A TÁTICA DO BÚFALO
por Paulo Oliveira
Mauro Gordo é sempre o primeiro a chegar, vestido com sua roupa de gala: o tênis kichute, amarrado como sapatilhas de bailarina; um surrado short preto; e a camisa do Flamengo, cujas cores, adquiridas em dezenas de lavagens, passaram a ser rosa e cinza. Às costas, nenhum número, pois pode se transformar em qualquer jogador que tenha pisado no solo sagrado do Maracanã com o místico manto rubro-negro. Seus dois pares de meiões não combinam com nada – um é verde; o outro, laranja. Não raras vezes utiliza uma meia de cada cor.
Diariamente, Mauro repete o mesmo ritual: a mãe prepara uma mamadeira de café com leite, que ele sorve em poucos goles. Na hora da ave-maria, pega a bola dente-de-leite, confere os nós dos cadarços, faz o sinal da cruz e parte em direção ao seu território. Será assim até os seus 20 anos, quando perceber que a maioria dos colegas deixou o bairro, o centro velho do Rio.
Nada tira sua concentração enquanto atravessa as ruas Costa Ferreira e Senador Pompeu, nas imediações da Central do Brasil. Fisionomia fechada, a bola debaixo do braço, imagina belas jogadas e como serão os gols que pretende marcar.
Ao chegar no Largo dos Estivadores, verifica a posição dos gelos-baianos do estacionamento que vira campo de futebol todas as noites e nos finais de semana. Em seguida, abre um largo sorriso e deixa a bola correr. Tem cerca de uma hora, antes da turma chegar, para treinar.
Treino básico: embaixadinhas. Sob a luz fraca dos velhos postes do bairro, tenta bater seu recorde. Uma, duas…, a bola foge do controle. De novo e de novo, várias vezes, não consegue passar de três embaixadas com a perna esquerda.
A outra, cega, não serve para nada.
O treino termina quando surgem os primeiros amigos: Banana, Manteiga, Dido, Paulo, Albino, David… Mauro cumprimenta um a um, torcendo para que pouca gente apareça. Paraibinha, Mauro Preto, 32, Sérgio…
– Vam’bora, vam’bora, vamos tirar o time – tenta apressar os outros, sem sucesso.
O sofrimento aumenta a medida que chega mais gente: Lula, Marcos Bu, Celso, Durão, Chope, Jason, Xinha. Já são mais jogadores do que o campo comporta – seis na linha e um no gol de cada lado.
Longa é a agonia do mais assíduo jogador do Larguinho, onde funcionava um mercado de escravos no passado. Ele vê a chance de atuar no primeiro racha se apagar.
– Quem quer tirar o time comigo? – insiste.
Quando Banana e Albino, os artilheiros do Águia Dourada, começam a escolha, Mauro Gordo, resignado, puxa de dentro da camisa, preso ao pescoço, um apito de plástico, pronto para virar o juiz. Para quem se acostumou a ser o último selecionado, não é tão ruim apitar e ganhar o direito de comandar o time de fora.
A luz fraca somada à miopia impede a boa atuação do árbitro. Ele é logo expulso. Cabisbaixo, deixa o campo e senta-se na soleira da serraria do seu Jorge, mudo. Porém, as primeiras gotas de chuva, mudam seu humor.
O primeiro jogo termina dez minutos depois – é isso ou quem fizer dois gols primeiro.
Mauro entra com disposição, pega a bola, coloca onde imagina ser o meio do campo. Em seguida, corre para a “banheira”, desprezando a regra do impedimento, sem validade mesmo nas peladas. Os primeiros passes caem teimosamente na perna direita, obrigando-o a fazer uma manobra complicada, que consiste em girar no eixo do próprio corpo, deslocando 90 quilos, na tentativa da perna boa entrar em ação. Por mais que se esforce, demora muito e é desarmado.
Sem jeito, olha para o chão, se prepara para pedir desculpas aos companheiros, mas não dá tempo. Percebe pela algazarra dos adversários que o seu time acaba de levar o primeiro gol.
A chuva aperta, a sarjeta começa a encher. A água já iguala a parte da calçada com a do asfalto, a poeira da rua se transforma em lama. Hora de Mauro colocar em ação a arma secreta. Ele recua até o meio-campo, espera o passe. Domina com o pé esquerdo, baixa a cabeça e, como um búfalo, invade a parte enlameada. É o único a enfrentar o lamaçal sem se preocupar com uma queda, enquanto os inimigos o cercam à distância.
O tiro disparado com violência passa entre os chinelos usados como traves. Gol com direito a comemoração diante de uma torcida imaginária. Mauro age como se fosse um Zico, um Adílio, um Júnior; como se fosse os três ao mesmo tempo.
A mesma tática é usada com sucesso pela segunda vez, dando a vitória para a sua equipe. Mauro sai triunfante. Para ele, a batalha acabou.
Quando o jogo acaba, puxa do bolso do short uma caderneta e um cotó de lápis. Vai para debaixo da cabine do zelador do estacionamento e registra os tentos assinalados ao lado da data da partida. É o controle da artilharia, a prova que marcou mais de cem gols no Larguinho.
Ao voltar para casa, a irmã tenta convencê-lo a tomar um banho antes de dormir, mas o artilheiro está cansado. O corpo desaba no sofá da sala e o centroavante dorme, embriagado com o cheiro da lama.
Alberto Leguelé
o craque obstinado
texto: Paulo Oliveira | fotos: Vaner Casaes
Alberto Raimundo Marques, o Alberto Leguelé, aos 24 anos, acumulava seis títulos pelo Bahia – dois no juvenil – e dois pela seleção brasileira – o do Pan-Americano de 1975, no México, e o do Pré-Olímpico de 1976, em Recife (PE). Quarto lugar na Olimpíada de Montreal (Canadá), estava na lista de jogadores da CBD que deveriam ser observados pelo técnico Cláudio Coutinho com vistas à convocação para a Copa da Argentina. No dia 21 de abril de 1977, começou seu calvário.
Leguelé começou a jogar futebol em times dos bairros de Santo Amaro da Purificação, sua terra natal. Atuou pelo Ypiranguinha e pelo Milan, que revelou Mituca, Parodes, José de Laerte, Raimundo Artur e Raimundo Wagner. Sua inspiração, porém, era o primo, Raimundo Mário, que fez três gols no triunfo contra o Vitória (BA), em 1964, jogando pelo combinado Amarantim e Juventus de Alagoinhas. A façanha levou Raimundo direto para o Bahia, sem passar por divisões de base.
Menino levado, que passava visgo de jaca na mão para furtar amendoins e farinha na feira da cidade, Leguelé, que na época tinha o apelido de Pinguim, foi colocado no internato após a separação dos pais, Rubem Marques, que foi morar e trabalhar em Salvador, e Joselina Bonfim, a quem o menino só reveria mais de dez anos depois.
Um ano antes de ser internado com o irmão Alberto, no Centro de Ensino Primário Profissional São José, Leguelé conviveu com Edith Sambui, a Edith do Prato, cantora e percussionista que gravou discos com Caetano Veloso e Maria Bethânia. Foi na casa de Edith, sua primeira madrasta, que o garoto começou a frequentar rodas de samba e os rituais de candomblé.
Entre nove e 14 anos, o menino costumava fugir do rigor excessivo do patronato para jogar futebol. Embora conte que saía com autorização da direção do internato, a Revista Placar, de 6 de dezembro de 1974, revela que as fugas de Leguelé rendiam ”bolos” de palmatória, dados pela diretora da instituição, e o faziam passar horas ajoelhado. O futuro jogador não imaginava que os joelhos viriam a se transformar num castigo muito maior.
Seu Rubem era torcedor doente do Bahia. Ouvia os jogos pelo rádio, tinha faixas e camisa do time. Quando se casou pela terceira vez com Dona Nita, pegou os guris no internato e a filha Ana, que ficara com as tias, e trouxe todos para a capital baiana. Alberto estudou até a antiga 3ª série ginasial e não abandonou os “babas”, as peladas baianas.
A primeira tentativa de jogar no Bahia, aos 13 anos, não deu certo. O técnico Tapioca o achou franzino e o mandou embora. Anos depois, o destino o levou à peneira do Jones, massagista e roupeiro do Bahia. Alberto, que ainda não ganhara o apelido que o faria ficar conhecido em todo o país, estava passando o final de semana na casa de um tio, no bairro do Stiep, quando viu uma aglomeração de moleques. Imaginou logo que seria um “babinha”. Calçou seu Conga, vestiu um calção e desceu para a Fazendinha, onde o Bahia treinava.
– Vi que era uma peneirada. O cara que distribuía as camisas, perguntava quem era goleiro, lateral, zagueiro e muita gente levantava o braço. Quando perguntou se tinha lateral-esquerdo, ninguém se manifestou. Eu não era lateral coisa nenhuma, era volante, meio zagueiro, mas disse que jogava na posição. Entrei na lateral e mandaram voltar para continuar treinado – lembra.
A peneira não era oficial. Não garantia vaga no Tricolor. O meio-campista resolveu tentar a sorte em outro lugar. Num torneio no bairro do Uruguai, foi chamado para jogar no Ypiranga, time do coração de Irmã Dulce. Não chegou a assinar contrato, mas recebia ajuda de custo para o transporte e, assim, garantir presença nos treinos.
Num domingo, na Fonte Nova, assistindo a um jogo do Bahia, reencontrou Jones. O responsável pela peneira informal disse haver vaga no juvenil do Tricolor e que Alberto deveria voltar. Ele largou o Ypiranga e foi jogar no seu time de coração.
Aos 17 anos, foi lançado na equipe profissional pelo técnico Jorge Vieira. Tinha jogado na quinta-feira pelo juvenil e, no sábado, foi convocado. Estreou no Bahia x Atlético (MG), na vaga de Delorme, machucado.
– O Bahia era um timaço: Zé Oto, Roberto Rebouças, Baiaco. E eu ali, no meio dos caras. Quando subi o túnel e dei de frente com a torcida tricolor, tomei um choque. Deu uma tremedeirazinha. A perna e o pé ficaram dormentes. O pessoal mais experiente me deu apoio. “Vamos lá, garoto. Toca a bola de primeira, não segura muito”. Fui me acalmando. Estava com a camisa 10, ao lado de Amorim, no meio-campo. A partida terminou 0 a 0! – conta.
O Galo era treinado por Telê Santana e foi campeão brasileiro no ano posterior.
Alberto passou os anos seguintes jogando as fases finais do campeonato juvenil (foi bicampeão estadual em 1972 e 1973) e no profissional. Em 1973, não era titular absoluto, mas fez parte da equipe campeã baiana que deu os primeiros passos para o heptacampeonato.
Foi nessa época que Alberto ganhou o apelido/sobrenome por causa do irmão, o cantor Antônio Leguelé. A palavra surgiu após um colega soletrar, em baianês, a frase olhe ele ali, chamando a atenção para o cantor. O abecedário baiano e nordestino é, literalmente, o da música de Luiz Gonzaga: o L tem som de lê, o M é mê, o G é guê e por aí vai. De tanto que gritava toda vez que via o cantor, o apelido virou Leguelé e pegou! Depois passou para o jogador, para o filho e, assim, Leguelé virou “sobrenome”.
Fase áurea
Em 1974, quando ganhava 2.300 cruzeiros mensais (o equivalente a US$ 309), o jogador comprou um Fusca com rodas tala larga. Também posou para fotos em revistas esportivas, nas palafitas de Alagados, sua comunidade.
Após o Bahia descumprir a promessa de dobrar seu salário, foi ao departamento pessoal do clube e “pegou” o contrato de gaveta, da gaveta. Sumiu dois dias, reaparecendo para treinar no terceiro. Com apoio do técnico Paulo Emílio, que o considerava essencial para o time, conseguiu o aumento.
Nesse tempo, a estrela do meia brilhava intensamente. Depois de ser indicado pelo técnico Zezé Moreira ao olheiro da CBD Antoninho, foi convocado para a seleção brasileira amadora, que conquistaria a medalha de ouro, no Pan-Americano, do México (1975). Leguelé recebeu a informação pelo supervisor do Bahia, Orlando Aragão, durante um treino.
“Dei mais de mil pulos. Era uma convocação para seleção amadora, mas era do Brasil!”
– Dei mais de mil pulos. Era uma convocação para seleção amadora, mas era do Brasil! – recorda o ex-jogador.
No Pan, foram sete jogos. Cinco vitórias, incluindo a maior goleada da seleção brasileira, 14 a 0 sobre a Nicaraguá, e dois empates. O primeiro, contra a Argentina, no qual o jogador baiano perdeu um pênalti, aos 44 minutos do segundo tempo:
– Chutei por cima do travessão, igual ao Baggio. Senti que o estádio desabou em cima de mim.
“Chutei por cima do travessão, igual ao Baggio. Senti que o estádio desabou em cima de mim.”
No jogo seguinte, a seleção precisava vencer Trinidad e Tobago por três gols de diferença para ir à final com o México. Missão cumprida, 7 a 0! Leguelé se machucou e não enfrentou os mexicanos, no Estádio Azteca.
– Estava vendo o jogo nas arquibancadas, quando faltou luz. Para mim, apagaram as luzes de propósito. Um cachorrinho invadiu o campo e a polícia correu atrás dele. Quando voltou a energia, o juiz encerrou a partida (1 a 1). México e Brasil foram declarados campeões – conta o meia.
Leguelé tem muitas lembranças do Pan: as rodas de samba, das quais João do Pulo também participava, as brincadeiras com Rosemiro, acusado de consumir muito oxigênio por ter um narigão (“A gente brincava, mas ele tinha era pulmão”), e dos namoros com as mexicanas:
– Todo mundo namorou no México. Todo mundo arrumou noivinha, namoradinha. Eu, Edinho Nazaré, boa pinta, Chico Fraga, Tecão, que era tirado a galã por conta dos olhos verdes. Todo mundo namorou. As mexicanas são loucas pelos brasileiros – revela.
E acrescenta, rindo:
– Rapaz, veja lá se não vai me comprometer.
Ao voltar para Salvador, estava previsto que desfilaria em carro de Corpo de Bombeiros. Preferiu dar a volta olímpica na Fonte Nova, ao lado da tenista Patrícia Medrado, que ganhou a medalha de prata no México. A volta dos dois, exibindo as medalhas, ocorreu antes do clássico Ba-Vi.
Do Pan foi para o Pré Olímpico, onde o Brasil foi campeão, com quatro vitórias e um empate. De Recife para uma excursão à Europa, África e Oriente Médio para amistosos. Por fim, Montreal, no Canadá, em 1976:
– Eu tinha sido expulso no pré-olímpico e achei que não seria convocado. Dei graças a Deus por ter sido chamado, mesmo sabendo que não ia jogar a primeira partida contra a Alemanha Oriental. O clima na Vila Olímpica era mais fechado do que no Pan. Todo mundo esperava que nós ganhássemos a medalha de ouro, que até hoje o Brasil não conquistou.
Na fase inicial, a seleção empatou com a Alemanha Oriental (0 a 0), venceu a Espanha (2 a 1) e Israel (4 a 1). Na semifinal, perdeu para a Polônia, de Tomaswevsky, Lato e Zmuda. E voltou a perder para a Rússia (2 a 0), na disputa pelo bronze. Leguelé lembra que no vestiário foi uma choradeira “arretada”. Dos atletas ao técnico Cláudio Coutinho e ao médico Arnaldo Santiago, um berreiro só.
Tristeza
A maior mágoa do meio-campista não foi perder a medalha. Hoje, ele avalia que o Brasil não tinha condições de derrotar os selecionados da Europa do Leste, muito mais experientes e bem-preparados. O que chateia o craque é não ter sido convidado para participar da passagem da Tocha Olímpica, da Rio 2016, pela Bahia, mesmo sendo um dos sete futebolistas baianos que participaram do selecionado brasileiro na história das Olimpíadas – os outros foram Aldair, Baiano, Bebeto, Dida, Fábio Costa e Zózimo.
“Sequer fui chamado para a cerimônia no aeroporto. A prefeitura criou um grupo para organizar o evento e fui esquecido”
– Sequer fui chamado para a cerimônia no aeroporto. A prefeitura criou um grupo para organizar o evento e fui esquecido – lamenta.
O quarto lugar não fez Leguelé esmorecer. Pelo contrário, o jogador tinha sido avisado que estava nos planos para a Copa da Argentina. Ele, Carlos, Júnior, Edinho e Batista. Aí veio o jogo, em Jequié.
Depois de jogar 27 partidas pela seleção olímpica – 15 vitórias, seis empates, seis derrotas e cinco gols -, Leguelé voltou ao Bahia. Treinava com os agasalhos da seleção. Apesar de dizer que fazia isto para perder peso, pois engordara quatro quilos, os colegas de time o chamavam de “mascarado”, mas isso não o abalava.
No dia 14 de abril de 1977, no Estádio Waldomiro Borges, o Waldomirão, o Tricolor de Aço enfrentou o Jequié. Leguelé foi dar um lençol em um zagueiro e prendeu o pé num dos muitos buracos do campo. Sofreu uma forte torção no joelho, foi operado e ficou oito meses no estaleiro. Passou o resto do ano fazendo fisioterapia e fortalecimento muscular. Acabava aí sua carreira na seleção.
A demorada recuperação não impediu que ele fosse contratado pelo Flamengo, após disputar algumas partidas pelo Baianão, em 1978. A ida para o rubro-negro carioca contou com uma ajuda especial: Leguelé recorreu à mãe de santo, dona Nicinha, que tinha um terreiro em Santa Mônica, antigo bairro industrial de Salvador, para que o negócio fosse fechado.
“A minha ida para o Flamengo tem a ver com os orixás.”
– A minha ida para o Flamengo tem a ver com os orixás. Antes de eu ir para o Rio, minha mãe de santo tinha viajado para Alagoas. As negociações estavam emboladas. O Bahia queria dinheiro. Pedi para ela fazer um trabalho para que eu fosse bem olhado, bem visto. Ela fez este trabalho em Alagoas. Logo em seguida, assinei contrato. O Bahia concordou em me emprestar sem ganhar nada – diz Leguelé.
Essa não seria a única vez que ia recorrer aos orixás. Oxalá, Iansã e os Ibejis o fortaleceriam em outras situações. Chegou à Gávea com fama de protetor de elenco, agregador. Dona Nicinha foi para o Rio, onde também ajudou amigos do meia baiano.
No Flamengo, onde era uma espécie de “reserva de luxo”, fez 14 jogos (cinco amistosos e nove partidas pelo Campeonato Carioca), incluindo os minutos finais da decisão da Taça Rio. Entrou nos acréscimos, na partida em que o rubro-negro venceu o Vasco por 1 a 0, com gol de Rondinelli no último minuto. Leguelé conta que gritou “gol”, no banco de reservas, antes de Zico bater o escanteio que resultaria no título. Todo mundo estranhou, mas ele diz que sempre teve premonições.
Também guarda na memória um episódio com Zico, que se preparava para bater uma falta. O meio-campista diz que tirou a bola da mão do Galinho e o mandou para a área. O craque não se aborreceu, pois eles tinham uma boa relação. Do lance, teria saído o gol da vitória. “Acho que foi contra o América”, acrescenta.
Outro episódio envolvendo Leguelé, no Flamengo, é contado na página 115 do livro Jornalismo Eletrônico, organizado por Sidney Rezende e Sheila Kaplan. Consta que durante uma partida entre o rubro-negro e o tricolor suburbano, o Madureira, um torcedor ficava gritando, próximo ao técnico Cláudio Coutinho, para tirar Eli e colocar Leguelé. O primeiro tempo terminou empatado em 0 a 0. Ao se dirigir para o vestiário, Coutinho teria perguntado ao torcedor quem deveria ir para a ponta-esquerda, afinal o baiano entraria no meio-campo. A resposta saiu de bate-pronto: “desloca o Adílio”. A partir de então, o craque passou a jogar como ponteiro.
Leguelé não se lembra do episódio, mas afirma fazer sentido, pois toda vez que ele entrava, Coutinho fazia muitas mudanças táticas, uma delas passando o Adílio para a ponta-esquerda.
No fim da temporada, apesar de ser querido no Flamengo, Alberto Leguelé voltou para o Bahia.
O outro joelho
Novamente em abril, no dia 11, na Fonte Nova, Leguelé sofreu a contusão que praticamente o afastou do futebol. No jogo contra o Atlético de Alagoinhas “estourou” o joelho, dessa vez o direito. A pancada que levou, jamais esqueceu:
“Fiz uma tabela, recebi a bola de volta e o zagueiro me deu um chute. A perna estava mole, não estava bem firme, aí o joelho foi para o espaço.”
– Fiz uma tabela, recebi a bola de volta e o zagueiro me deu um chute. A perna estava mole, não estava bem firme, aí o joelho foi para o espaço. Operei e fiquei parado quase o ano todo (1979). Com os dois joelhos operados, comecei a ter dificuldades para treinos mais fortes. Ia dormir com o joelho bom, acordava com ele inchado – revela.
Para poder continuar nos campos, recorreu novamente aos orixás. E a isso, Leguelé atribui dois fatos: o de ser campeão pelo Vitória, acabando com a hegemonia do Bahia, e o de ter conseguido se “arrastar” nos campos até 1984.
Contou também com a ajuda de alguns técnicos que não o deixavam treinar em pisos duros e muitas vezes o poupavam para que ele pudesse atuar nos jogos no final de semana. Dentre os que ajudaram, cita o gaúcho Laerte Dória, do CSA e Nacional (AM), e o ex-zagueiro Scala, que comandou o América-RN e Alecrim.
A ressurreição no leão
A rivalidade entre Bahia e Vitória é muito grande, envolve até os jornalistas que cobrem os clubes. Leguelé conta que um desses profissionais, que trabalhava para a revista Placar, fazia várias matérias criticando-o quando ele estava no Tricolor:
“Ele dizia que eu era hippie, “irreverente”, e que estava com a carreira encerrada. Fazia isso porque eu usava cabelo black, barbicha e tamanco.”
– Ele dizia que eu era hippie, “irreverente”, e que estava com a carreira encerrada. Fazia isso porque eu usava cabelo black, barbicha e tamanco. Quando fui para o Vitória passou a me elogiar. Hoje, passa por mim e me chama de Leguelinho – entrega.
Pior fez outro jornalista que chegou a ser conselheiro do Vitória e empresta seu nome à sala de imprensa do clube. Segundo Leguelé, o Bahia tinha negociado seu passe com o Grêmio, treinado por Telê Santana (1976-78), por três milhões de cruzeiros. No dia seguinte, o time gaúcho desfez o negócio. O meio-campista conta que soube que o jornalista ligou para o Sul e o queimou, dizendo que ele era “cachaceiro, bregueiro, maconheiro e hippie”.
“O cara fez isso para prejudicar o Bahia e a mim. Perdi os 15% que teria direito. Andei um tempo de “camisa virada”, querendo encontrar com ele na rua.”
– O cara fez isso para prejudicar o Bahia e a mim. Perdi os 15% que teria direito. Andei um tempo de “camisa virada”, querendo encontrar com ele na rua. O tempo passou e fui para o Vitória. Cheguei lá, em 1980, e encontrei com ele, mas já tinha esfriado a cabeça.
De sua passagem pelo Leão, Leguelé lembra que chegou ao clube no segundo turno do Campeonato Baiano. Vinha do CSA, onde foi vice-campeão da Taça de Prata. Chegou a fazer dois jogos contra o Bahia. Venceu os dois e participou da eliminação de seu antigo time, na partida em que Tadeu Macrini fez o gol. A decisão foi contra o Galícia. Com gol de Paulo Maurício, de pênalti, venceu por 1 a 0 e decretou o fim da hegemonia tricolor.
Na passagem pelo rubro-negro baiano, quando acredita ter ressuscitado para o futebol, Leguelé enfrentou um problema em casa. O pai, torcedor fanático do Bahia, deixou de falar com ele. Dono de um bar, na Ribeira, não suportava as gozações que os clientes faziam, aproveitando que seu garoto jogava no time adversário. Quando o filho voltou ao Bahia, três anos depois, ele explodiu uma caixa de fogos para comemorar.
No final de carreira, o craque teve uma passagem de quatro meses pelo Blooming, de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Voltou para o Brasil para atuar no Nacional (AM) porque os dirigentes bolivianos atrasaram o salário e não concretizaram a transferência. Jogou ainda no Serrano (BA), ASA, de Arapiraca, e Ypiranga (BA).
Sem palavra
Tentou ainda carreira como técnico da base do Bahia e do Vitória, e dos profissionais do Camaçari, Itabuna e São Bento (MA). No Itabuna, o presidente do clube não cumpriu com a palavra de lhe dar um reajuste e ele deixou o clube. A imprensa do sul do estado anunciou que ele fora dispensado por pressão de um empresário de jogador. Leguelé esclarece o episódio, contando que o Bahia emprestou o zagueiro Ramon Rodrigues, que tinha 17 anos, para o Itabuna. O presidente do clube o informou que Ramon tinha que ser titular, pois esta era uma condição imposta pelo Tricolor, que pretendia vendê-lo ao Az Almaar, da Holanda.
– Argumentei que o titular até a chegada do novo zagueiro estava jogando bem e que não podia sair do time. O presidente mandou eu me virar, dar um jeito, pois ia entrar um dinheiro com a venda de Ramon. E falou que se desse tudo certo eu teria um aumento salarial.
Foi quando o zagueiro central titular se machucou e não pode jogar contra o Poções. Ramon entrou, atuou bem e se firmou na zaga. Pouco tempo depois, foi vendido – segundo jornais de Salvador, por 550 mil euros – e o Itabuna recebeu a parte dele. Mas e o prometido aumento? O presidente desconversou. Aí disse que não dava mais para continuar – revela.
Depois disso, Leguelé passou a treinar seleções de cidades do interior, que disputam um dos maiores campeonatos amadores do mundo. A competição dura até seis meses e os treinadores recebem cerca de R$ 6 mil mensais das prefeituras. Do campo foi para o futebol de areia. Chegou a ser eleito o melhor treinador de beach soccer do estado pela Federação Baiana.
Planos
As noites de Leguelé são longas. Desde a segunda metade da década de 1970, os joelhos doem. A perna esquerda atrofiou, o joelho esquerdo ficou maior do que o direito. As articulações ficaram “duras”, o que não permite que ele faça flexões nem alongamentos. Até hoje foram sete operações, incontáveis punções para retirar “água do joelho” (líquido sinovial) e uma raspagem para tirar pedaços de ossos que se soltaram. Os quatro meniscos foram extraídos.
Leguelé se trata com o Dr. Lapão, ex-Bahia e hoje médico da Associação de Garantia ao Atleta Profissional (Agap-BA). A oitava cirurgia está prevista, mas o ex-craque está tentando driblá-la. É que o pós-operatório da penúltima intervenção foi muito doloroso. Há anos, ele é obrigado a tomar antiinflamatórios e analgésicos para suportar os períodos mais críticos, principalmente quando o tempo esfria.
“Os médicos dizem que é psicológico, mas não é não. Dói mais, mesmo.”
– Os médicos dizem que é psicológico, mas não é não. Dói mais, mesmo – reclama.
Mesmo tendo viajado por cinco continentes, jogado na seleção brasileira e ganhado muitos títulos, o meio-campista não fez fortuna. A disputa entre Puma e Adidas, por exemplo, lhe rendeu chuteiras, agasalhos e equipamentos esportivos, que ele deu para amigos e para o filho Ricardo Leguelé, jogador que fez curta carreira em times amazonenses e hoje vive em Manaus. Atualmente, Alberto mora com a mulher e a filha, Taís, 34, que é especial, em Salvador.
Dos 12 anos em que atuou no futebol, o meio-campista polivalente guarda a medalha de “ouro” do Pan que, por dentro, parece ser feita de cobre ou latão, um agasalho da seleção, fotos, pôsteres, recortes de jornal e uma flâmula do Bahia. Tem um carro Gol e o apartamento de três quartos em um condomínio de classe média, no bairro da Boca do Rio, quitado com muito esforço. Leguelé se orgulha disto, pois muitos de seus colegas e amigos pararam de jogar e ainda moram de aluguel.
Visando melhorar sua renda, pretende voltar a trabalhar como olheiro do Bahia. Estava em negociação, mas no dia 11 de julho recebeu a notícia de que o clube não o contrataria porque ele recebe benefício por acidente de trabalho, o que impediria que sua carteira fosse assinada. Leguelé não desiste. Vai aguardar o presidente do clube Marcelo Sant’Anna voltar de Porto Seguro para fazer nova tentativa.
Os joelhos estourados lhe rendem uma pensão de R$ 1.300. A outra parte de seus ganhos vêm do bico que faz como delegado da federação em alguns jogos dos campeonatos regionais e brasileiro. No total, são oito ex-jogadores que orientam fotógrafos e impedem que eles fiquem em locais não permitidos no campo, dentre outras funções. Alberto Leguelé espera ser chamado para atuar nas partidas das Olimpíadas que serão realizadas na Fonte Nova.
Todas essas questões, no entanto, são deixadas de lado quando o jogador volta a entrar em campo, aos 63 anos, para a sessão de fotos para o Museu da Pelada. Depois de fazer embaixadas, correr entre os cones e acariciar a bola como se fosse uma namorada, Leguelé volta no tempo:
– Estou renovado, parecia o primeiro treino de minha vida!!! Ganhei o dia, graças a Deus e a todos os orixás da Bahia!!!
“Estou renovado, parecia o primeiro treino de minha vida!!! Ganhei o dia, graças a Deus e a todos os orixás da Bahia!!!”
HÁ TRÊS ANOS, GALO CONQUISTAVA LIBERTADORES
Há exatos três anos, o Atlético Mineiro, liderado por Ronaldinho Gaúcho, vencia o Olimpia nos pênaltis e conquistava o título inédito da Copa Libertadores! Veja os gols da dramática final no Mineirão com uma narração emocionante!
A BICUDA DE TINUCA E AS PIZZAS DA MAFALDINHA…
por Marcelo Mendez
Em um sábado à tarde, de algum sol, decidi ir até o campo do São Paulinho do meu Parque Novo Oratório.
Fiquei sabendo que ali haveria a final de um torneio, a “Copa Pacotão”, que, perguntando aqui e ali, descobri tratar-se do nome do patrono do torneio, um empresário dono de um boteco nas quebradas do Parque São Rafael, que era o incentivador da coisa toda.
– Repórter, o vencedor, além do troféu, ganhará uma rodada de pizzas, lá na Mafaldinha Pizzas… – me contou a fonte que conheci ali, na grade do campo. E munido de informações necessárias, fui ao jogo em questão.
O match que valia o troféu e as pizzas da Mafaldinha era entre os times do Pouca Perna F.C. e o Em Cima Da Hora. Um time era do bairro do Vera Cruz e o outro do Sonia Maria, na divisa com Santo André. A eufórica torcida de uns 15 cachaças que se somavam a mim na arquibancada do campo do São Paulinho me falavam maravilhas do time do Pouca Perna. E então começou a peleja.
A partida era de uma ruindade intrínseca. Disputada a plenos bicões, chutes tortos, trombadas e raspadas de canela, o jogo corria. Os times, talvez sabedores dos encantos lá das pizzas, corriam e se esforçavam com uma dignidade inexorável. Eram homens atrás de réquiens, de glórias curtas que a várzea pode dar. Nesse momento me chamou atenção o camisa 11 do time do Pouca Perna.
Em um daqueles 0 x 0 virginais e indecentes, o jogo seguia. Após um desvio no fundo, o moço da camisa 11 se viu com a bola à sua frente, limpinha, solta, fácil de ser empurrada ao fundo das redes. Sabedor de tal primazia que esse momento do jogo pode oferecer, ele a recebeu, ajeitou seu corpo e então, de frente para um desesperado goleiro, enfiou seu pé embaixo da bola e a isolou sobre o gol:
– Puta que pariu, Tinuca! Como tu é ruim, porra! – esbravejou um dos 15 torcedores a meu lado, arremessando ao campo seu copo de plástico cheio de cerveja.
Tinuca…
Só pela exclusividade do nome, Tinuca já mereceria destaque nessa crônica. Afinal de contas, quantos Tinucas existem no mundo? Que coisa maravilhosa é a sensação de ser então único: Tinuca!
Observando-o em campo, vi que o seu futebol era de uma inapelável ruindade. Um grosso. Alto, de pernas infindáveis, meio arcado, Tinuca corria. Era comovente ver o quanto nosso limitado atacante se esforçava.
Tinuca tinha uma retidão de caráter épica!
Talvez por isso, a bola o procurava. Tinuca teve mais outras quatro chances de fazer o gol. Errou todas. A paciência do bebum da torcida já estava acabando quando então se fez a magia no campo do São Paulinho.
Eram uns 44 minutos do segundo tempo, quando todo mundo se preparava para os pênaltis. Já não se olhava tanto para o campo, quando uma bola sobrou na frente de Tinuca a uns 30 metros do gol adversário. Sem pestanejar e nem fazer análise, o nosso camisa 11 enfiou o bico da chuteira na bola. A pelota fez uma viagem com mil curvas até que encontrou o ângulo do time do Em Cima da Hora.
GOOOLLL!!!
De maneira impressionante, Tinuca fez o maior de todos os gols. Os cachaças vibravam, os parceiros de time o saudaram e todo mundo estava feliz. As pizzas da Mafaldinha estavam garantidas! Graças a Tinuca!!!! Através dele se fez a arte.
Porque afinal de contas o espanto e a surpresa são as maiores características de uma obra de arte. São fatores que a definem como tal, ou até mesmo nossa indignação capenga diante da beleza artística, quando dizemos “Minha nossa, como é belo!”. Pois bem:
Belo nesse dia foi o Tinuca. Minha nossa!
REINALDO VENCE DISPUTA!
Como era de se esperar, a batalha foi dura, decidida nos últimos votos, mas o artilheiro Reinaldo superou Careca e foi eleito o craque da semana! Veja belos lances do ídolo do Atlético-MG!