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NÃO JOGA NAS ONZE

por Victor Kingma

Essa é para lembrar de um grande artista da bola, o Garrincha da ponta esquerda.

No final dos anos 50 um combinado paulista foi se apresentar no interior do estado. Aqueles amistosos em época de férias.

Embora o clima na cidade fosse de festa, o técnico do time do lugar há tempos vinha passando por uma situação constrangedora nos jogos da liga regional: estava sendo pressionado pelo prefeito a escalar o seu filho, Baguinho, recém chegado da capital. Só que otime estava certinho e o filho do político não jogava lá essas coisas.

E não tinha argumento que pudesse aliviar a pressão. Sempre que o técnico questionava sobre qual posição escalá-lo, o prefeito dizia:

– Escala em qualquer posição. O menino é fera, joga nas onze!

Na semana do jogo histórico e de grande festividade na cidade, a pressão aumentou mais ainda.  

 Como o filho do manda chuva da política local ia ficar de fora de uma partida tão importante? Ainda mais com o palanque cheio de autoridades.


No dia do jogo, em meio a grande foguetório e com o pequeno estádio totalmente lotado, o time local aparece no gramado com o empolgado Baguinho na lateral direita, camisa 2. 

Finalmente o veterano treinador tinha fraquejado às pressões.

Pouco depois entra em campo o combinado paulista. Na ponta esquerda, Canhoteiro, do São Paulo, um dos maiores dribladores que o futebol brasileiro já teve.

O final trágico todos podem imaginar. 

Com trinta minutos de jogo, Baguinho, o esforçado rebento do prefeito, extenuado, pede pra sair após levar um baile memorável.


Charge: Eklisleno Ximenes

No final do jogo, dando de ombros para a fúria do prefeito por ter colocado o seu “craque”  polivalente naquela roubada, o veterano treinador, raposa astuta do futebol do interior, com sorriso irônico se defendia de qualquer indagação:

–  Ué, mas não joga nas onze?

Veja mais em: www.causosdabola.com.br

POUCOS E BONS

:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::


(Foto: Nana Moraes)

Islândia, Panamá e Egito estão na Copa do Mundo. Holanda e Chile, não. Itália está na repescagem e Argentina se safou na última rodada. E, por favor, não me venham com esse papo de globalização, espaço para todos e união entre os povos porque sou a favor disso tudo, mas nesse caso, esqueçam, é politicagem pura, regulamentos de quinta categoria e a massificação do futebol da pior forma possível.

Me perdoem, mas Copa do Mundo é para poucos e bons. Se os dirigentes quiserem dar uma de bons samaritanos, algo que nunca foram, que realizem um outro torneio, nos moldes da Copa do Brasil, e reúnam milhares de países, mesmo os com zero tradição em futebol.

Como a Holanda, terceira colocada na Copa passada, pode ficar de fora? E o Chile, campeão da Copa América? Está errado! Como Cristiano Ronaldo, Messi e Neymar podem não participar de uma Copa?


Durante o ano todo eles atraem milhares e mais milhares de torcedores aos estádios e na competição mais importante saem por conta de regulamentos esdrúxulos. Quem criem um ranking, mudem o formato, mas Copa do Mundo é Copa do Mundo, é show, é evento, é quando os maiores astros podem se enfrentar.

Tenho todo carinho do mundo pela Islândia, mas ela não vai contribuir em nada para o futebol. Serão onze soldados, disciplinados e determinados a não perderem. A torcida é linda, dá show, emociona, mas eu quero assistir é futebol de verdade.

Alô, dirigentes que ainda estão soltos, não acabem com a Copa do Mundo porque ela é sagrada e merece respeito, o máximo respeito. 

CARTA AO PAI-77

Rubens Lemos


Estávamos juntos naquela noite de 28 de setembro de 1977, decisão epopeica do Campeonato Carioca e juntos estávamos neste domingo, 15 de outubro de 2017, diante do computador, ligados no Museu da Pelada, vendo a reportagem com Roberto Dinamite e Zé Mário, heróis do primeiro Vasco de minha vida, cujos fragmentos tento transformar em nítido painel em busca das reprises de televisão, de depoimentos, textos e fotografias.

O senhor, seu Rubão pai, há 40 anos, uísque na mão, rebelde e inquieto, indignado com a Ditadura que lhe tolheu parte da vida, bigode nicotinado de granadeiro cruzmaltino, xingou o adversário de todos os palavrões possíveis e exaltou um time, que, segundo seu seletivo critério de comentarista de talento, honrava as máquinas de 1956 e 1958, transpostas ao seu recanto de garoto sertanejo do Rio Grande do Norte, pelas ondas do rádio.


Em sonetos etílicos, você recitava Barbosa (Miguel), Paulinho, Bellini, Écio, Orlando, Coronel, Sabará, Almir, Waldemar, Roberto Pinto e Pinga, os bambas do “SuperSupercampeonato”, extensões do seu maior ídolo: Walter Marciano, craque de 1956, morto pelas estradas da Espanha em 1961. E garantia que os homens do tio Fantoni representavam toda a história do Almirante, especialmente o artilheiro cabeludo e destemido Roberto Dinamite, “O garoto que vai superar Vavá”, conforme sua sentença telúrica.

Tita bateu o pênalti, Mazarópi voou e espalmou para escanteio. Depois, Roberto tirou Cantarele da fotografia e o fez berrar o hino mais bonito do Brasil. Doses intermináveis. Lembro seu olhar estudioso direto no meio-campo formado por Zé Mário, Zanata e Dirceu. “Zé Mário lidera e combate, Zanata arma e administra o tempo do jogo e Dirceu é um pêndulo, ocupa todos os espaços e tem técnica, sim, ao contrário do que canta essa imprensa flamenguista”.


Faz 40 anos, pai. E me aparece um cara, chamado Sérgio Pugliese, para encher de nostalgia meu domingo. Ele é o ideólogo do Museu da Pelada, que deveria ter transmissão transcendental, de tão fantástico na renovação da vida inteligente do futebol que tanto amamos.

Certeza de que na hora de Zé Mário, Roberto e das reprises do velho Canal 100, você sentou comigo e derramou lágrimas de quem está onde o tempo já não conta. Vê se responde. É carta de um menino, que tinha 7 anos e envelheceu. Virou um chorão, um emotivo crônico, um guardião do seu amor vascaíno.

OS PIONEIROS

por Sergio Pugliese


Da mesma forma que o futebol de salão virou futsal e o futebol de praia, beach soccer, o soçaite, criado em 1954, foi rebatizado de Fut7 e transformou-se na modalidade futebolística da vez. Mas se os nostálgicos não se dobram aos modismos, o que dizer dos pioneiros, os precursores do esporte?

– O nome pode até mudar, mas a essência não morrerá nunca – garantiu Ary David de Almeida, considerado um dos maiores jogadores de soçaite de todos os tempos.

Ary era a grande estrela do Pioneer, primeiro time de soçaite da história, montado pelo saudoso José Luiz Ferraz, dono da construtora Santa Isabel, e que apresentava-se, nas tardes de sábado, no impecável gramado de seu terreno, em Corrêas, distrito de Petrópolis.

– Aquilo era o paraíso e o time deles, praticamente imbatível – reforçou Pedro Tartaruga, ídolo do Santo Inácio, um dos adversários que sofreu nas mãos, na verdade nos pés, dos craques do Pioneer.

Nossa equipe reuniu Ary David, Pedro Tartaruga, os irmãos Paulo e Thomas Sá, também do Santo Inácio, e Zé Brito, do Milionários, boleiros que tiveram o privilégio de participar do nascimento do soçaite, em Corrêas. Imaginávamos um encontro pacato, mas rivalidade é rivalidade e Ary David resgatou do fundo do baú uma goleada de 21 x 3 do Pioneer no Santo Inácio. A casa caiu!!!!

– Sinceramente, não me lembro disso – esquivou-se Paulo Sá.

– Nesse dia, não fui – defendeu-se Pedro Tartaruga.

Thomas Sá preferiu rir, mas Ary David, iniciou uma sessão de hipnose, praticamente uma regressão, e conseguiu ativar a memória de Thomas, que tinha argumentos convincentes, como a falta de hábito de jogar sem o impedimento, uma das regras da casa. José Luiz Ferraz também estabeleceu que as cobranças de falta seriam indiretas, a marca do pênalti ficaria a oito passos do gol e a baliza mediria cinco metros de largura e dois e dez de altura. E se Ary David era uma máquina de fazer gols com linha de impedimento, imagine sem! Naquele dia, fez um caminhão, mas pediu para o árbitro encerrar a partida quando o placar marcou 21.

– Os amigos não mereciam aquele tratamento – divertiu-se ao lado dos companheiros da vida toda.

Mas os craques do Santo Inácio não sofreram sozinhos. O escrete do Pioneer colocou muita gente na roda, inclusive profissionais como Gerson, Ayrton Povil, Pampolini, Carlos Alberto Torres, Zizinho e Zagallo, além de clubes tradicionais, como Juventus, Lagoa, Columbia e Real Constant.

– Também ganhamos do Milionários – acrescentou Ary David.

– Do Milionário, não!!! Esquece!!! – bradou Zé Britto, que numa de suas belas atuações em Corrêas, como adversário, acabou contratado pelo Pionner.

Além de Zé Britto, Ary David e José Luiz Ferraz, o Pionner também tinha Marcos André, Moacir Lobo, Valdir, Ary, Átila, Eurico Louro, Raphael de Almeida Magalhães e Rivadávia Corrêa Meyer e Luiz Fernando Secco. Mas o pessoal da alta sociedade também disputava uma vaguinha na equipe e atraía a atenção da imprensa. Empresários como Tony Mayrink Veiga, Álvaro Catão, Didu Souza Campos, Antônio Piano e o construtor Celso Bulhões de Carvalho, além de Miéle, Armando Nogueira e Luiz Carlos Barreto, eram personagens constantes da coluna de Maneco Muller, no Diário Carioca e Última Hora, e bom goleiro, que aproveitou um termo já existente, o café society, para criar o futebol soçaite.

– Não duvide que a resenha também tenha nascido lá – comentou Ary David, que participou de muitas rodas musicais, pós-pelada, com Adalgisa Colombo e Dorival Caymmi.

A rapaziada aprendeu direitinho e até hoje mantém a garganta em forma, afiadíssimo nas resenhas. Se dependesse de Zé Brito, Ary David, Pedro Tartaruga e dos irmãos Paulo e Thomas de Sá estaríamos até agora brindando uísque e cerveja, no apartamento do artilheiro Ary David, que cobriu a mesa com fotos e recortes da época. Cada imagem, uma lembrança. Sorrisos e lágrimas, heróis e pioneiros.

Texto publicado originalmente na coluna A Pelada Como Ela É em 20 de agosto de 2015.

A VÁRZEA E O MENINO DO HAITI

texto: Marcelo Mendez | foto: Maristela Ranieri

Esnel joga bola…


(Foto: Maristela Ranieri

São vários os caminhos da várzea pelos quais a crônica perambula.

Dias de sol, chuvas finas, garoas com gotas de orvalhos matinais e sonhos. Andanças regidas por sons de blues, rock, jazz e outros instrumentos de samba. Dos pés adornados por chuteiras coloridas e cadarços psicodélicos saem as melhores histórias de toda uma humanidade que resiste.

Para saber da beleza do futebol de várzea basta caminhar.

Dessa vez a ida era até o campo do Alvi Negro de Santo André. Para o match, convidados nobres.

O time do Jerusalém de São Bernardo enfrentaria Combinado de Haitianos do ABC. Um grupo de refugiados, todos moradores da Favela do Cigano em Utinga, que se apresentaram para a peleja. Cheguei na cancha e vi os meninos.

Todos homens, alguns felizes, outros resolutos, uns contemplativos, outros curiosos, uns eram poesia, outros eram rock and roll, uns eram versos, outros eram silêncio. Nenhum deles era indiferente. Para aquele grupo de homens, estar ali era um grande feito. Algo grande, para muito além de títulos e bravatas.

Um outro mais desavisado há de observar; “Que coisa mais frugal, um jogo de futebol de várzea que de nada vale. Como pode ser algo assim tão grande, Marcelo, seu Bardo?”

O Cronista deve tomar cuidado:

O que interessa aos homens comuns não serve para imortalidade. E o que acontece em um terrão de várzea está intrinsecamente ligado ao que há de imortal.

Assim foi naquele jogo. Bola pra lá, bola pra cá, chutões e outras mumunhas quando de repente me aparece Esnel.

Esnel trombava, chutava errado, não sabia passar muito bem, não era muito bem dotado de habilidade. Mas Esnel corria. Com uma inabalável aplicação, do pouco que sabia, Esnel dava tudo. Tudo que tinha e principalmente do que não tinha. Não era um craque de bola e pouco importava porque não seria isso que faria de Esnel um imortal.

Esnel sorria!

Com a candura de um garoto que brinca de bola pela primeira vez na vida, o menino do Haiti sorria feliz da vida. Era um jogador que agia, portanto através do riso farto, feliz e pleno. De nada adiantaria fazer gols, aplicar-lhe dribles, impetrar-lhe canetas, submetê-lo a realidade cruel de um chapéu tomado.

Para todo revés que o adversário apresenta-se, Esnel teria um sorriso para resistir. Como faz em sua vida.

Terminado o jogo, fui até ele. Lhe ofereci uma cerveja, ele me disse que não bebe. Perguntei se queria algo, ele me respondeu que não. Pedi para conversar e então ele me deu um dos seus lindos sorrisos e gentilmente me puxou uma cadeira. Falou um pouco dele…

 Que saiu do Haiti depois de um terremoto porque ali seria impossível de viver. Que por la deixou seu amor. Que sonha em juntar uma grana para ajudar os seus que ficaram. Que era feliz…

Me disse que achou um barato poder jogar bola com brasileiros, que não era muito bom, mas que só queria brincar e agradeceu por terem deixado fazê-lo. Brincou, contou histórias, sorriu mais, me pediu o telefone e disse que eu era legal.

Esnel joga bola…

Por um dia, no futebol de várzea, Esnel conseguiu sorrir com gosto, como se a vida de fato fosse algo muito bom que vale-se a pena de ser vivida. Com Esnel e por Esnel vale.

Eu te amo, Esnel…