A NOITE QUE NÃO ACABOU. E JAMAIS ACABARÁ.
por Mateus Ribeiro
Mateus Ribeiro
Existem poucas coisas que eu gosto na minha vida. Poucas mesmo, sem exagero. Acontece que essas poucas coisas (e pessoas) que gosto, recebem meu amor da forma mais intensa possível. Posso afirmar com toda a certeza, que dentro do seleto clube que reside em meu coração, o inquilino que ocupa mais espaço é o Sport Club Corinthians Paulista.
Desde minha infância, tudo, absolutamente tudo que vivi teve alguma ligação com o Alvinegro de Parque São Jorge. Inúmeras são as lembranças, as alegrias, e as decepções. E no campo das decepções, nenhuma me deixava mais chateado do que nunca ter conquistado a América.
Conforme os anos foram passando, essa frustração apenas aumentava, graças a nomes como Adílson Batista, Coelho, Cocito, Roger, Geninho, e uma infinidade de seres que desejo nunca mais ver na minha frente.
Até que quando menos eu esperava, as coisas começaram a mudar de patamar. Da maneira mais improvável possível, o clube marginalizado, alvo das piadas mais baixas e preconceituosas possíveis, o patinho feio entre os quatro paulistas, saiu do poço e chegou ao topo. Após 1676 dias, o Corinthians saiu de um rebaixamento para a Série B do futebol Brasileiro, e chegou até o topo da América. De maneira suada. Incontestável. Como eu sempre quis. Como deveria ser.
O início amargo
Tudo começou naquele fatídico dia da eliminação para o Tolima, na pré Libertadores de 2011. Após a dura derrota, fiquei extremamente feliz com a saída de alguns nomes do clube. Principalmente com a saída do lateral e do atacante que queriam apenas aumentar a conta bancária em cima do Corinthians. Passada toda essa turbulência, o time foi entrando nos eixos, apesar da presença de Adriano. Após árduas batalhas, o Corinthians consegue conquistar seu quinto Campeonato Brasileiro, que garantia aos comandados de Tite a chance de disputar a Libertadores no ano de 2011. O primeiro passo havia sido dado.
Não precisa ser nenhum gênio para imaginar que a cada minuto do meu dia algum infeliz me lembrava que o Corinthians não tinha conquistado a Libertadores. Ficava calado. Não respondia. Uma hora eu iria conseguir me vingar.
Bom, está certo que o início não foi dos melhores, e quase que a vaca deita na estreia. Sorte que Ralf livrou nossa cara com um gol na bacia das almas, e empatamos contra o modesto Deportivo Táchira. É claro, óbvio, e evidente que Deus e o mundo tripudiou em cima de nós, torcedores, por comemorarmos o empate como se fosse uma vitória. Mal sabiam eles o que ainda estava por vir…
Jogo após jogo, a primeira fase foi um passeio. Exceção feita ao jogo contra o Cruz Azul no México, tudo correu tranquilamente na primeira fase, e o Corinthians passou com sobras, para nossa alegria. Afinal, enquanto há vida, ainda há esperança. E ela estava cada dia mais viva e radiante dentro dos nossos corações.
O fator Cássio
Nem tudo são flores. No meio do caminho, o goleiro titular Júlio César fez o que era sua especialidade: falhou na hora que não poderia falhar. Contra a Ponte Preta, pelo Paulistão, nosso querido Horácio entregou a rapadura, e ajudou a construir uma eliminação vexatória. Resultado: Júlio vai pro banco.
Para assumir a meta alvinegra, Tite escolheu Cássio, que era o terceiro goleiro, e havia feito uma ou outra partida pelo time titular. No meio da fogueira, sem nenhum tipo de alívio, Cássio iniciou sua caminhada na partida de ida das oitavas de final, contra o Emelec, no Equador. Além da altitude e de uma arbitragem no mínimo tendenciosa, os Equatorianos mostraram que também tinham o futebol como arma, e bombardearam Cássio, que demonstrando uma segurança ímpar, segurou o empate sem gols, o que deixou as coisas um pouco mais tranquilas.
Já no jogo da volta, um 3 a 0 mandou o Emelec de volta pra casa. Mal o jogo havia acabado, fui obrigado a ver dezenas de sábios (por “coincidência”, nenhum era torcedor do Corinthians) comentando que nas quartas, o Corinthians não teria chances contra o Vasco da Gama.
Após mais um empate com o placar zerado, no jogo da volta, bastava uma vitoria simples para a classificação se concretizar. Porém, o senhor Alessandro resolveu deixar tudo mais emocionante, e me fez viver os oito segundos mais tensos da minha vida. Sorte que pela primeira vez, Cássio livrou a cara de Alessandro. A dele e a de mais uns 30 milhões de torcedores espalhados pelo planeta.
Depois dessa defesa, mal conseguia coordenar meus movimentos. Só queria que aquilo acabasse logo. E acabou da melhor maneira possível, com um gol de Paulinho no final da partida. Alma lavada, mas o caminho era longo.
Obrigado, Sheik e Danilo!
Nas semifinais, o adversário era o Santos, que contava com os queridinhos Ganso e Neymar. Desnecessário dizer que o favoritômetro estava quase explodindo, pois 11 entre 10 comentaristas davam como certa a classificação do Alvinegro Praiano. Só esqueceram que do outro lado estavam 11 homens com sangue no olho, e vestindo uma camisa que jamais pode ser subestimada.
Logo no primeiro jogo, Sheik calou muita gente com uma obra de arte. Além do gol do atacante, Cássio fechou o gol, e garantiu a vitoria do Timão no campo adversário. Mesmo com direito a um apagão “suspeito”, por “coincidência” no momento que o Corinthians tinha chances de fazer o segundo gol.
No jogo da volta, o nosso amado e letal Danilento fez o tento que nos colocou na inédita final. Meu coração estava quase saindo pela boca. A sensação era indescritível, e eu já não estava mais acreditando que o sonho era real. Enfim, faltavam só mais dois jogos.
Boca Juniors. O adversário ideal. O final perfeito.
Sempre tive na minha cabeça um modelo ideal para o Corinthians ganhar a Libertadores: eliminando o máximo de brasileiros possível, e pegando um time temido na final. A presença do Boca Juniors como adversário não poderia ser melhor.
Obviamente, sentia um pouco de medo de enfrentar o bicho papão do século XXI, ainda mais sabendo que Riquelme estava deitando e rolando.
Enfim, quem precisa de Riquelme quando se tem estrela de campeão, não é? Pois bem, mais uma vez, um herói improvável surge através dos pés de Romarinho, que em seu primeiro toque na bola nos garantiu o empate. Só não digo que ele calou a Bombonera pelo simples fato de que havia um bom número de torcedores do Corinthians por lá.
No jogo da volta, o nervosismo foi embora através de dois gols de Sheik. Tudo foi muito rápido. Eu não conseguia falar nada após o segundo gol, não conseguia chorar, nem rir, nem falar. Apenas relembrar de todas as lágrimas que derramei até o apito final daquela partida.
Veio o apito final. E com ele, um caminhão de sentimentos.
Ao mesmo tempo que gritava, chorava, pulava, agradecia aos céus, queria sair correndo, abraçar todo mundo que estava no mesmo bar que eu. Sei que numa dessa acabei na praça da cidade comemorando o título até sabe se lá Deus que horas. Me lembro inclusive de ter descido de um caminhão e quase dar com a cara no asfalto, de tão feliz (e bêbado) que fiquei. Mas naquela noite, eu poderia me exceder. Aquela noite foi mágica. Aquela noite permitia qualquer excesso. Aquela noite de 04 de julho de 2012, a noite que nunca acabou.
E depois daquela noite?
Depois veio a conquista do Mundo, mais dois Paulistas, um Brasileiro, uma Recopa, e muitas emoções. Mas nenhuma se compara com a emoção que vivi naqueles longos meses de 2012, o ano que o mundo iria acabar. Para mim, poderia ter acabado ali mesmo. Afinal, já havia visto meu time ganhar tudo o que poderia ganhar.
Por sorte, o mundo não acabou, e cinco anos depois, posso agradecer Cássio, Alessandro, Castán, Fábio Santos, Ralf, Paulinho, Alex, Danilo, Jorge Henrique, Sheik, Romarinho, Liédson, Douglas, Tite e tantos outros guerreiros que escreveram seu nome na historia do Sport Club Corinthians Paulista. Após anos roendo o osso, chegava a hora de aproveitar o filé.
Contra todas as expectativas. Contrariando todos os prognósticos. Contra o Brasil. Contra a América. Contra o Mundo. Contra tudo e contra todos. Porque aqui é o CORINTHIANS. Daqui até a eternidade!
SE HÁ PELADAS NO ATERRO, AGRADEÇAM AO JOÃO ‘SEM MEDO’
por André Felipe de Lima
(Foto: Reprodução)
O ano? 1969. O mês? Novembro. O jornal dos Sports decidira, naquele momento, institucionalizar a pelada. Desde 1966, o jornal organizava o popular Torneio de Peladas no Aterro do Flamengo, cujo patrocínio inicial foi da Esso. Era premente, contudo, algo mais grandioso, eloquente ao extremo. Nascia, portanto, o I Campeonato Carioca de Pelada, com o patrocínio do Super Tênis Bamba 704, da Alpargatas, e colaboração da antiga Sursan (Superintendência de Urbanização e Saneamento).
Cerca de 2 mil times de peladeiros (dentre os quais ídolos como Nilton Santos, Telê, Ademir de Menezes e Jair Rosa Pinto) foram inscritos. Os jogos foram realizados no Aterro do Flamengo, na Praia de Ramos e na Quinta da Boa Vista. Mas, por muito pouco, o Aterro ficaria fora dessa lista. Inaugurado em 1965, o Aterro não previa, em sua planta original, a criação de campos de futebol. Jamais passou pela mente dos arquitetos e paisagistas que o novo espaço pudesse acolher o futebol.
No local em que há hoje os lúdicos campos de pelada, haveria apenas um jardim. Uma bola e vários pés a seduzi-la incansavelmente não era o cenário vislumbrado. Se os paisagistas pensavam assim, havia um ardoroso amante do futebol que iria contrariá-los: João Alves Jobim Saldanha. Sim, partiu de João Saldanha – e isso ele mesmo afirmou – o argumento decisivo que teria convencido o governo do antigo estado da Guanabara a reservar espaços no Aterro para as peladas.
(Foto: Reprodução)
João Saldanha sempre foi um obstinado pelo aproveitamento dos campos de pelada da cidade e chegou, inclusive, a ter encontros com representantes do poder público para aproveitamento de terrenos vazios para a prática da pelada. A ideia inicial dos construtores do Parque do Flamengo – confirmara Saldanha, quatro anos após a inauguração do Aterro – era o aproveitamento da área hoje reservada ao futebol para jardins.
“Fui um dos que lutaram muito para que não fizesse só jardins no Parque do Flamengo a construção dos campos de futebol que lá estão e, agora, quando vai-se realizar um verdadeiro campeonato carioca de futebol, só tenho a exaltar o JS pela inciativa de reviver a pelada”, confirmou Saldanha, referindo-se ao campeonato de peladas promovido pelo Jornal dos Sports.
“Não fazia sentido o não aproveitamento daqueles campos. Deixá-los pura e simplesmente por conta de pequenos grupos seria absurdo terrível. A volta da pelada vai dar à cidade mais uma promoção festiva e, agora, com maior amplitude, porque os jogos também serão disputados nos campos da Quinta da Boa Vista e Praia de Ramos, o que quer dizer que toda a cidade irá sentir e viver o seu Campeonato de Pelada.”
(Foto: Reprodução)
Na ocasião, Saldanha lembrou ao repórter do JS que existiam na Colômbia vários campos públicos de futebol, nos quais até mesmo times profissionais treinavam.
“Na Colômbia, foram aproveitados os terrenos não edificados e neles construídos campos de futebol. Bem que aqui no Rio poderia fazer o mesmo. Mas não estamos de todo por fora do assunto, com os campos do Parque do Flamengo e, principalmente, porque o Jornal dos Sports teve a feliz ideia de também aproveitar os últimos campos da Quinta da Boa Vista e Praia de Ramos, permitindo assim que a rapaziada da Zona Norte viva a pelada.”
Saldanha foi um obstinado defensor da massificação do futebol. Se hoje muita gente corre atrás de uma pelota nos campos do Aterro, agradeçam ao bom e velho João “Sem Medo”, que peitou paisagistas para os quais o futebol não passava de ócio dispensável.
MANÉ E JOÃO, TANTAS HISTÓRIAS PARA CONTAR
por Victor Kingma
Charge: Eklisleno Ximenes.
Entre tantas e justas homenagens pelo centenário do mestre João Saldanha, essa história lembra o seu lado irreverente e a malandragem futebolística, uma de suas marcas registradas. É uma de tantas passagens que tiveram como personagens Saldanha e um dos maiores gênios da bola.
No final dos anos 50, Garrincha estava no auge da carreira e era presença obrigatória em todos os jogos do Botafogo. Sem ele a cota reduziria pela metade.
Pois certa vez, num desses amistosos no interior, Saldanha, então técnico do time, era só preocupação. O motivo dos temores do bravo João era a fama de violento do lateral que marcaria Mané. Atendia pelo sugestivo apelido de Pezão e, diziam, era daqueles que davam pontapé até na própria sombra.
Ciente de que precisava fazer algo para preservar as valiosas canelas de seu craque, Saldanha mandou, então, um mensageiro procurar o truculento zagueiro com um recado:
– O homem está a fim de te levar para uns testes no Botafogo. O problema é que você é muito violento e seu João prefere jogador clássico, que só joga na bola, como Nilton Santos. Não vá desperdiçar a sua grande chance.
A estratégia deu resultado. Final do jogo: Botafogo 5 x 0, com três gols de Mané Garrincha, um deles passando a bola por entre as pernasdo “refinado” Pezão, que vivia repetindo nos botequins por onde passava:
– Qualquer dia desses, seu João vai me chamar… Seu João vai me chamar…
Jesus chamou primeiro.
ACERTANDO OS PONTEIROS
por João Saldanha
A preocupação maior do futebol brasileiro no momento é a de atacar pelas pontas. Como se estes elementos essenciais, imprescindíveis do futebol nunca tivessem sido necessários.
Sim, incrivelmente houve quem julgasse assim. Mas se isso fosse uma verdade, o campo não teria as medidas mínimas de largura que são de 45 metros, mas que nas competições de primeira categoria são as da Copa do Mundo: um campo de 105 metros e fração por 68 de largura. Para que essa preocupação? Ora, um campo congestionado, estreito faz um jogo feio, desagradável, e ninguém vai ver.
Pois, incrível que pareça, andamos jogando sem pontas, sem utilizar todo o campo. Então, bastaria uma rua. Os campos de jogo poderiam ser como as piscinas, que só precisariam ser mais compridas. Claro, para que mais largo? Para que gastar tanto terreno que está aliás caríssimo, se não é utilizado? Pois este jogo era o que estávamos fazendo em termos de seleção e, como cópia, em quase todos os clubes. Lembram da seleção de 1974? Os pontas eram o Valdomiro e o Dirceu, bem recuados. Mesmo em 58, a ideia inicial era a de fazer o ataque com Joel e Zagalo, em detrimento de Garrincha e Pepe ou Canhoteiro. O acaso fez com que descobríssemos o caminho da mina. Garrincha entrou e, todo torto, endireitou o jogo.
Mas quem descobriu isto? Como entramos neste jogo que contrariava tudo? A resposta é simples, muito simples: puro espírito de imitação. Os técnicos da Escola de Educação Física viram os ingleses fazendo o 4-4-2 e instalaram a tática no Brasil. Não eram mais necessários os pontas. Então, abaixo os pontas? Bolas, os ingleses faziam isso, mas com seu alto estilo de futebol-escola e com um profundo sentido de deslocamentos. Mas a verdade é que o futebol de Stanley Mathews e de Finney, dois fabulosos ponteiros bem abertos, perdeu o lugar para o de Ball e Peters. Claro que, com os deslocamentos dos dois ponta-de-lança (Hunt e Hurst) e a entrada rápida de Bob Charlton, vindo de trás. Faziam isso para burlar a severa marcação por homem e líbero, do resto da Europa. Mas sempre foram surpreendidos por nós, mesmo quando não andávamos bem. Nosso jogo não estava no livro da League, então não podia ser! E pegamos eles de calça curta em Viñadel Mar, apesar de jogarem com calções compridos.
Nossos teóricos alegaram que vencíamos porque Zagalo atraía um inglês para nosso campo e ficava um buracão na defesa. Bem, (1) Zagalo não era positivamente a Lollobrigida (na época era a maior) para o inglês ir atrás; (2) Vavá fazia de ponta e (3) Garrincha esburacava e estraçalhava tudo pela extrema-direita.
Em 70, tínhamos Jair bem avançado e a correspondência de Tostão fazendo o ponta para Rivelino poder entrar pelo meio, onde estava Pelé.
Em 1974 foi ridículo e 78 é fresca memória: não levamos ponteis. A Argentina tinha dois: Bertoni e Ortiz ou Houseman. Pôde fazer muitos gols quando foi necessário atacar com todo o vigor, como nos jogos com Polônia e Peru.
A razão histórica desse jogo defensivo está nos regulamentos. Na Inglaterra trata-se de não perder fora de casa e ganhar no próprio campo. “Safetyfirst” (primeiro ficar são e salvo), depois, se pintar uma boa, tudo bem – um ataquezinho.
Entramos pelo cano. Nós e eles. Não apareceram nas duas ultimas Copas, e nós entramos mas não para perder, “safetyfirst”.
Em inglês diria William Shakespeare: “The cowisalreadygoingtosmud”. Em português é menos esnobe e a tradução literária nos diz: a vaca já está indo para o brejo.
Mas acordo feliz e esperançoso. Escutei no rádio e li no jornal que o treinador da seleção nacional está no firme propósito de atacar pelas pontas. O que significa atacar. Muito bem, muito bem, palmas. Deixamos de lado os ensinamentos de um livro obsoleto e a imitação cheia de mofo de nossa Escola, que necessita urgentemente rever seu currículo.
Também inventaram o cabeça-de-área como salvação e para permitir o avanço dos laterais que fariam os pontas. Estavam, e alguns ainda estão, a caminho do sanatório. O macaco deixou de namorar a girafa por causa de distâncias a percorrer. Estes coitados também são obrigados a abandonar sua intenção tática. E o cabeça-de-área é menos perigoso porque surgiu em 1930 com os uruguaios. Mas a origem era inglesa e, também em 1934, com os italianos. Os italianos caíram fora da velhice da tática. Os uruguaios ainda jogam com o cabeça-de-área. Já se sabe o resultado. Mas este é um problema fácil de resolver. A tática é muito velha. Basta um empurrãozinho que a velhinha se desmancha. O reconhecimento de que o caminho estava errado é o primeiro passo para descobrir o caminho certo. Nossa música é diferente da alemã, holandesa ou inglesa. Temos que tocá-la. Talvez os Beatles tenham nos influenciado em demasia.
Texto publicado originalmente na Revista Placar em março de 1979.
TORQUATO NETO, ADILSON CEVÔ E A FÁBULA DO GOL PERDIDO
por Marcelo Mendez
Torquato Neto
Domingo frio na minha ida para várzea. Uma manhã diferente.
Sob o espesso céu cinza e gelado do Parque Novo Oratório, caminhava eu rumo ao ponto do trólebus munido de fones e um som do John Lurie nos ouvidos. No bolso, um livro de crônicas do Torquato Neto e ouvindo “Chaucer Street” enquanto meu ônibus não vinha, comecei a reler Torquato Neto pela milésima vez.
Torquato…
Foi tudo na vida; jornalista, poeta, cronista, compositor, visionário e louco. No meio disso tudo ainda encontrou tempo para ser genial. Entre as suas ótimas provocações, uma me veio à mente enquanto pensava no jogo entre D.E.R x Comercial que eu cobriria pela Copa Uniligas. Disse Torquato, certa vez:
– Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela (…). Quem não se arrisca não pode berrar.
Já disse algumas vezes que o papel do cronista é nada menos do que o risco. A possibilidade de sair de casa e ver a Ilíada de Homero, e sair de casa e ver também o nada. Seja como for, vendo um ou outro, a crônica terá que sair, a história deverá ser contada, porque ela está aí, justamente aí onde o Torquato sugeriu:
Na necessidade de recriar as dificuldades. De não ter medo. De ter direito assegurado ao berro. Na várzea isso não falta, as histórias pipocam aos borbotões. Domingo ultimo, por mais que o contrário insistisse em prevalecer, a história se fez presente de maneira deliciosamente inesperada.
Vejamos então o jogo:
Era de uma pobreza técnica absurda e ululante!
Os times, tomados pelo frio Siberiano que fazia no campo do bairro Alves Dias em São Bernardo, nada queriam com o encanto, nem de longe estavam preocupados com a imortalidade que a várzea pode dar, tampouco corriam com aquela fúria do esfomeado ante uma coxa de frango, com os desejos de fome de um menino virgem apaixonado diante das imortais pernas de Angela Muniz em pornochanchadas insuspeitas, não!
Não!
Eles queriam apenas o óbvio.
Dentro da obviedade burocrática reinante, apenas empatavam em um 1×1 chocho. Nada demais acontecia. O Comercial de Ribeirão Pires, mais humilde, mais comportado, recuava suas linhas enquanto o D.E.R de São Bernardo, recheado de contratações com que há do melhor da várzea local, atacava, pressionava. No segundo tempo, com a força da entrada de seus reforços conseguiu a virada, primeiro com Max, segundo com Adilson Cevô, o craque. Recheado de todas as bolas do mundo Cevô seguia a risca o tratado burocrático e óbvio daquele domingo. Jogava e se consagraria decerto. Isso se não fosse a várzea.
Eis que vem a bola do fundo e Cevô está sozinho, de frente com o gol. Um metro de distância entre ele e as redes. Era empurrar, meter o quarto gol e se consagrar. No entanto, nesse momento, veio o berro do Torquato, veio a crônica, veio ela para o cronista que correu o risco…
Cevô, o craque, debaixo do gol, mete o pé na bola e joga ela às nuvens!
(Foto: Custodio Coimbra)
Sim! Foi um gol perdido de maneira vergonhosamente linda! Uma típica barbeiragem e nos pés do craque. Perdeu!
Foi um momento épico no estádio. O técnico de queixo caído, o vendedor de amendoim estático, o torcedor incrédulo, o mesário estupefato, as beatas de São Bernardo em choque; Ele perdeu! Grosseiramente, Cevô perdeu um gol feito, tal qual o maior dos grossos. Como perna de pau que não é Cevô perdeu um gol, mas salvou a crônica do domingo. Obrigado, Cevô!
Eu e Torquato Neto o louvamos por isso…