DE PARIS TEXAS ATÉ O JARDIM DETROIT E ALGUNS ENCANTOS DE VÁRZEA…
por Marcelo Mendez
Amanda Perobeli
E tal e qual Harry Dean Stanton procurando por Nastassja Kinski pelo desertão do Texas, lá fui eu, cronista improvável, caboclo poético, entidade lúdica contumaz e renitente em busca de lirismo pelos campos da Várzea do ACDB. Dá para dizer que a paixão é a mesma. Claro…
Stanton no seminal filme “Paris Texas”, do ótimo Wim Wenders, lutava para encontrar sua loira venusiana com aqueles lábios imortais pelo calor dos Estados Unidos, em botecos de strip-tease dantescos. Pode parecer muito mais louvável do que eu em busca de um bom jogo de bola, mas garanto a vocês que não é de jeito algum algo menor.
Há em um campo de terra batida da várzea a grandiosidade de batalhas épicas. E assim fui:
Estrela D x Corinthians de São Bernardo no campo do Jardim Detroit.
Fui acompanhado da boa paz de Seu Renato, o motorista que por lá nos levou, e por aquela que nem me fez ter inveja do Stanton. Afinal de contas, se ele procurava pela Nastassja Kinski sem encontrá-la de forma pelo Texas, eu de cara já encontrei minha amiga Amanda Perobelli para dar um pouco de charme para essa onda toda.
Amandinha é muito mais que fotógrafa, ela é Bob Gruen assoviando Mutantes, é Richard Kern de tênis Puma colorido ao som de Suffragette City pela Marechal Deodoro. Amandinha de coturno, parada com a mão no bolso de trás da calça jeans, olhando para o quadro de aviso da redação, é a versão mais Rock And Roll do que pode vir a ser a tal da “paz do seu sorriso”. Chegamos juntos no Campo de terra batida e ela que me diz:
– Marcelo, olha essa poeira. Não parece o Saara?
Nessa hora vi ali, sob calor absurdamente escaldante, rostos suados, ares contritos, olhos em suspensão esperando pela catarse que vem a cada bola dividida na várzea. Assistindo àqueles garotos disputando ali seus sonhos mais simples e mais rotundos debaixo daquela pesada cortina de poeira, de terra seca castigada pelo sol do verão impiedoso, ficou simplesmente impossível não me emocionar.
Descobri naquele instante que amava aqueles homens inadvertidamente.
Se eu fosse um Allen Ginsberg faria dessa crônica um verso de “Uivo”, seu livro antológico. Como sou muito menos genial que ele, apenas me emociono. Me deixo levar por uma paixão intrínseca que me faz querer mais e mais e muito mais dessa sensação boa que o futebol de verdade, esporte autêntico, é capaz de despertar no mais incauto dos homens.
Meninos eu vi…
Vi as boas arrancadas do esperto meia Roni, do Corinthians de São Bernardo, bailando lindamente por entre zagueiros pérfidos, perdidos, pálidos e resolutos de seu destino de apenas serem coadjuvantes da obra de arte que foi o gol da vitória marcado pelo camisa 6. Eu vi…
Vi o técnico Reinaldo, do Estrela D, vociferando labaredas de fogo, flamejantes, ácidas como a guitarra de Alvin Lee, com a fúria santa de um Caravaggio… Contra todas as caneladas e bicos que seu time dava para o nada absoluto:
– Maciellllllll… Se você não colocar essa bola no chão e sair jogando eu te mato!!!
Eu vi a terra batida se formar em uma espessa nuvem marrom de poesia e encanto e de dentro dela emergir jogadores de futebol de uma decência, de uma retidão de caráter comovente. Diante disso tudo, pouco importa o placar da coisa toda. Quem vai querer saber daqui a 50 anos do resultado de um jogo de futebol, seja ele qual for? Não é isso que faz do futebol algo imortal. O que o torna diferente são as emoções.
Estas são de uma eternidade mais veemente que os decotes de Mae West.
Vão por mim…
INFELIZMENTE, CURADO
por Zé Roberto Padilha
O mais bacana no futebol é a paixão. Desmedida, então…. Ter o direito de escolher um lugar na arquibancada, vestir a camisa do seu clube e assumir aquela breve loucura que lhe dá o direito de abraçar com ardor, o dono da camisa ao lado, esteja vestida em quem for, xingar o juiz, ofender o zagueiro adversário e deixar que o resultado guie pelas próximas horas os rumos do seu sentimento. Feliz ou chateado, depende de quem acertou aquela bola na veia e correu para o abraço. Agora, vá se vestir de Pato da FIESP e ir para a Avenida Paulista cruzar com o boneco do Lula com uma bandeira vermelha nas mãos…..
Dezessete anos correndo atrás da bola, defendendo sete equipes em quatro estados diferentes me roubaram esta preciosa emoção. A realidade dos cartolas insensíveis, a fria concentração, o tapinha nas costas que vai virando com o tempo ostracismo na alma, nos roubou a parte mais bonita do imponderável. Não há fantasia que resista a uma barração na portaria de um clube que você entregou seus meniscos, fraturou seus tornozelos e ajudou a erguer sete títulos. Quem viveu o mundo da bola sabe que paixão por lá é sinônimo de ingratidão.
E quando o Ramon acertou aquele tiro cruzado, dando a vitória ao Vasco, não fiquei triste como deveria sendo torcedor tricolor desde garotinho. Pensei no contrário, o Léo nos dando a vitória e o Vasco ficando a um ponto da zona de rebaixamento. Outra vez. O futebol carioca, o brasileiro, não pode ficar sem o Vasco para nos lembrar sempre das nossas origens. De mais um navegador português que passou ao largo do nosso descobrimento e encontrou um caminho alternativo, contornando a costa africana, apara alcançar as preciosidades das Índias. E como apagar do futebol a história de Ademir, Barbosa, Andrada e Roberto Dinamite? Quando dei por mim torcia pelo conjunto da obra futebol movido pela razão. E a paixão tricolor foi posta de lado, não havia mais espaço dentro de mim para a emoção. Que pena!
Bom mesmo era ser tricolor doente, discutir com o André Seixas, rubro-negro, provocar o Décio Barbosa, botafoguense, e buscar na Internet outra piada de vice para sacanear o Professor Filipe. Mas sábado à tarde descobri, no hospital da minha sala em meio a Fluminense x Vasco, que não sou mais um torcedor doente como o meu amigo Andmar Andrade. Recebi alta de uma fria junta médica formada pelos dos deuses da bola e estou curado. Bom para o jornalismo que terá relatos isentos. Pior para mim que perdi a parte insana a que tinha direito no meio de uma multidão encoberta pelo fascínio de um pó de arroz.
Romerito
O GRINGO DAS LARANJEIRAS
texto: Marcello Pires | fotos: Marcelo Tabach | vídeo e edição: Daniel Planel
Os tricolores nascidos até a década de 60 certamente nutrem um carinho todo especial pelo atacante Narciso Doval, autor do gol contra o Vasco que deu à famosa Máquina Tricolor o bicampeonato carioca de 76, já os mais jovens são – ou eram, pelo menos até Conca se transferir para o Flamengo – quase unânimes em apontar o meia argentino como o principal estrangeiro a atuar pelo Fluminense. Mas nenhum outro gringo fez tanto sucesso nas Laranjeiras como o paraguaio Julio César Romero, que completa 57 anos hoje. Carismático, Romerito uniu todas as gerações e se tornou um dos maiores ídolos da centenária história do clube. Independentemente da idade, não há um tricolor vivo que não idolatre o herói do título brasileiro de 1984, também numa decisão contra o clube de São Januário.
Isso ficou claro no último dia 20 de julho, véspera do aniversário de 115 anos do Fluminense Football Club. Entre um pedido de autógrafo ou de uma simples foto, Dom Romero atendeu gentilmente a reportagem do Museu da Pelada. Com uma camisa grená com o escudo do clube do lado esquerdo, a simplicidade de sempre e um portunhol que já virou sua marca registrada, o paraguaio foi para o ataque e não se esquivou de nenhuma entrada mais forte.
Nem mesmo a lembrança da famosa frase “Eu quero meu dinheiro”, que virou praticamente um hit entre os torcedores de todos os clubes na década de 80 e que até hoje o persegue, foi capaz de tirar o bom humor do eterno ídolo tricolor.
– Não tem nada de verdade! Isso foi uma invenção do Washington Rodrigues, que há uns dois ou três anos me ligou para pedir desculpa por essa frase. O Fluminense nunca me deveu um tostão. Ao contrário, eu que devo tudo ao Fluminense. Mas têm sempre os dois lados da moeda. Enquanto muitos levavam isso na brincadeira, outros falavam com maldade sim e ficou chato. Isso nunca foi verdade e ficou parecendo que eu era um mercenário. Por isso que sempre desminto essa história e digo que sou grato ao Fluminense – explicou Romerito.
Se esse episódio fez muito barulho na época e ficou marcado na vida do paraguaio, o que pouca gente sabe é que se não fosse o prestígio de Carlos Alberto Torres, seu ex-companheiro no Cosmos, dos Estados Unidos, de 1980 a 1983, provavelmente Romerito teria desembarcado em outro endereço do Rio de Janeiro. Curiosamente São Januário, sede do clube que ele mais maltratou na sua passagem pelo Brasil.
– O Torres tinha conversado comigo nas férias do Cosmos e disse que queria me trazer para o Fluminense. Falei que seria uma honra não só pela oportunidade de jogar num clube do Brasil como o Flu, mas principalmente pelo que ele representava para mim. Era como meu pai e uma pessoa muito querida. Ele me disse que em dois dias me ligaria novamente para confirmar os valores da proposta, e eu respondi que estava tudo certo e que só precisava falar com meu pai e minha mãe, pois naquela época não tinha nenhum representante. Até que duas horas depois me ligou o Calçada se apresentando como presidente do Vasco e dizendo que queria me levar para São Januário. Não sei como ele soube que o (Manoel) Schwartz queria me trazer para o Flu, porque foi uma situação sigilosa. Agradeci o interesse e disse que em dois dias daria uma resposta porque primeiro tinha que falar com o Carlos Alberto Torres. Mas quando o Calçada voltou a me ligar eu disse que já tinha acertado com o Fluminense. Acho que foi por duas horas de diferença que acabei nas Laranjeiras. E um dos gols mais importante da minha carreira foi justamente o do título brasileiro (risos) – lembrou o carrasco vascaíno na decisão do Campeonato Brasileiro de 1984.
Mas não foi só para o Vasco que Romerito disse não. Um ano antes de praticamente ser obrigado pelos dirigentes tricolores da época a se transferir para o Barcelona, da Espanha, em 89, o paraguaio se recusou a jogar pelo Flamengo.
– Eu nunca quis sair do Fluminense, por mim teria encerrado a carreira nas Laranjeiras, mas o Fábio Egypto e o José Carlos Vilella me obrigaram a ir para o Barcelona. Assim como um ano antes eles quiseram que eu fosse para o Flamengo. Mas disse que no Rio eu não iria nem para o Flamengo, nem para o Vasco e nem para o Botafogo, por respeito à torcida tricolor. Eu amo o Fluminense e jamais iria jogar no Flamengo, aí sim que eu seria mercenário – afirmou Romerito, que condenou a ida de Conca para o rival, mas aliviou a escolha de Fred pelo Galo.
– Eu não aceitei pelo carinho que tinha pela torcida e a torcida por mim. Eu falei para a diretoria do Flamengo na época, “me desculpa, mas no Flamengo eu não vou jogar”. Eu acho que o Conca errou. Não como profissional, mas como pessoa, porque ele é um ídolo do clube. Ele foi por muito tempo um espelho para as crianças e de toda a torcida tricolor. Não gostei porque sempre o admirei muito e ele era uma representação muito grande do Fluminense. A saída do Fred me deixou triste também, mas sorte que ele não foi para o Flamengo (risos). Foi para o Atlético-MG, aí tudo bem, ele é profissional e não é um rival direto do Fluminense.
Se das arquibancadas Romerito sofre e corneta como qualquer torcedor, em campo ele afirma que só se divertia. Mais do que os 57 gols em 211 jogos com a camisa tricolor e os títulos do Campeonato Brasileiro de 84 e do bicampeonato carioca de 84 e 85, ficaram as lembranças, as amizades e a imensa saudade de Assis e Washington, que infelizmente partiram muito cedo
Mas a parceria com o Casal 20 não foi a única que deixou saudade em Romerito. Para quem considera o Fluminense maior do que o Barcelona, aquele elenco que teve Carlos Alberto Parreira, Carlos Alberto Torres e Nelsinho como principais comandantes no início da década de 80 está eternizado no coração do ídolo paraguaio.
– Não só o Assis e o Washington. Tive outros grandes parceiros como Branco, Jandir, Paulo Victor, um amigo que considero como um irmão, Vica, Aldo, Leomir, esse grupo era muito unido. Nós éramos amigos, mas o Casal 20 deixou muita saudade pelo que ele representava para o Fluminense e pelo carinho que tinha pelo clube e pela torcida. Aquele grupo foi muito especial, o melhor que conheci dentro do ambiente do futebol. São pessoas sensacionais e que eu nunca vou esquecer. O Fluminense é o clube que mais amo e me fez torcedor, o Fluminense representa tudo para mim. Esses jogadores eram espetaculares e eu acho que nenhum outro clube vai ter um elenco tão espetacular de pessoas como aquele que teve o Fluminense na década de 80 – recorda, saudoso, o ex-camisa 7.
Mas nem só de conquistas e lembranças inesquecíveis foi a passagem de Romerito pelo Fluminense. A campanha decepcionante na Libertadores de 85, quando o clube acabou eliminado ainda na primeira fase, está engasgada na garganta até hoje.
– Podíamos ter ganhado a Taça Libertadores se o pessoal tivesse se envolvido realmente com a competição. Naquela época a Libertadores no Brasil não tinha a mesma importância de hoje. O Brasileiro e o Estadual eram muito mais importantes e eu acho que o clube precisava de mais profissionalismo naquele momento. Tanto nós jogadores como os dirigentes. Mas tenho certeza que se existisse a Copa do Brasil naquela época nós iríamos ganhar também – disse o craque paraguaio, que também não esconde a frustração por nunca ter marcado contra o Flamengo, seu adversário favorito em terras brasileiras.
– O time que eu mais tinha vontade de ganhar era o Flamengo, apesar de nunca ter feito gol no Flamengo. Isso me incomodava, mas sempre jogava muito. Chutei na trave, dei cabeçada, corria o campo todo como louco, mas pelo menos conseguimos muitos títulos em cima deles. O Vasco era freguês, assim como América, Botafogo e Bangu, O Fla-Flu é diferente, o maior clássico do mundo. O Maracanã fica diferente, as pessoas, os jogadores, o Flamengo saiu do Fluminense, tem muita coisa envolvida dentro de um Fla-Flu.
A trajetória de Romerito com as cores verde, branca e grená foi tão significante que a bola que teimou em não entrar contra o Flamengo pelo visto só fez falta para ele mesmo. O torcedor tricolor pouco se importa, tanto que até personagem de livro o paraguaio virou. Mais que isso, o eterno camisa 7 do time tricampeão carioca de 83/84/85 é atualmente um dos embaixadores do clube nos jogos fora do Rio e do Brasil, iniciativa, que, segundo o próprio, surgiu de uma sugestão sua ao ex-presidente Roberto Horcades.
Romerito e Marcello Pires
No entanto, talvez nada tenha sido tão significativo quanto um pedido feito ao então presidente Arnaldo Santhiago. A vontade de retornar ao clube nos anos 90 era tão grande, que Romerito chegou a se oferecer para jogar de graça.
– Eu sempre pensei em voltar e falei uma vez com o Arnaldo Santhiago que jogaria sem receber salários, que se precisasse dormiria nas Laranjeiras. Eu queria ajudar o Fluminense jogando, estava bem ainda, mas eles não quiseram. Ele nem cogitou a possibilidade. O Fluminense mudou minha vida, minha forma de pensar em relação ao futebol brasileiro, mudou tudo. O carinho que tenho pela torcida e pelas pessoas dentro do Fluminense é muito grande. Eu adoro o Fluminense. Sofro muito mais como torcedor. Quando jogava eu me divertia, agora não me divirto mais. Não posso ajudar do lado de fora, só xingando mesmo (risos). Fico muito agradecido por não ter jogado em outro clube – finalizou Romerito, que quase não tem tempo para jogar uma peladinha e que sequer pensa em se tornar dirigente e tampouco treinador de futebol.
Búfalo Gil II
BÚFALO TRICOLOR
| texto: André Mendonça | fotos: Marcelo Tabach | vídeo: Guillermo Planel | edição de vídeo: Daniel Planel
“O melhor momento da minha carreira foi no Fluminense. Joguei em um timaço, com grandes companheiros e pude chegar à seleção”. Depois dessa frase, tivemos a certeza de que não havia lugar mais apropriado do que as Laranjeiras para uma resenha de alto nível com Gilberto Alves, o lendário Búfalo Gil, ponta da Máquina Tricolor. Em um papo regado a muita cerveja, que contou com a participação de nosso colaborador Walter Duarte, de Campos, e durou quase duas horas, o goleador não fugiu de nenhuma pergunta e relembrou grandes momentos da carreira.
Para chegar ao Fluminense, no entanto, Gil precisou se destacar no Vila Nova-MG em 73. Com uma velocidade impressionante e muita força, características que lhe renderiam o apelido de “búfalo” anos mais tarde, o atacante deixava os marcadores para trás com facilidade e só tinha o trabalho de deslocar o goleiro e correr para o abraço.
No ano seguinte, contratado pelo Fluminense com status de grande promessa, o menino de 22 anos correspondeu às expectativas e fez um excelente Campeonato Carioca. O desempenho garantiu uma vaga na Máquina Tricolor, um time que jogava por música e encantava até mesmo quem não gostava do Fluminense.
– Aquele time era brincadeira! Dos 11 titulares, dez eram da seleção brasileira e o Doval, da argentina. Minha única tristeza foi não ter sido campeão brasileiro pelo Flu, batemos na trave duas vezes – lamentou o craque, lembrando das eliminações para Internacional e Corinthians.
No Fluminense, formou uma grande parceria com Rivellino, craque que encantava os companheiros e os adversários pela forma como tratava a bola. De acordo com Gil, após um treino nas Laranjeiras, Riva lhe chamou para combinar uma jogada que, colocada em prática, renderia muitos gols ao tricolor. Tratava-se das infiltrações do veloz atacante por trás da zaga.
– Ele falava para eu correr só quando ele não estivesse me olhando, porque na verdade ele já me conhecia e, dessa forma, surpreenderia a defesa rival. No início não entendi muito bem, mas logo percebi que era coisa de gênio!
Os lançamentos milimétricos de Riva encontravam o menino cheio de gás sem marcação e logo se tornaram uma arma poderosa daquele timaço. Dizem por aí que os zagueiros nem conseguiam dormir no dia que antecedia as partidas contra o Fluminense.
Cientes da qualidade da Máquina Tricolor, que não por acaso ganhou esse apelido, os times adversários costumavam ficar na retranca em busca de um contra-ataque para decidir a partida. Quando Gil falava sobre isso, Walter Duarte, torcedor do Goytacaz, fez questão de perguntar sobre uma das maiores goleadas já registradas no Campeonato Carioca.
– O Goytacaz veio com a proposta de jogar de igual para igual contra a gente e, com todo respeito, não dava, né? Nem os times grandes conseguiam! O nosso time era bom demais! Aí deu no que deu… O placar registrou 9 a 0, mas tenho quase certeza que foi dez – lembrou o artilheiro que marcou três gols naquele massacre no Maracanã.
O sucesso levou Gil à seleção brasileira em 76. Naquele ano, ajudou o Brasil a vencer a Itália por 4 a 1, marcando dois gols, pelo Torneio Bicentenários dos EUA. No ano seguinte, se transferiu para o Botafogo e as boas atuações lhe renderam a convocação para a Copa do Mundo de 78, na Argentina.
O torneio é considerado até hoje um dos mais polêmicos da história por conta da estranha goleada da Argentina sobre o Peru, que garantiu a classificação dos hermanos.
– Essa foi a “Copa do Roubo”, né? Se a gente ganhasse de dez, a Argentina ganharia de 12! Foi a única vez que eu chorei pelo futebol. Dizem que cada jogador do Peru recebeu 150 mil dólares para entregar aquela partida.
Além disso, Gil revelou que as polêmicas começaram muito antes da bola rolar:
– Quando desembarcamos na Argentina para disputar a Copa, João Havelange, presidente da FIFA na época, nos recebeu, disse que estava muito feliz com a gente, mas nos revelou que queria que a Argentina fosse campeã. Aquilo pegou muito mal entre a gente. Ninguém entendeu nada!
Já nervoso após lembrar um dos episódios mais revoltantes da sua carreira, o craque chutou o balde ao ser perguntado sobre a polêmica de que os jogadores do passado não teriam vaga hoje em dia:
– Se a gente não jogaria hoje, eles (jogadores atuais) não teriam condição nem de entrar no nosso vestiário. Eu era forte, batia bem na bola… Duvido alguém correr 100m em 11 segundos como eu fazia!
A resenha só teve fim porque ia rolar a festa de aniversário do Fluminense, com grandes ídolos do clube, e o artilheiro não poderia ficar de fora dessa. A equipe do Museu da Pelada também não!
O APELIDO
por Claudio Lovato
Então ele decidiu: se continuassem a lhe chamar por aquele apelido, ele abandonaria o time.
Ele gostava muito de jogar no time – todos amigos, todos na faixa dos 15 anos, vizinhos desde que nasceram, criados na rua 8 de Abril, e o treinador era o pai do Vinícius, que havia sido profissional.
Mas aquele apelido… A coisa tinha ficado insuportável para ele.
No dia seguinte à tomada de decisão – véspera da partida que poderia levá-los pela primeira vez à final do campeonato do bairro –, ele chamou todos para uma conversa franca antes do bate-bola de fim de tarde, na praça Ary Santamaria.
– Chegou dessa história! – ele dissera ao fim do papo, e todos concordaram e assentiram com a cabeça e se comprometeram (o Lico com um sorrisinho enigmático no rosto) a nunca mais usar o apelido.
O dia da semifinal contra o time da rua Taquara era um sábado. O jogo estava marcado para as dez da manhã. A segunda semifinal, entre o pessoal da rua dos Loivos e os açougueiros da travessa Elias Ricardo seria no domingo, no mesmo horário.
O uniforme do 8 de Abril Futebol Clube era azul e laranja, e ele vestia a camisa 9. Era o artilheiro disparado – não apenas do time, mas do campeonato; fizera 12 gols nos até então dois meses e meio de competição.
Foram para o jogo e, quando chegaram, os “taquarentos” já estavam por lá. Seria uma partida duríssima.
Foi no fim do primeiro tempo que o jogo, por fim, deslocou-se do meio do campo, espaço de um interminável e caótico perde-e-ganha, para a área de ataque do 8 de Abril. A bola foi lançada por Betão, de forma totalmente involuntária, e acabou indo parar à frente dele, do 9 matador do time azul-e-laranja. Apenas ele e o goleiro. Outra chance daquelas, naquele jogo? Melhor não esperar por isso. Primeiro foi um toque com o lado interno do pé direito, para entrar em acordo com a bola, e então um leve toque para a frente, com o peito do pé esquerdo, e aí o tiro já estava engatilhado, o passaporte para a final uma semana depois, a final tão sonhada, e foi quando ouviu-se a voz esganiçada do Lico, que acompanhava a jogada mais ou menos de perto:
– Vai, Lêndea!!
O chute saiu torto, fraco, pelo lado esquerdo do gol. Um traque.
O silêncio se abateu como um véu sinistro sobre o esquadrão da 8 de Abril, enquanto uma gargalhada coletiva, a cruel trilha sonora da humilhação e do deboche, tomava conta do lado da turma da Taquara.
Ele se virou para os companheiros, tirou a camisa 9, deixou-a caída ali mesmo, perto da marca do pênalti, e saiu de campo, decidido a nunca mais vestir aquele uniforme e a nunca mais conversar com nenhum deles, a partir de agora e para sempre seus ex-amigos.
No meio de um círculo formado de forma rápida e precária pelo time, Lico era alvo de fisionomias furiosamente inquisitivas.
– Por que você fez isso??? – era o que aqueles rostos diziam.
– Eu…, eu…, eu… – tentou balbuciar, como se tivesse desaprendido todas as outras palavras do idioma.
– Ca-ca-cagou o cam-cam-peonato!! Ca-ca-gou tu-tu-do!!! – disse Adalberto, que tinha gagueira nervosa.
Foi o pai do Vinícius que convenceu o goleador a voltar a campo. Numa certa idade da vida, as decisões “para sempre” podem durar menos de dez minutos.
O time da 8 de Abril chegou à final. Ia decidir tudo contra os “Loivos”. Seria um embate duro, mas leal. Com Lico na reserva e vigiado de perto por praticamente todos os moradores da 8 de Abril – do bebê da Marialva e do Délcio, o mais novo torcedor do clube, à avó do Neco do Quiosque, que, pelo que diziam, tinha quase 100 anos e foi para o jogo portando uma inconfundível vara de marmelo.