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FUTEBOL ARTE

por Sergio Pugliese


Mesmo com uma perna bem menor do que a outra, o menino Candido se aventurava nos campos de várzea de sua cidade, no interior de São Paulo. Era impossível não tentar. Colado à sua casa havia um campinho e bastava abrir a porta da cozinha para ele quase bater a cabeça numa das balizas. Apesar disso, seus pés descalços nunca criaram jogadas brilhantes. Então, resolveu investir nas mãos. Não virou goleiro como alguns podem imaginar. Fora das quatro linhas, sentado num banquinho, deu seus dribles mais desconcertantes e, tal qual um reserva resignado, criou parte de sua obra prima. Como observador, coloriu os campos a seu modo, vestiu o time preferido com as cores mais vivas da aquarela e, de pincelada em pincelada, conquistou o mundo. O menino ruim de bola cresceu e virou Candido Portinari, maior expoente da pintura modernista brasileira. Em sua monumental história, contabilizou 5 mil obras e nunca esqueceu de retratar os campos de várzea, uma espécie de amor não correspondido.

– Era como se pintasse meninas que nunca deram bola para ele – comparou o filho, esse sim, bom de bola, João Candido Portinari, fundador e diretor do Projeto Portinari, responsável pela catalogação da obra do pai. 


Tímido, o pintor expressava suas paixões com cores e palavras, como no trecho editado de uma de suas poesias publicadas no livro “O menino e o povoado”: “Aos 8 anos tive uma namorada branca branca. Nunca lhe disse uma palavra. Depois nunca mais a vi e não ouvi seu nome. Namorei tantas meninas e ninguém soube”. Foi exatamente assim com os campinhos. Numa rápida navegada no site do projeto, a equipe do A Pelada Como Ela É encontrou 18 pinturas de campos de várzea, quase todos em Brodowsky, terra natal. Numa delas, um autoretrato, “Futebol”, aparece cercado de meninos e o que o diferencia do grupo é a perna menor do que a outra. Só especialistas para atentarem ao detalhe. O filho teve melhor sorte com a bola. Fundador, em 1954, do poderoso time de praia Copaleme, batizado inicialmente de Arizona, na década de 50 travou duelos espetaculares com os rivais Radar, de Copacabana, e Lá Vai Bola, do Leblon.

– A Avenida Atlântica, ainda com uma pista só, ficava apinhada de gente para assistir – recordou o filho.


João Portinari veio jovem para o Rio e, aos 18 anos, era figura conhecida na noite carioca. Saía do Leme com sua turma e três violões – iam parando de bar em bar até Ipanema. Na volta para a casa, às 5h da madrugada, esticavam até a Siqueira Campos, em Copacabana, na Sinuca Balalaika e, depois, na Leiteria Bol, na Lapa, para tomar coalhada e roubar as garrafas de um litro de leite deixadas nas portas das casas. Ele e os amigos eram os reis do Rio. Saiu de Brodowsky sem prestar atenção no talento do pai. Deixou para trás a casa de tijolo, com poço, moinho, fogão de lenha e cadeira de balanço, e caiu na gandaia carioca com seu carraço Buick Dynaflow. Os amigos e companheiros de Copaleme, alguns do Morro da Babilônia, adoravam a farra. O goleiro Maurício, Pedro Paulo, Lelé, Zezinho, Amaury, Pará, Henrique Cabeludo e Flávio, filho de Ary Barroso, comemoravam os títulos em noitadas nas boates Arpege, do pianista Waldir Calmon, Drinks, Little Club, no Beco das Garrafas, e Maloca, em São Conrado.

– Não tinha noção de quem era meu pai e seus amigos – confessou.

As reuniões na casa de Candido Portinari eram frequentes e animadas, entre outros, por Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jorge Amado e Adalgisa Nery. Certa vez João Portinari chegou em casa e irritou-se quando viu, numa rodinha musical, um homem tocando seu violão. “Vai desafiná-lo”, pensou. Saiu irritado, batendo porta e só anos depois soube tratar-se do maestro Villa-Lobos. No Rio, João sentia-se verdadeiramente feliz e divertia-se com as loucuras do amigão Alcyr, que se enchia de caipirinha nas boates e após o derradeiro gole subia na mesa e gritava “Tequila!!” antes de cair desmaiado. Bons tempos! Mas um dia a ficha caiu e João resolveu olhar para trás. Foi quando aprofundou-se e encantou-se com a história do pai.

Reuniu documentos, fotos, livros, cartas, toda uma vida. A nosso pedido procurou algum registro que ligasse o pai ao futebol e achou uma foto rara, do início dos anos 20, de Portinari no time de pelada da Escola de Belas Artes. Emocionou-se. Na poeira dos arquivos, também achou uma reportagem de O GLOBO, muito antiga, intitulada “Como trabalham e sonham nosso pintores” e leu um trecho em voz alta: “Tenho, também, uma delícia grata e profunda. É quando componho, por exemplo, “Jogo de futebol em Brodowski”, a cidade em que me fiz e onde a minha infância, sob a inspiração do modesto dinamismo do meio, embebeu-se de miragens, impregnou-se de melancolias ou sonhos. As imagens que ali se afirmam, a bola de meia, os pés descalços, os trancos, as caneladas, a cerca de pau, tudo isso são imagens impressas na minha memória, que se reúnem e gritam a um esforço evocador, que cruzam os caminhos do meu mundo secreto”.

No fim do texto, o filho coruja sorriu orgulhoso. Balançou a cabeça como um menino levado assumindo o reconhecimento tardio ao talento do pai e ao mesmo tempo transparecendo uma felicidade gigante por ter despertado a tempo de abraçar todo o seu passado e hoje viajar o mundo de mãos dadas com o seu melhor amigo.

 

Texto publicado originalmente no dia 5 fevereiro de 2011, na coluna “A Pelada Como Ela É”.

A CARTA DA BOLA PARA RONALDINHO

por Rafytuz Santos


Caro Gaúcho,

Aqui vai uma confissão de quem vive o futebol como ninguém…

Por tempos eu fui tratada de qualquer forma, anos e anos sendo chutada por jogadores pernas de pau ou até mesmo acima da média em Copas do Mundo, Libertadores, Brasileirões, Liga dos Campeões… anos se passavam e eu sempre era tratada sem o mínimo respeito, com o único objetivo de marcar o gol.

Mas em 1997 isso mudou! Um menino franzino, rápido e sorridente me fez feliz, como eu não era desde as épocas “Pelésticas”! Me dominava com maestria, me passava pelos vão das pernas mais envergonhadas, me fatiava por cima dos mais inúmeros penteados, me jogava por baixo das mais amontoadas formações de barreiras, me balançava nos seus encantadores elásticos…

Como esquecer os momentos com você? Quando sambou comigo na Inglaterra (e eu nunca tinha feito isso hahaha). Quando me fez viajar pelos céus na cobrança de falta na Copa do Mundo de 2002. Quando te vi sendo aplaudido pelo rival… E até quando ia me chutar, você olhava para o outro lado, para não me ver sofrer! Com você eu me sentia uma varinha mágica nas mãos de um bruxo!

Ronaldinho Gaúcho, meu filho! Ninguém me tratou como você, e sentirei saudades das suas bruxarias.

Hoje por você eu paro de rolar… E jamais rolarei como você fazia.

DA GRATIDÃO, GUSTAVO, NINGUÉM SCARPA

por Zé Roberto Padilha


Uma pena, Gustavo Scarpa, você ter trilhado o nosso mesmo caminho, porém, ter sido levado por mãos e conceitos tão desprovidos de reconhecimento. E de gratidão. Eu, Gilson Gênio, Mário Marques, Zezé, Paulinho, Wallace, Joaquinzinho e Escurinho, só para falar dos canhotinhos revelados como você pela base, crescemos aprendendo a cultuar a instituição Fluminense FC.

Antigamente, pelas mãos de Roberto e Paulo Alvarenga, Pindaro, Pinheiro e Sebastião Araújo, entre tantos, ela formava atletas e cidadãos. Poderíamos até defender outras camisas, como o fizemos posteriormente, mas jamais deixamos de levar com a gente o respeito e a admiração pelo tricolor das Laranjeiras.


Quando soube que fui trocado pelo Doval, sem consulta naquele troca-troca do Presidente Horta, declarei ao Jornal do Brasil que não queria ir para o Flamengo. Não era verdade, me expressei mal. Eu não sabia era como deixar o Fluminense após o tanto que ele fez por mim. E agora, depois que vários profissionais do clube transformaram uma promessa como a sua em realidade, o colocaram na vitrine, na seleção brasileira sub-20, em 2015, e na principal ano passado, por causa de quatro míseros meses de salários atrasados você vira às costas para quatro anos de ajuda de custos, luvas, prêmios, salários em dia que lhes possibilitaram crescer.

E, sem se despedir da gente, como uma mercadoria que ganha um novo rótulo, sem conteúdo ou coração, desembarca no Parque Antárctica como se as cores tricolores, que o formaram, fossem uma mancha. Não um certificado ISO de qualidade e tradição. Como torcedor, fiquei desapontado. Nem apareceu por lá para se despedir da Young Flu, agradecer as massagens do Gerônimo, os sucos que tomou no Bar do Fidélis após cada treinamento.


Mas não se iluda. Independente dos novos rumos que tomastes, um dia a ficha vai cair, o tempo, senhor da razão, vai lhe mostrar cenas de um retrovisor com uma bela história. E você irá retornar às Laranjeiras para agradecer. Dar um abraço no Abel, um aceno para a gente nas arquibancadas ou na TV.  Porque da gratidão, Gustavo, ninguém Scarpa

Jair Pereira

o rei da resenha

entrevista: Sergio Pugliese | texto: André Mendonça | vídeo e edição: Daniel Planel

Somos muito fãs de todos os personagens que já entrevistamos, claro, mas não podemos negar que temos um carinho especial por aqueles que demonstram ser craques na resenha também! Ex-meia do Vasco da Gama e um dos treinadores mais vitoriosos do Brasil, Jair Pereira é unanimidade nessa lista.

Durante a resenha na famosa Pelada da Barra, comandada por Carlinhos Cortazio, tivemos o privilégio de bater um papo com essa figura inenarrável, que relembrou histórias divertidíssimas da sua carreira e arrancou gargalhadas da nossa equipe.


Na hora de falar sério, no entanto, Jair não escondeu sua tristeza com o fato de estar desempregado. Após uma bela carreira como jogador, tendo vestido as camisas de Vasco, Flamengo, Bonsucesso e Madureira, e muitos títulos como treinador, o ex-meia luta contra o ostracismo.

Na base do “maré, maré; jacaré, jacaré”, foi campeão da Taça de Prata (espécie de Série B da época), bicampeão sul-americano e mundial com a seleção de base, campeão paulista, campeão da Copa do Brasil, campeão mineiro, bicampeão da Supercopa, comandou o Atlético de Madrid e hoje lamenta a inatividade:

– O futebol é o único lugar em que a experiência está velha. Eu sou melhor agora do que quando comecei. Eu sou formado, fui atleta, campeão, treinador, coordenador…

Nesse momento apareceu o craque Mário Português, que, ao ser questionado sobre a questão, não titubeou.

– Por que o futebol brasileiro está desse jeito? Nossa experiência como atleta é muito importante para a coordenação técnica. Deixar de usar é burrice dos clubes!


Logo em seguida, o parceiro Reyes de Sá Viana do Castelo levantou a bola para Jair Pereira contar mais um causo. Dessa vez sobre um torcedor chato que, diferentemente dos demais, o elogiou do início ao fim de uma partida só para despertar sua curiosidade e poder xingá-lo diretamente.

– Me olhando, né? Queria falar que você é burro olhando nos seus olhos! – disparou o exigente torcedor.

Para fechar a resenha com chave de ouro, Jair explicou o que é “maré, maré; jacaré, jacaré”, tática que prevaleceu durante toda a sua vitoriosa carreira:

– Maré, maré é tocar a bola e jacaré, jacaré é dar o bote para recuperar a posse!

Obrigado, Jair Pereira!

GARRINCHA, CANTO VAZIO

por Rubens Lemos


Manoel dos Santos Garrincha foi o mais brasileiro de todos os brasileiros do futebol. Representou a molecagem, a irreverência, a habilidade, a coragem e assumiu a paternidade do drible, a prova da superioridade de um homem sobre o outro no quadrilátero de um campo. Morreu há 35 anos, num 20 de janeiro de 1983. 

Garrincha seria barrado para a Copa de 1958 por não passar num teste psicológico. Teria de fazer um desenho e explicar com coerência o que havia desenhado. Errou, pois caneta ele dava nos outros, não segurava com as mãos.

Garrincha era um passarinho em forma de gente. Garrincha nasceu para jogar bola, não para entender de ciências.

Na volta olímpica do Estádio Rasunda, em Estocolmo, Brasil campeão do mundo pela primeira vez, o psicólogo João Carvalhaes berrava para Nilton Santos, compadre do deus das pernas tortas:

– Ele é muito mais do que aquilo que você disse Nilton. O homem é um monstro.


– Agora é fácil falar né, Doutor Carvalhaes? – devolveu Nilton Santos, que intercedeu para Garrincha ficar mesmo reprovado no psicoteste.

Garrincha driblava com ternura. Era amado pelos meninos.

Em seu livro Histórias do Futebol, João Saldanha conta que o Botafogo foi excursionar em 1957 (ele de técnico) em Fortaleza.

Concentrada num hotel à beira-mar, a delegação era acordada antes das 7h com a algazarra de meninos magros e pobres. Procurando o comparsa. Que saía correndo, driblava cinco de uma vez, brincava de mocinho e bandido, se deixava prender, mergulhava em grupo nas ondas, sentava e puxava assunto.

– Vem cá, com essas cabeçonas, vocês são “tudo filho” do Dutra?

O Dutra era o Marechal Eurico Gaspar Dutra, dono de uma cabeça enorme e que presidira o Brasil entre 1946 e 1951. Garrincha foi tratado por muitos como um tolo, mas quem sai com uma sacada assim é tudo, menos burro.

Dois anos antes do episódio com a molecada em Fortaleza, Garrincha era convocado pela primeira vez, pelo conservador técnico Zezé Moreira. O bairrismo era pior do que discurso de xiita em rede social e formaram-se duas seleções para o Torneio Bernanrdo O’Higgins, disputadO contra o Chile. Zezé treinava o escrete formado pelos cariocas e Vicente Feola o time só de paulistas.

A atuação não sinaliza para um grande currículo. O Brasil empatou por 1×1 diante de 70 mil pessoas no Maracanã graças a um gol de pênalti marcado pelo vigoroso zagueiro Pinheiro, do Fluminense. Atuava-se com cinco na frente a a linha atacante escalada: Garrincha, Válter Marciano, Evaristo de Macedo, Didi e Escurinho. O potiguar Dequinha, de Mossoró, foi o volante.

Garrincha explodiria mesmo em 1957, sempre fintando preconceitos e tratados de gorduchos que jamais dominariam uma bola. Em amistoso antes da Copa, driblou a defesa inteira da Fiorentina e voltou para espezinhar o goleiro Sarti.


Fintou-o de novo e caminhou com bola até o fundo das redes. Quase é linchado, por cartolas e companheiros. A genialidade de Chaplin lhe custou dois jogos na reserva e talvez tivesse evitado a Copa do Mundo. Garrincha jogou contra os russos e assombrou o mundo.

Garrincha deu outra Copa do Mundo ao Brasil jogando por ele, Elza Soares, sua Diva e por Pelé. Aliás, com Pelé e Garrincha, a seleção nunca perdeu para ninguém. Foi em 1962, no Chile, quando o Negão se machucou e Garrincha foi ponta-direita, meia-esquerda, centroavante, quarto-zagueiro e, se Gilmar precisasse, iria para debaixo das traves.

O Garrincha que me sobrou está nos filmes, nos livros. Nos depoimentos de amigos mais velhos. O Garrincha que é morto cada vez que se elege um segundo melhor do mundo.Garrincha, na verdade foi o primeiro.

Pelé não pertenceu a espécie humana. Era um extraterrestre de tão monstruosamente espetacular. Olhe bem para o lado direito de um campo de futebol. Para o canto extremo. Está quase sempre vazio. Um lugar feito para Garrincha e a sua ausência  parece ser uma homenagem. Bem torta, a gravura de sua vida.