrem o colega ao lado. São humildes e se superam. Quando falham, tem um ótimo guardião a consertá-las: Martín Silva. Não são capazes de empolgar nem as caravelas de Cabral, mas se nestes navios negreiros seus porões se entrosassem, como o time do Vasco, certamente haveria revolução, não escravidão, na chegada ao porto seguro onde o futebol conseguiu libertar meia dúzia.