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“FOI AQUELE PRETINHO ALI, O CRIOULINHO, PEGA, PEGA!”*

por João Luiz Albuquerque, da Revista Placar, 1978


(Foto: Nana Moraes)

Foi em 1966, no verão. Mês de dezembro, pouco antes daquele temporal que derrubou metade do Rio de Janeiro. Eu trabalhava como cartola expert em soccer do New York Generals, da liga pirata do futebol dos Estados Unidos, o pai do Cosmos. Estava no Brasil para contratar jogadores, no melhor estilo do José da Gama, depois de ter levado, entre cinco outros, do Boca Juniors, o Luis Menotti, hoje técnico da seleção argentina.

Acho que foi o Didi que me levou à casa do Marinho Rodrigues, o técnico, ali no final do Leblon. A gente ia ter uma reunião para escolher uns dois ou três bons atacantes, um deles negro, pois se os home em New York não sabiam a diferença entre banheira e bidê, entendiam paca de marketing: queriam um artilheiro negro para tentar interessar o Harlem em soccer.


Como os clubes brasileiros tinham medo dos meus dólares piratas por causa de uma possível eliminação vinda lá da FIFA, a lista de nomes discutida na casa do Marinho era composta de craques que ficavam ali pela calçada da Rio Branco, em frente ao Cineac – era ali a antiga sede da Federação – na esperança de conseguir um contratinho de colchão de crina, canja de galinha e vales. Aí o Marinho me falou:

– Por que você não leva o meu filho? Ele tem 14 anos e joga num time na Venezuela de onde fui técnico. O garoto é bom de bola.

Olhei para o Didi pedindo ajuda, mas ele estava com cara de dia de treino matinal: fria, impassível, aquele olhar de ficar vendo a chaminé do navio pintar primeiro no horizonte. Pensei, poxa, logo o Marinho, um cara tão legal vir com esta conversa de cerca-lourenço querendo empurrar o filho. De 14 anos. Jogando num time da Venezuela! Filho de bom jogador nunca virava craque. O Marinho deve ter lido minha cara.

– Não é porque ele é meu filho, não. Ele tem um futebol para chegar à seleção. Vai ser um dos maiores jogadores do mundo. Você pega ele no caminho. Eu garanto.

Desconversei, acabei contratando o Adilson, irmão da Alaíde Costa. O nome do filho do Marinho que achei que ele queria me empurrar?

Paulo Cézar Lima.


(Foto: Reprodução)

Muitos anos depois ficamos bons amigos e não foi nem uma nem duas vezes que ele me gozou por causa desta minha bobeada. Da última vez em que jogou na seleção, há um ano atrás, tivemos uma longa conversa num banco descascado daquelas cavernosas e desagradáveis entranhas de São Januário. Paulo Cézar, naquela sua enorme sinceridade que poucos enxergam, foi lá no fundo de sua infância de menino pobre – põe pobreza nisso – buscar as razões da sua guerra particular contra tudo e quase todos. Sua carência afetiva é tão grande quanto seu futebol. Boto o cassete no gravador e deixo a fita rolar.

– Sei que tenho um temperamento muito difícil, estou sempre com a guarda alta, pronto a reagir ao primeiro bom dia, numa atitude de autodefesa exagerada. Eu fui muito bem educado por meus pais. Tenho consciência disso e acho que esta é uma das minhas maiores qualidades. Mas os outros pensam diferente, me provocam, me chamam de mal educado. Perdia a cabeça, dava o troco, revidava. São marcas muito profundas, são feridas não cicatrizadas que trago dentro de mim desde a infância. Quando criança, morava com a minha mãe numa vila em Botafogo, uma vila de pobre. Pertinho dali tinha outra vila, uma vila classe média. Era amigo dos garotos daquela vila vizinha que sempre me convidavam para jogar futebol porque o meu era muito melhor do que e o deles. Quando a bola chutada por um deles, aquele chute mal dado que sai torto, quebrava uma vidraça, já sabia que vinha ofensa pra cima de mim. Sempre saía alguém da casa atingida aos gritos de foi aquele pretinho ali, foi o crioulinho!!! Isso vai marcando a gente. Pobre sempre arranja um dinheirinho pra ter seu rádio, por mais que radinho que seja. Mas lá em casa, minha mãe não tinha nem dinheiro para isso. Já imaginou, não ter dinheiro nem para aquele que só pega estática?


– E eu, garoto, sem entender estas coisas e, ainda por cima, viciado em televisão. Seis da tarde e eu todo entusiasmado para ver o Zorro e o Falcão Negro, principalmente o Falcão Negro. Pedia, implorava aos meus amigos ricos que me convidassem para ver televisão. Como tinha muitos garotos nos rachas, eu pedia hoje a um, amanhã a outro, para não dar tanto na vista. Na minha inocência, eu achava estar naquela de não atrapalhar muito a vida na casa de ninguém. Às vezes deixavam, aceitavam meu pedido, outras até me convidavam. Eu não estava pedindo, afinal, nada de extraordinário, nada do outro mundo. Queria apenas ver televisão. Pois bem, você sabe que, muitas vezes, depois de ter acertado a ida à casa de um deles, durante a pelada de depois do almoço, eu chegava na porta da casa, chamava, ô fulano, ô fulano, ele vinha porta ou na janela e, sem jeito, muito sem jeito, me dizia: hoje não vai dar para você para você ver televisão aqui em casa. Mamãe disse que vem visita e ela prefere que você não esteja na sala quando elas chegarem. Quer dizer, tinha vergonha de ter um menino preto e pobre, ali, sentado no chão, juto com o filho, vendo televisão.


(Foto: Reprodução)

– São coisas que você nunca mais se esquece. E como marca. Bem menino, ainda, entendi que ser pobre, duro, negro, fazia diferença. Só era alguém, gente, na hora que iam me buscar em casa para ganhar o jogo para eles. Sofria demais por isso, sofro até hoje. Minha única arma de defesa passou a ser o futebol. E a de ataque, a agressividade. Não se deve, não admito que se trate mal uma criança. E não deve existir diferença entre rico e pobre, entre preto e branco. Tive uma infância dura, sofrida, pobre, mas sadia e maravilhosa. Tive todas as oportunidades para me tornar um marginal, mas não me perdi nem me perverti. Já me aconselharam a fazer análise pra resolver meus grilos, mas prefiro tentar superar tudo isso por mim mesmo. Como sou um cara muito difícil e fechado, seria quase impossível me abrir, mesmo para um analista.

 

*Box de João Luiz Albuquerque originalmente publicado na entrevista concedida por Paulo Cézar Caju para a revista Placar, edição de 7 a 13 de abril de 1978.

AS ÁGUAS DO MARACA

por Helio Brasil


16 de julho de 1950, Estádio do Maracanã (o tão carioca Maraca), Rio de Janeiro, decisão da Copa do Mundo de Futebol: a Seleção Brasileira, plena de talentos, favorita dos aficionados, é derrotada pela seleção uruguaia, pelo placar de dois a um. Bastaria o empate para que o Brasil se sagrasse campeão do mundo, porém…

Ah, se suas margens falassem… os estreitos lábios lodosos muito diriam do choro ali derramado no pior ano do mais fosco julho de nossas torcedoras vidas. E naquelas margens, mergulharam as cusparadas que não atingiram Ghigghiae as obdúlias garras. Ah, Maraca, ah Maracanã, fiapo de rio (risível ao lado dos amazônicos e iguaçudosfranciscos) a tangenciar o colosso dos colossos e a nossa (até então, orgulhosa) alma no templo da deusa-bola e do deus-demônio chamado craque. No trágico dia, os noventa minutos parcelados na decisão mundial: entrada de esperança, prestações de angústia, breve cota de euforia ao quebrar-se o gelo (é gol!) no calor de friaça (gol! gol!) após quase sessenta minutos de vergonhoso zero, no placar de zero (onde estás goleada?), pois para quem almeja vencer, chegar junto é derrota. Juntas, morrem na grama as prometidas fintas do mestre, as arrancadas do queixada; não funcionam as finas canelas que não mais detonam balaços. Quem os ignorou? Mas quem, quem o faria? Máspoli y sus muchachos. E o grande anel foi emudecido como já nos engasgara o gol de empate e nos calaram os pés de Ghigghia. O que restou de nossas miseráveis almas de náufragos, acusando goleiros e zagueiros, em vão culpados e execrados? Pobres, batidos por destino tão macanudo e adversários que, por todos os deuses ungidos, chamados serão, sempre, “maracanudos”?


(Foto: Reprodução)

E o indiferente rio vindo da serra, seguiu, carregando na torrente lágrimas, insultos e, em pedaços, as auriverdes esperanças afinal cuspidas e assoreadas na cintilante baía com fria e incrédula palidez. Hão de passar, passaram e passam as águas do maraca, sem que se lave o lodo da derrota preso na concreta garganta que jamais viu desnuda a tão sonhada glória.


(Foto: Reprodução)

Restou-nos cruzar atlânticos e cordilheiras e nas nórdicas paragens devolver humilhações, fazer tombar a arrogância. Deixar escravos, por fim, bola e mundo com os insolentes lençóis de um imberbe negrinho, peitar o mundo com a couraça pernambucana, secar as lágrimas nas folhas secas de um príncipe negro e, hosanas, garrinchar e garrinchar adversários, deixá-los torcidos na grama, provando a cal que assinala e desenha o verde campo de gloriosas pelejas.

A PRIMEIRA GOLEADA

texto: Sergio Pugliese | fotos: Guilherme Careca Meireles


PC e Tamba

Era aniversário do Grajaú Tênis Clube e Paulo Cezar Caju aceitou o convite do presidente Sergio Sapo para prestigiar o evento, mas ao entrar no salão de festas arrepiou-se como um felino acuado.

– Aquele ali é o Tamba? – me perguntou.

– O próprio – respondi.

– Ele não me traz boas lembranças….

– Como assim??? O Tamba é nota mil!!!!

– Trauma de criança…..

– Ele te bateu?

– Muito…….


(Foto: Nana Moraes)

Caju diminuiu o passo e congelou o olhar como se recordasse aquele embate pelo Campeonato Carioca, na quadra de futebol de salão da Associação Atlética Tijuca, de dimensões reduzidas e piso de cimento áspero. Era o alçapão de Tamba, mas PC representava as cores do Mengão e, aos 13 anos, já era marrentinho e tinha fama de craque. Jogava de ala e o “irmão” Fred, de parado. Ainda tinha Maina, de pivô, Maurício na ala esquerda e o goleiro Marcelo. Impossível perder.

– Vamos, PC! – tentei despertá-lo.

– Vamos…

– Por que vocês brigaram? – quis entender.

– Foi inacreditável – comentou, aumentando a minha curiosidade.

– Desembucha, PC!!!

– Levei um sacode de 6 x 2 e ele meteu quatro gols espíritas. Foi a primeira goleada que sofri na vida e me traumatizou.

– Caramba, PC, achei que o cara tivesse te embolachado.

– E embolachou….

Quem viu Tamba jogar sabe que os tais gols espíritas não tinham nada de espíritas. O cara era especialista em fazer gols sem ângulo. Pura técnica, zero sorte.

– Vamos lá falar com ele, PC. O cara nem deve lembrar mais disso. Quem bate, esquece – incentivei.

– Tomara…..


Com Tamba estavam outras lendas do futebol de salão: Serginho do Vila, Aécio, Adilson, Celsinho e Álvaro Canhoto. Ao chegar próximo, Caju curvou o corpo e esticou os braços para a frente, num claro sinal de reverência aos caras que foram os papas das quadras. E após os abraços e apertos de mãos, Tamba disparou, com um sorrisinho debochado:

– Recuperado, PC?

Caju me fuzilou com o olhar como se perguntasse “quem bate esquece?”.

– Recuperado de que, não estava doente – tentou despistar.

– Da goleada, PC!!! Hermes, Ademar, Zé Carlos Louro, eu e Zé Carlos……………

– Ah, tá, 6×2 só com gol espírita….

– 6×2, não, 7×1!!!!

– Peraí….6×2!!!!!

– 7 x 1!!!!


Aí o celular de PC toca, ele pede licença e vai afastando-se da rodinha….afasta-se, afasta-se, afasta-se até sair do clube. Da porta, discretamente, me faz um sinal e avisa que precisará ir embora. Ofereço carona e ele aceita. No carro, lembrou que estava no Flamengo quando o Botafogo, seu time de coração, aplicou aquela histórica goleada de 6 x 0, no Maracanã. E não se importou com a goleada de 7 x 1 da Alemanha no Brasil. Mas aquela de, para ele 6 x 2, o irritou profundamente. E entre uma bufada e outra, deixou escapar.

– Esse Tamba jogava pra caceta!!!!

CABELO NA HISTÓRIA DA BOLA PESADA E DO CORINTHIANS

por Rivelino Teixeira, do blog Coisas Boas do Esporte

No Brasil, a gente não valoriza nossos ídolos como eles deveriam ser.

O que faço no meu blog (www.coisasboasdoesporte e no programa Lance Livre (hoje exibido pela Canal 25 da Net Jundiaí e pela internet www.canal25.com.br) todos os dias é resgatar a história dessa turma. Muitos deles ficam esquecidos e isso não pode acontecer. Por isso parabenizo à todos e espero que não fique por aí. 

O futebol de salão ficará sempre marcado como o esporte da “bola pesada”, e para os que praticaram ou para os que acompanharam esta época da modalidade, nada será igual.

Em quadra grandes elencos e craques que desfilavam categoria, transformando tudo isso em emoção para quem assistia.

O espaço para demonstrar respeito para um dos grandes nomes do futebol de salão brasileiro nas décadas de 70 e 80, Sérgio Saad, ou simplesmente Cabelo.

Sérgio Saad nasceu em 4 de outubro de 1953, e com o DNA de craque, de esportividade e de vencedor.


Círculo Militar

Em competições, tudo começou com a camisa do Círculo Militar de São Paulo, entre 1965 a 1974.

Na década de 80 eu acompanhava os duelos dos times de Jundiaí enfrentando estes timaços de São Paulo jogando no Ginásio do Bolão. Antes os duelos contra o Unidos, e depois a Cosmar e o Morando de Ernestino, Sérginho Chagas, Manfrotti e tantos outros encarando as feras dos grandes da capital.

Cabelo era um destes que davam show em quadra. Na carreira guarda com muito carinho a passagem pelo Parque da Móoca, e foi lá que conquistou um dos títulos mais importantes de sua galeria, o de campeão do Torneio Internacional de Montevidéu.

Teve uma longa passagem com a camisa do Tricolor do Morumbi. Pelo São Paulo disputou vários campeonato promovidos pela Federação Paulista de Futebol de Salão, isso de 1974 a 1978.

Com a camisa do seu time de coração.


Com o Corinthians: Dr Geraldo, Garcia, Ney, Noventa, Edu, Edson, Ico, Zé Carlos, Agrela, Aldo, Oswaldão, Daniel, Cabelo, Medina, Mingo, Miltinho, Waltinho e Marcinho

Todos os momentos, todos os clubes que defendeu Cabelo guarda em sua memória como inesquecíveis, mas um clube ele não abre mão de destacar que foi especial, o Corinthians.

Cabelo não esconde de ninguém que é apaixonado pelo clube de Parque São Jorge, e foi com a camisa alvinegra que viveu momentos emocionantes.

Na década de 80 ficou com o vice campeonato brasileiro perdendo na decisão para o SUMOV do Ceará, uma das forças do futebol de salão na época.

Em 1980 levantou a taça de campeão paulista ao vencer na final o clássico contra o Palmeiras. Neste elenco do Timão, nomes que estão marcados para sempre como Medina, Minguinho, Ico e outros.


Corinthians 80: Rafael Garcia, Pedrão, Ico, Aldo, Noventa, Luigi, Samuka ??, Marcio Leite, Zé Carlos,Cabelo, Milton Ziller, Ney— com Marcelo Pazzini e Marcio Basso.

Futebol de Salão X Futsal

Afinal futsal e futebol de salão é a mesma coisa? Ou futsal é uma abreviação de futebol de salão? Tecnicamente é o mesmo esporte.


Cabelo e Carlos “Ramon ” -Zé José Roberto Tammaro ,-São Paulo F.C . 1972

O futebol de salão surgiu na década de 30, precisamente em 1934. O autor da invenção seria o professor uruguaio, Juan Carlos Ceriani Gravier. Nos anos 30 a seleção uruguaia de futebol de campo era referência no futebol mundial, pois era bicampeã olímpica e mundial. Desde a sua criação, a FIFUSA (Federação Internacional de Futebol de Salão) era quem dirigia o futebol de salão. Já o futsal surgiu entre a década de 80 e 90, no resultado entre a fusão do futebol de salão e o futebol de cinco. A junção e mistura dos dois, foi criação da FIFA (Federação Internacional de Futebol), que mudou as regras do futebol de salão e passou adotar a modalidade chamada futsal.

Ainda na década de 80, o futebol de salão era administrado pela FIFUSA, porém a FIFA propôs a unificação das duas entidades. O acordo de junção não se concretizou e a FIFA alterou o nome para futsal, criando novas regras para o esporte. Assim a Confederação Brasileira de Futebol de Salão (carrega esse nome, mas utiliza as regras do futsal) se filiou a FIFA. Os campeonatos mundiais de futsal são todos organizados pela Federação Internacional de Futebol.

Com a palavra, Cabelo:

“Seria difícil pros caras de hoje jogarem como antigamente, onde o pau comia, e não tinha essa história de proteger os boleiros, nada de goleiro-linha, gol só de fora da área, lateral com as mãos, e outras cositas mais,. kkk”


Em Família

Hoje

Sérgio Saad hoje reside em Cotia, na Grande São Paulo. não abre mão de recordar os grandes momentos de sua vida pelo futebol de salão e de um bom bate-papo com os velhos amigos do esporte. É casado com Martha Saad e tem três filhos, e trabalha como administrador de empresas.

Sérgio Saad, o Cabelo, fera nas quadras, e nunca será esquecido por tudo que fez pela bola pesada!!

 

Texto publicado originalmente no Blog Coisas Boas do Esporte, de Rivelino Teixeira.

CLAUDINHA PERIGO

por Paulo Oliveira, do site Meus Sertões


No campo de batalha, a mais valente das soldadas transforma o perigo em uma sensação maravilhosa que só quem está dentro do fogo é capaz de sentir. Faísca, chamas e explosões fazem Claudia Regina Damacena dos Santos ganhar mais coragem. Ela se joga no chão, levanta, deixa as bombas explodirem na mão. Os riscos a libertam da dureza dos dias em que não está vestida com a farda do Forte Humaitá, mostrando suas habilidades. É ela que atrai um número maior de fãs no São João da cidade de Barra, na Bahia, às margens dos rios São Francisco e Grande.

Claudinha Perigo, como é conhecida, carrega no peito duas cruzes. Uma delas, presa a um cordão, mandou pintar nas cores verde e amarela, a mesma da Agremiação Folclórica Humaitá, fundada em 1892, e que serviu para unificar a tradição de “comer fogueira” com um evento histórico, a Guerra do Paraguai, onde seus conterrâneos lutaram.


A outra cruz está dentro, perto do coração, e é vermelha. Desde que viu pela primeira vez, pintada em uma caravela em uma camisa preta e branca se apaixonou a ponto de transpô-la para sua alma. E mais tarde para o corpo, tatuando o escudo do Vasco na perna; para o vestuário e para casa, onde exibe lençóis, toalhas e o que mais lembrar o time carioca, que nunca viu jogar em um estádio e não consegue acompanhar na televisão porque o sinal de seu aparelho é fraco.

FORTES E BATALHAS

Para entender melhor a saga de Claudinha é preciso voltar no tempo. O ex-presidente, melhor seria dizer comandante, e mestre fogueteiro do Humaitá, Francisco dos Santos, o Chiota, conta que no século XVIII, Barra celebrava a fartura das colheitas acendendo fogueiras, tradição criada pelos franceses e trazidas para o Brasil pelos portugueses.

Na cidade, os produtos da roça eram amarrados em galhos de árvores, fincados no chão. Em torno deles fazia-se uma fogueira. Quando o fogo derrubava o galho, os organizadores e seus familiares, avançavam para pegar milho, batata-doce, frutas e até dinheiro que estavam presos na ramada. Esta brincadeira era chamada de “comer fogueira”.


Paulo Oliveira e Claudinha Perigo

Ocorre que alguns espertos passaram a saquear os galhos antes das fogueiras derrubá-los. Desta forma passaram a “comer fogueira no cru”. Quando as famílias resolveram se defender, colocando homens com porretes para evitar o furto das prendas, os saqueadores criaram uma estratégia para burlar a segurança: dividiram-se em dois grupos. O primeiro soltava buscapés na direção dos protetores dos galhos, enquanto o segundo pegava os produtos.

Em 1890, o major-médico Augusto César Torres, barrense que participara da Guerra do Paraguai, assim como os 29 voluntários da pátria,  80 integrantes da Guarda Nacional lotados no município e dezenas de pessoas alistadas à força, testemunhou uma disputa na fogueira da influente família Araújo e comparou o fato a uma batalha:

– Tanto fogo assim, só se viu na tomada do Forte Curuzu.

Dois anos depois foi fundado o clube que ganhou o nome da fortificação. Foi a primeira agremiação a desfilar no dia 23 de junho para celebrar o que considera um marco de resistência histórica: as batalhas que dizimaram a população paraguaia.

Em 1894, surgiu o Humaitá, e em 1905, famílias tradicionais de Barra do Rio Grande criaram o Riachuelo. A quarta agremiação, Avaí, teve vida curta. Os clubes folclóricos adotaram as cores que teriam sido usadas nos uniformes das tropas brasileiras. 

Assim como no futebol, surgiu uma imensa rivalidade por questões geográficas, familiares e por classes sociais. A disputa para ver quem tem maior poder de fogo já fez muitos feridos e, pelo menos, um morto em todos estes anos. No entanto, Barra mantém a tradição

NASCE A PERIGO


Claudinha era uma menina muito levada. Brigava muito e levava a melhor na maior parte das vezes. Ela conta que um dia estava no banheiro e a boneca de uma colega caiu no vaso sanitário. Sabendo que seria acusada de jogar o brinquedo na latrina, saiu correndo e pulou quatro cercas. Até hoje não sabe onde conseguiu impulso para a façanha. O pai da outra guria  então colocou a alcunha que permanece até hoje.

– Perigo é só apelido. É porque eu atentava muito quando era criança, mas graças a Deus em coisa errada não me meto – diz.

Ainda muito jovem passou a torcer pelo Humaitá, agremiação preferida por seus pais Alberto de Jesus dos Santos, seu Betinho, e Maria dos Anjos Damacena dos Santos, que moravam próximo do “forte”.


Durante o desfile, as agremiações são divididas em alas. Na frente, a linha de fogo. São de 40 a 120 soldados, vestidos com botas, casacas e calças de brim resistente, luvas de couro e capacetes. Eles carregam latas com, no máximo, 20 buscapés, que precisam ser reabastecidos durante o desfile. Ano passado, só o Humaitá soltou 3.200 fogos, feitos com limalha de ferro e pólvora.

Os buscapés levam entre cinco e sete segundos soltando labaredas. Ao final, explodem. Ao contrário das espadas da cidade de Cruz das Almas, que são soltas no chão por seus cavaleiros, os fogos não podem sair das mãos dos soldados, em Barra.

Após a infantaria, vem a cavalaria (o Riachuelo por se referir a uma batalha naval não tem esta fileira), a fanfarra, a ala das moças representando as heroínas da guerra, pelotões de estudantes e escoteiros e carros alegóricos que homenageiam personagens e fatos históricos. Em 2017, o centenário do Mercado Municipal será lembrado.


Quando decidiu se alistar no Humaitá, há cerca de 25 anos, Claudinha Perigo, 43, optou pela cavalaria. Até que um dia não conseguiu encontrar um cavalo para alugar e passou para a linha de fogo. O Humaitá ganhou a soldada mais valente entre os 200 praças que abrem os desfiles das três agremiações. Perigo já foi chamada para o Curuzu, mas não aceitou integrar as fileiras do rival.

Mesmo com problemas sérios nos joelhos que precisam ser operados, ela se agacha, deita no chão e se movimenta muito, sempre segurando dois buscapés que soltam lâminas de fogo. Já chegou até a colocar um deles na boca, correndo o risco de se ferir gravemente e perder os dentes. Deixou de fazer isto porque a mãe ameaçou tirá-la da tropa. Embora jure só ter feito uma vez, a irmã Marivânia diz que ela se arriscou de novo, recentemente.

SALGADINHOS SEM ZOAÇÃO

Longe das selfies nos dias de desfile e de convites para mostrar suas habilidades em datas como o Dia do Trabalho, Claudia vende salgadinhos, doces e sucos na porta do centenário Colégio Santa Eufrásia.


É fácil de ser reconhecida por ostentar dezenas de tatuagens, piercings, cordões e paixões. Não permite que zoem quando o assunto é o Humaitá e o Vasco, cujo escudo carrega tatuado na batata da perna. Também traz no corpo – barriga e mãos – as marcas de cinco queimaduras obtidas na linha de fogo.

Seu sonho é ver um jogo em São Januário e fazer uma exibição com os fogos no estádio que serviu de palco para seus três maiores ídolos. Na ordem: Pedrinho, Romário e Edmundo. Pela equipe cruzmaltina deixa de lado a paciência que cultivou nos últimos anos e, às vezes, discute.

– Por causa do Vasco já me aborreci porque o povo começa a me perturbar. Eu fico de boa, não gosto de zoar ninguém, mas sou danada. Não me provoque!

Em seguida, emenda como um chute certeiro:

– Sou vascaína ganhando ou perdendo; com o time na segunda, na terceira ou na quarta divisão!

Há 15 anos carrega o escudo e está juntando dinheiro para fazer uma Cruz de Malta, embora a mãe diga que não há mais espaço no corpo de Claudinha para tatuagens.

Sua explicação para não torcer por times baianos é bem simples:

– Bahia e Vitória não fazem meu tipo.

O arsenal vascaíno inclui quatro camisas, duas toalhas de banho, lençol, copo e outras pequenas lembranças. Se a família a fez gostar do Humaitá, ela fez os pais, irmã, cunhado e sobrinho se transformarem em cruzmaltinos.

“Sou fanática, Ave Maria. Quando o Vasco perdeu para o Palmeiras, fiquei retada. Quatro a zero não pode, moço. Só fui trabalhar porque não tinha jeito”.

Trabalho para Cláudia significa preparar coxinhas, rissoles, pães de queijo, bolo de chocolate, tortas e sucos durante a madrugada. Ir dormir às 3 horas da manhã e sair, pedalando sua bicicleta, às 6h30.

No caminho até o colégio para diversas vezes a fim de atender clientes. Essa batalha diária tem menos graça do que as que são travadas nas ruas de Barra e nos estádios.