O APAGÃO DE RONALDO
por Zico
Vocês podem me cobrar isso daqui a 30 anos: eu não estava presente quando aconteceu o problema com Ronaldo. Assim que acabou o almoço, fiquei conversando com Gilmar e Evandro. Mais ou menos por volta de 14h30, Ronaldo teve uma convulsão e saíram gritando que ele estava morrendo.
Por volta das 16h, estava indo para o meu quarto, pra me trocar, porque às 17h tinha lanche e, depois, a preleção. Wendell me chamou:
– Acho que aconteceu alguma coisa com o Ronaldo. Melhor você ir lá em cima ver.
Quando cheguei no quarto do Ronaldo, estava o Joaquim da Mata em pé, Ronaldo sentado na cama e Roberto Carlos na outra cama.
– Dr. Joaquim, o que houve?
– Ah, ele teve uma convulsão. Dr. Lídio já sabe, ele esteve aqui, passe no quarto dele pra saber o que ele acha.
– Zagallo já sabe?
– Acho que não.
Perguntei ao Ronaldo se estava tudo bem. Ele parou, me olhou e se deitou.
Dr. Joaquim sugeriu que o deixássemos descansar pelo menos uma hora. Roberto Carlos estava com os olhos arregalados de susto. Fui ao quarto do Lídio:
– Você conhece Zagallo melhor do que eu. Vamos falar pra ele agora, quando está descansando.
– Não se preocupe, vou lá no quarto dele e falo. Sei como vou dizer.
Aí fui para o meu quarto, Às 17h, fui para o refeitório com o Ronaldo andando na minha frente. Ele parou na porta e tentou fazer uns exercícios. Falei:
– Ô, Ronaldo, o jogo é às 21h e você já se aquecendo às 17h.
– Olha, acho que aconteceu alguma coisa comigo. Estou todo doído, parece que levei alguma surra! – ele disse.
Calculei que ele não sabia o que tinha acontecido. Deu 17h30, os jogadores no lanche, apreensivos, Joaquim da Mata foi caminhar com o Ronaldo, Lídio reuniu a gente:
– Aconteceu isso e isso, Ronaldo não tem a menor condição de jogar, está fora.
Às 18h, veio a preleção. Joaquim da Mata tinha conversado com Ronaldo:
– Olha, aconteceu isso com você, vai ter que pro hospital fazer exames! – ele foi numa boa.
Zagallo fez uma ótima preleção:
– Brasil foi campeão do mundo sem o Pelé, ele se machucou, não pôde jogar, mas o time superou. Seria bom se o Ronaldo estivesse aqui, mas Edmundo está escalado.
No ônibus, todo mundo preocupado, principalmente o Leonardo, que a cada dez minutos perguntava:
– Ele corre risco de vida? Esse problema tem alguma consequência?
Nós, da Comissão Técnica, não sabíamos que César Sampaio tinha ido ao quarto do Ronaldo, que tinha puxado a língua dele, que Edmundo saíra gritando “Ronaldo está morrendo”. Só soube disso pelas entrevistas dos jogadores. O grande erro foi esse. Eu, pessoalmente, acho que às 14h todo mundo deveria ter sido chamado, inclusive Ricardo Teixeira, e tudo esclarecido.
Às 20h, eu estava no campo, vendo o desfile e os jogadores trocando de roupa, quando me avisaram de uma reunião. Agora, 20h?
Lá estavam Ricardo Teixeira, Zagallo, Ronaldo de frente para o médico, de short, meia, com a camisa de aquecimento:
– Olha, estou bom, meus exames não deram nada, quero jogar.
O Lídio insistia:
– Você está bom mesmo? Não sente nada?
– Estou bom, estou legal!
Aí, Zagallo falou:
– Então, vai aquecer e jogar.
Assim foi decidido.
Quando Ronaldo levou aquela trombada em campo, e caiu, eu fiquei preocupado. E todos os jogadores que sabiam do que tinha acontecido também se assustaram, principalmente o Cafu.
Conclusão: O Ronaldo deveria ter ficado internado no hospital. Todo mundo foi testemunha do que aconteceu com ele, e todos os médicos declararam que quando você tem uma convulsão, grave do jeito que nos foi passado, você tem que ficar 24 horas em observação. Mas imagina o que aconteceria se o Zagallo tirasse um jogador do quilate de Ronaldo da decisão, e o Brasil perdesse de 3 x 0. Só a autoridade médica evitaria que as coisas chegassem ao ponto que chegou.
O Lídio teve lá suas razões para liberar.
Texto publicado originalmente no livro Paixão e Ficção: contos e causos de futebol.
DE SORDI FOI TITULAR DA LATERAL-DIREITA EM 58. RECONHEÇAM OU NÃO
por André Felipe de Lima
A entrevista foi realizada em 1959, há exatamente um pouco mais de um ano após o Brasil conquistar a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. O repórter, mal intencionado, pergunta: “De Sordi, qual a sua maior emoção no futebol fora a conquista da Copa do Mundo de 1958?”. De Sordi responde: “Foi no jogo contra a França. após o hino nacional brasileiro. A orquestra executou a Marselhesa e o povo cantou, acompanhando-a. Quando findou, eu estava com os olhos cheios d’água”.
“Alguma decepção?”, destila o venenoso repórter. De Sordi desvia a conversa. A memória não lhe faz bem. Não pela conquista da Copa. Isso, sempre deixou claro ter sido sua maior alegria, mas os comentários injustos de parte da imprensa, não. Sua resposta às indagações de que era um covarde ou de que se recusara a entrar em campo na final era o silêncio.
Naquele dia da emocionante Marselhesa ecoando em todo o estádio, o Brasil derrotaria a França pelo placar de 5 a 2 e iria à final da Copa. Já De Sordi, lateral-direito titular absoluto, ficaria na reserva, cedendo a vaga para Djalma Santos, que apenas com o jogo contra os suecos sairia consagrado do mundial como o melhor lateral-direito da competição. Quanto ao De Sordi, restou a inexplicável perseguição de parte da imprensa com a estapafúrdia tese de que se acovardara após uma crise nervosa que, supostamente, teria sido diagnosticada pelo médico da delegação Hilton Gosling . Uma balela que durante décadas a imprensa acolheu como “verdade”. De Sordi sempre se sentiu incomodado com a acusação, mas preferiu uma — recorrendo ao estilo nelsonrodrigueano — eloquente indignação silenciosa.
Bellini, companheiro de De Sordi no escrete de 58, saiu — duas décadas após o título da Copa — em defesa do lateral: “De Sordi, machucado, chegou a ser deslocado para ponta, mas terminou a partida como lateral-direito porque a França também teve o zagueiro Jonquet machucado, que acabou na ponta-esquerda. Daí De Sordi ter voltado à lateral”.
Sacrificado pelo esquema de Feola contra os franceses, De Sordi agravou a contusão, logo não teve a menor chance de entrar em campo na final. Quando perguntavam se o laudo do médico Gosling era verdadeiro, sabiamente se calava.
O ídolo estava acima de qualquer dúvida sobre sua moral como jogador e craque, que foi com sobras. A ponto de cronistas esportivos, torcedores ilustres e ex-jogadores do São Paulo o escalarem como lateral-direito do “time dos sonhos” da história do Tricolor Paulista, após uma enquete realizada pela revista Placar em 1982.
Nilton De Sordi é um dos mais importantes jogadores da história do São Paulo FC. É o terceiro jogador que mais vezes vestiu a camisa tricolor, ficando atrás apenas dos goleiros Rogério Ceni e Waldir Peres.
Hoje, dia 14, o grande ídolo faria anos.
A FÁBULA DOS HOMENS LARANJA, AS PAIXÕES DO TIO ZEZINHO E A VIDA, SEGUNDO A RODA GIGANTE
por Marcelo Mendez
Seguia o ano de 1978…
Por entre umas discotecas, uns sambas do Agepê, umas musicas do Wando e mais o Roberto Carlos cantando “Para ser só Minha Mulher”, corria a minha vida de menino de 8 anos em uma Santo André ainda bucólica, num Parque Novo Oratório que ainda parecia um daqueles lugares saídos dos livros do Mark Twain.
Eu chegava da escola cedo, a mãe fazia comer ali por volta de meio dia, eu comia e na seqüência, pegava minha bola e ia brincar em frente nossa casa. A Avenida das Nações, que na época era de terra, não tinha carros passando, não era via para nada além da pista de meus sonhos de craque.
Em um dia desses, com a bola debaixo do braço, olhei para frente e vi que no terreno baldio do outro lado da Rua Oratório recebia uma movimentação.
Caminhões cheios de bugigangas, homens carregando coisas e muito falatório, me chamaram atenção. Decidi então fazer uso das minhas primeiras transgressões e desobedecer a mãe, que sempre dizia para eu não ir muito longe. Fui uns 500 metros além da regra e então vi:
Um parque de diversões estava sendo ali montado. E meus olhos receberam um de seus primeiros brilhos…
A necessidade de negociar…
Perguntei para um dos caras quando ia funcionar o parquinho, ele respondeu:
– Daqui a três dias, no próximo sábado!
Uau!
Fiquei elétrico com a novidade. Corri em casa e contei a boa nova a todos do quintal nosso. Fiz eles virem até a frente do quintal para ver a roda gigante, o chapéu mexicano, a máquina de algodão doce, o tiro ao alvo e o carrossel. Os primos iam, sem muita empolgação e eu ficava indignado! Quando comentei com o primo Serginho, de minha mesma idade, ele me explicou:
– Também, você não sabe que agora tem a Copa do Mundo? Eles querem ver a Copa!
Copa do Mundo…
De novo essa coisa no meu caminho! Em 1978, no afã de meus 8 anos, comecei a ver que essa coisa de Copa não era lá muito minha amiga. Era um tal de jogo todo dia, em uns campos meio estranhos, cujas placas de grama saíam toda hora, com uns caras de cabelos mullets e com as primas suspirando pelo goleiro Leão e por uns outros cabeludos de nome Kemps e Tarantini.
Mas o que pega era que para ir no Parquinho, eu teria que negociar com essa tal de Copa no interesse dos adultos. Alguém ia ter que me levar!
E daí, entra na história meu tio Zezinho e uns outros homens de laranja…
Meu tio e Copa do Mundo
Meu Tio Zezinho era um dos alucinados por Copa, que iriam me ajudar nesse caso.
Mais novo que meu pai, Santista de coração, apaixonado pelas coisas da bola, meu Tio Zezinho era quem comprava os jornais para ler, quem acompanhava os noticiários esportivos, quem mais sabia do dia a dia da seleção nossa na tal de Copa. E também sabia de todas as outras coisas, de todas as outras seleções!
Assistia todos os jogos com o jornal e as escalações no colo, falava o nome daquela estrangeirada toda e explicava toda aquela tática maluca do tal Claudio Coutinho, nome que eu ouvia sempre em meio a xingamentos e protestos dos tios e primos.
No sábado, dia da estréia do parquinho, não pude ir, meu pai trabalhou no turno da noite e não pode me levar. Minha mãe, que já vendia salgadinhos para a vizinhança sob encomenda, tinha um pedido grande e também não pode sair. No domingo que eu achava ser possível, diacho de jogo de Copa! Não tinha jeito e então rolou uma negociação:
– Marcelo, seu Tio Zezinho tá de férias na firma. Falamos com ele e quarta-feira ele vai levar você e sua irmã lá no Parquinho” – avisou a Mãe.
Segunda negociação; Caçulinha e algodão doce em troca de carrossel de mentira
Eu até fiquei feliz, lógico, com a noticia.
Todavia, alguns detalhes precisam ser explicados.
Tio Zezinho tava de férias, sim. Fez de tudo para negociar na firma, para pegar as férias em junho para ver a Copa. Queria ver todos os jogos e isso vinha sendo cumprido até que eu trouxe para a família resolver, o caso do Parquinho.
Gentilmente, me levou. Minha irmã não pode ir porque era muito pequena e os brinquedos, bom, vocês imaginem que na periferia de Santo André em 1978, não tinha lá umas bênçãos em se tratando de segurança. Minha mãe achou por bem, ficar desesperada apenas comigo indo lá…
Foi então que meu Tio negociou comigo:
– Filho, a gente vai, você anda em uns dois brinquedos, depois te pago um algodão doce, um guaraná caçulinha e a gente vai embora, para ver o jogo da Holanda. Depois no domingo, prometo que te trago de volta, ta bom?”
– Tá bom, Tio – respondi meio contrariado, mas fazer o que?
– O que é Holanda, Tio?”
– Ah… É outro tipo de carrossel, como esse que você andou aqui. Vamos comigo ver o jogo, você vai gostar dele.
E então, com a tal de Copa do Mundo, descobri que havia mais um lugar no mundo além do Parque Novo Oratório e de São Matheus, onde morava Tia Dete. Holanda…
Os homens laranja na minha vida
No campo, de cara, já gostei de saber que a Holanda era aqueles caras com umas camisas laranjas, muito loucas. Eles enfrentariam uns sisudos de preto e branco chamados Áustria. Em campo, meu tio explicou que eu veria o que eles descobriram quatro anos antes que era o “Carrossel Holandês, que o melhor jogador do time não veio, por causa de uns outros problemas que meu Pai já havia comentado.
– Essa parte depois seu Pai conta!
– Tá bom…
E voltamos para ver o jogo.
De cara, já saíram abrindo o placar. O time amassava a Áustria em seu campo, pouco susto tomava, diferente das partidas chatas do Brasil, eles eram alegres, faziam um monte de gols. Ouvi uns nomes estranhos, Obenmayer, Brandts, Rep, Krool…
“Que diacho de nomes!” – pensava!
E o dono do time, também tinha nome estranho; Rensenbrink.
Era ele o cara que mais pegava na bola, quem mais corria, quem mais marcava gols. Naquele 5×1, marcou um monte, para alegria do meu tio Zezinho.
– Gostou do Carrossel holandês, Marcelo?
…
Na hora, para não chatear meu tio, disse que gostei. Mas não gostei coisa nenhuma. Naquele jogo, vi um time pragmático, incisivo, sedento por marcar gols aos montes e lutando para ter pontos. Eu não queria pontos, queria brincar. Mas também não queria contrariar meu bom Tio Zezinho.
Saí de perto dos adultos, fui da frente de casa e olhei para onde estava a roda gigante e suas luzes. Fui tomado naquele momento por um tanto de melancolia que óbvio, não entendi no momento. Entenderia depois…
São Paulo, Junho de 2014
Já jornalista, cobrindo a Copa do Mundo do Brasil, me chegou a noticia que Tio Zezinho havia partido. Cansou desse mundo triste do futebol, que para sua tristeza, havia ficado chato e ruim de se ver e de tudo do mundo. Fez a passagem num dia de Copa, que ele tanto gostava.
Naquele dia, não fiz muito. Fiquei triste como ficam os que perdem um grande amor, mas tive que me virar com essa dor, eu teria um jogo do Brasil a fazer. Holanda 3×0 Brasil, fim de jogo, eu voltando para casa e chegando em São Paulo, da janela do ônibus, vi um raro parquinho na beira da estrada. Fiz um escarcéu e o motorista parou fora do ponto. Desci e fui até o Parquinho.
Em 2014 ele era mais ajeitadinho que aquele de 78.
Tinha mais brinquedos e o chão, ora veja, o chão era de um tapete verde imitando grama, cobrindo o piso do estacionamento onde estava montado. Caminhei por entre aquelas gentes, vi os sorrisos, os novos pais, as recentes mães e os seus meninos.
Como que por magia, andei até onde estava a roda gigante e a encontrei. As luzes eram de um neon chique, as gôndolas bonitas, seguras. Na fila, não tinha ninguém. O rapaz que trabalhava lá me explicou que a meninada não gosta muito do brinquedo, que ela não tem os atrativos necessários para agradar os novos meninos.
Lamentei. Ele então virou para mim e falou:
– O Senhor quer dar uma volta?
Me surpreendi duplamente; Pelo convite feito e por ser chamado de senhor aos 44 anos. “Cara, eu já sou Senhor!” – Mas não pude recusar. Entrei, sentei e subi. De cima da roda, vi o São Paulo, vi o mundo, pensei no Brasil, na Holanda, e em algum canto daquele céu, daquele horizonte cinza, senti que meu Tio Zézinho me via.
Ele ficaria triste pela seleção nossa, mas contente com a Holanda. Porque assim é a vida.
E como tal é a vida, pensando nele, olhei para um canto do céu onde imaginei que ele estava, acreditando piamente que ele me via.
Nesse momento, uma lágrima grossa me escorreu a barba. Mas não fiquei triste.
Tio Zezinho estava comigo…
HELENO DE FREITAS BRIGOU COM O MUNDO, JAMAIS COM O BOTAFOGO
por André Felipe de Lima
No pé do mastro da bandeira alvinegra está Antônio Ferreira Franco de Oliveira, o folclórico Neném Prancha. Ele chora, só. Uma lágrima silenciosa. Uma dor particular. Ao fundo, a bandeira do Botafogo hasteada a meio pau em sinal de luto. Neném lamenta por Heleno de Freitas, que naquele dia 8 de novembro de 1959 morrera em um sanatório de Barbacena, no interior mineiro. Estava louco, com o cérebro tomado pela sífilis tardiamente descoberta pelos médicos que o tratavam nos derradeiros anos de sua vida, esta marcada de glórias e desatinos dentro e fora dos gramados. Uma reportagem da revista O Cruzeiro assinada pelo hoje cineasta Luiz Carlos Barreto, fervoroso torcedor do Botafogo, mostra a dimensão trágica da morte de Heleno. Barretão, como é conhecido no universo cinematográfico, ouviu Neném Prancha, que foi quem praticamente descobriu nas areias da praia de Copacabana o talento de Heleno para o futebol. “Com os olhos cheios de lágrimas, [Neném Prancha] falou do menino Heleno que um dia, chegando do interior de Minas, entrou numa pelada e logo garantiu seu lugar no time da turma do Pôsto 4: ‘Era um bom garôto. Nas peladas da praia era um exemplo de disciplina. O que êle não gostava era de perder, mesmo jôgo de brincadeira […] Fama demais estragou o menino Heleno que, mesmo crescido e cheio de glórias, nunca deixou de ser um meninão”. Um meninão que cresceu nas peladas de São João Nepomuceno, mas, apesar do “gorro rubro-negro” que usava quando criança, sempre apreciou o Botafogo de Carvalho Leite, Martim Silveira, Benedicto Menezes e Nilo Murtinho Braga. Era fiel.
Ninguém, talvez nem mesmo Garrincha, encarnou tão profundamente a alma enigmática, para não dizer mística, do Botafogo. Somente um Heleno, apesar da distância que o separava do Rio, para se tornar um mito do clube da estrela solitária. “No dia em que morreu Heleno, escrevi um texto. No momento em que São João Nepomuceno revive o filho querido, permito-me transcrever parte da crônica que, então, publiquei no JB: ‘O futebol, fonte de minhas angústias e alegrias, revelou-me, ao longo dos anos, em Heleno de Freitas, a personalidade mais atormentada que conheci nos estádios deste mundo’”. Palavras de Armando Nogueira, que “conheceu” Heleno no dia 10 de setembro de 1944, quando, recém-chegado ao Rio, vindo de sua cidade natal, Xapuri, no Acre, um primo o levou ao estádio de General Severiano para assistir um Botafogo e Flamengo, aquela partida que ficou conhecida como o “jogo do senta”.
Outro grande homem das letras confessou ao escritor e jornalista Sérgio Augusto idolatria a Heleno. Filho de Orígenes Lessa, o então garoto Ivan, pelos idos de 40, não perdia os rachas na faixa da praia de Copacabana entre as ruas Bolívar e Domingos Ferreira. “Sou Botafogo porque tive um béguin pelo Heleno lá pelos dez anos de idade”. Geralmente, o craque falante comparecia, encantando a molecada. Ora, apenas admirando-a da calçada, ou, o que era mais comum, fazendo a de fora. E lá estava Heleno em meio a meninos que o reverenciavam das arquibancadas. Raramente um mito dos gramados se aproximava tanto da torcida. O que as crianças não percebiam é que por detrás da simpatia de Heleno se escondia o motivo que deflagraria um traumático destino. Há, contudo, quem tenha presenciado gestos menos simpáticos de Heleno com seus fãs. Como escreveu Marcos Eduardo Neves, responsável por primorosa biografia de Heleno, os amigos Sérgio Porto e Mario Carvalho de Oliveira, com os quais o jogador conviveu na juventude, concordavam que lidar com Heleno não era fácil. Ele, em algumas situações, tratava mal as pessoas nas ruas, rechaçando garotos ávidos por autógrafos. Após uma de suas grosserias, Eduardo Henrique Martins de Oliveira, o comandante Edu, grande amigo de Heleno, puxou-o pelo braço e o obrigou a assinar o papel para um menino.
TEMPERAMENTAL MENINO DO GORRO RUBRO-NEGRO
O filho mais ilustre de São João Nepomuceno nasceu em 12 de dezembro de 1920. Parto difícil, por pouco não morreram ele e a mãe, Maria Rita, dona Miquita, que prometeu que o rebento, fosse menino ou menina, receberia o nome da santa da qual era devota: Helena. Ficou Heleno.
Desde pequenino, molecote com sete anos, era tinhoso, porém uma criança introvertida. Lia sozinho. Passava horas devaneando diante de um livro. Hábito que conservou até a fase adulta. Tinha predileção por Dostoievski, especialmente a obra “Crime e castigo”.
Quando os amigos dos pais visitavam os Freitas, no interior mineiro, Heleno fazia discursos inflamados de enrubescer um pastor que marcava ponto para o café na casa dos Freitas. Heleno tinha nove anos, apenas. E a oratória de um adulto. De um doutor.
De todos os filhos dos Freitas, era o mais mimado. Roupas? Um brinco. Nada de peão ou bola de gude na terra batida. Sem nata no café com leite. Ficava possesso. Hora de almoço, o feijão, sem casca… arroz papa, nem pensar. Bife deveria ser sempre fino, sem gordura e cebola. Sentia nojo de cebola. Tanto que muitos o provocavam por causa disso nas concentrações.
Era uma criança mimada. E isso teria um preço alto no futuro.
Queria a atenção para si. Seja no colégio ou no infantil do Mangueira, o menino Heleno sempre arrumava confusão, na maioria das vezes com os irmãos mais velhos. Costumava comprar a briga dos outros.
O irmão Heraldo, que tinha o dobro de sua idade, invariavelmente o expulsava do campo de jogo. O moleque altivo respondia sempre que do campo não sairia. Em uma daquelas ocasiões, Heraldo perdeu a paciência e arrastou Heleno na marra. Manteve-o imóvel, com um pé sobre o seu pescoço, enquanto dirigia o resto do treino. Oscar, o irmão do meio, quis defender Heleno. Instaurou-se um bate-boca. Por pouco não desceram a mão um no outro, como descreveram Marcos de Castro e João Máximo, os primeiros biógrafos de Heleno. Uma briga ali e outra acolá, Heleno chegou ao juvenil do Mangueira. Admirava um craque, dizem, de nome, Joaquim Mangueira. Quem sabe, o fundador do seu primeiro time.
Com 13 anos, Heleno foi estudar no Grêmio Mineiro, em Barbacena, e namorava Margarida, filha de seu professor e a menina mais cobiçada da região. O filho do seu Oscar usava um gorro de crochê que intrigava a garotada. Era o único do colégio que portava o adereço na cabeça. Todos queriam imitá-lo. O adolescente era líder. Mas por trás da moda de Heleno há uma história, que, por coincidência, foi recuperada pelo psiquiatra José Theobaldo Tollendal, médico formado no Rio de Janeiro e sócio-atleta do Botafogo em 1940, que conviveu com Heleno durante a adolescência e — por obra do acaso — cuidou do craque durante os seus últimos anos de vida em Barbacena. “Vi o Heleno pela primeira vez no Grêmio Mineiro, aqui em Barbacena. Era muito marrento, puxava o xis [sic] e usava um gorrinho vermelho e preto por causa do Flamengo. Mas ninguém é perfeito [risos], pois nessa época eu era meio Bangu”, contou Tollendal aos repórteres Maurício Miranda e Pedro Blank, que também ouviram o hoje barbeiro Florivaldo Ferreira Lima, com quem Heleno também conviveu no Grêmio Mineiro: “Ele era senhor de si, esnobe, não dava bola para ninguém”. Dava sim, apenas ao Flamengo. E pensar que o craque — como sempre se acreditou — era alvinegro desde criancinha… caiu, portanto, um mito.
Filho de Oscar de Freitas, negociante de café e dono de refinaria de açúcar, nascido em Pombal e de Maria Rita, de Cataguazes, professora, criada em Ouro Preto, Heleno teve sete irmãos: Heraldo, Oscar, Marina, Rômulo, Vera, Lúcio e José, os dois últimos eram gêmeos e morreram ainda pequenos. O pai não curou uma pneumonia e morreu em 11 de novembro de 1931, deixando Maria Rita com a árdua missão de completar sozinha a criação da vasta prole. Quem mais se perturbou com a morte do pai foi Heleno. Tinha insônia e lia muito para ocupar as noites em claro.
Sabiamente Maria Rita deduziu: se os filhos, logo que atingirem a maioridade estudariam no Rio, porque não antecipar a jornada? Ainda em 33, ela chega a então capital federal, mais precisamente à rua Conselheiro Lafayette, número 29, terceiro andar, apartamento sete. O prédio ficava na altura do posto seis da praia de Copacabana. Moraram também na Pensão Paulista, no Leme, mas por pouco tempo, pois voltaram ao posto seis. Todos ficaram com a mãe, menos Heraldo, que tempos depois regressou a Minas. Como escreveram João Máximo e Marcos de Castro, Heleno terminou o curso ginasial no colégio São Bento enquanto o irmão Oscar tornou-se dentista na mesma época.
Logo que a família Freitas aportou em Copacabana, Heleno e o irmão Oscar procuraram um campo para jogar bola. Encontraram a areia da praia que em nada parecia com a terra batida da várzea de São João Nepomuceno e de Barbacena. Moravam no Posto Seis, mas era no Posto Quatro onde havia um time de futebol dirigido por Neném Prancha. No elenco dos praieiros, muitos peladeiros ligados ao Botafogo.
Heleno poderia ter ingressado logo no time de Neném Prancha, onde jogavam notórios botafoguenses, como João Saldanha, Sandro Moreyra e Sérgio Porto [mais tarde famoso pelo codinome Stanislaw Ponte Preta], mas era tímido, tinha vergonha de pedir para jogar. No começo, o próprio Prancha desconfiava se o garoto tinha tino para jogar bola. Receio que duraria até o menino mineiro mostrar o que fazia com uma simples laranja. Neném viu a pérola que estava sob os seus cuidados, como destaca Antônio Falcão: “Na fantasia, o folclórico Neném Prancha, misto de filósofo e técnico, punha-se atrás de um tabuleiro de laranjas como se fora vendedor no areal de Copacabana. E para cada garoto jogava uma fruta. Pela reação, separava o craque do cabeça-de-bagre. Heleno de Freitas, mineiro de 12 anos [na verdade, já tinha 13], amorteceu uma laranja na coxa, deixou-a cair no pé, fez embaixada, levou-a à cabeça, trouxe de volta ao pé, que deu ao controle do calcanhar. E Neném viu que descobrira o mais fino, inventivo e temperamental craque do País. Por isso, até a morte, Prancha levou na carteira de cédulas a foto desse que brilharia como ninguém no Botafogo de Futebol e Regatas — muito mais que o fulgor da gloriosa estrela solitária do alvinegro carioca”.
Mas quem disse que só viviam de praia? Todos os irmãos, inclusive Heleno, trabalhavam para ajudar a mãe no sustento da casa. Heleno dividia o tempo entre as peladas no time de Neném Prancha e a labuta na Hime e Cia., empresa que pertencia a botafoguenses ilustres, como Gilbert Hime, ídolo dos primórdios alvinegro.
TUDO COMEÇOU NA PRAIA
O seu destino era, no entanto, ser jogador de futebol. E tudo começa em 1935, quando realiza a sua primeira partida oficial pelo Botafogo, com apenas 15 anos, no time juvenil que derrotou o São Cristóvão por 3 a 2 em um jogo preliminar do time principal do Botafogo contra o Santos [9 a 2 para o Alvinegro… carioca!], no dia 3 de agosto, em General Severiano. Fora apresentado ao técnico Kanela pelo amigo João Saldanha. Naquele jogo contra o time paulista, atuara como half-esquerdo.
Mas o trabalho na Hime e os estudos no ginasial do colégio São Bento impediam uma dedicação integral ao esporte bretão. Em 1936, o Botafogo extinguiu o departamento juvenil do clube. Preguinho [grande ídolo tricolor] o convida para ingressar no juvenil do Fluminense, que na ocasião papava tudo no futebol do Rio. Lá, jogavam no time principal Tim [de quem se tornaria grande amigo], Brant, Russo, Hércules… um timaço. Só matava aula no São Bento em dias de jogos pelo Fluminense ou das peladas no Posto Seis. O menino Heleno despontou como half no juvenil Tricolor e o técnico uruguaio Carlomagno, apesar de ser fã do rapaz, não ouviu os conselhos do jogador argentino Santamaria para que escalasse Heleno como center-forward. Preguinho interveio e vaticinou “Esse menino tem pinta de atacante”. Ninguém melhor que Preguinho para opinar sobre o tema. Foi um dos melhores atacantes da história do futebol brasileiro.
Carlomagno, como escreveu Marcos Eduardo Neves, acatou a indicação de Santamaria e Preguinho. Heleno, porém, não gostou muito. Achava que estava sendo perseguido. Durante um treino, esbravejou diante de Carlomagno: “E aí, seu gringo, vamos parar logo com essa merda?”. Carlomagno não recuou e partiu para cima de Heleno, que ouviu um clarão do técnico. Em outro treino, situação semelhante, com Heleno agora descarregando sua fúria contra os companheiros. Carlomagno o advertiu. A resposta foi imediata: “Não fode, gringo!”. O inusitado aconteceu. Permaneceu no clube e o argentino decidiu seguir destino longe das Laranjeiras.
Apesar da saída do desafeto, não mudou a postura. Ondino Vieira aportou no clube e pediu calma ao jovem talentoso, mas Heleno foi se cansado do Fluminense e o Fluminense dele.
Apesar do apreço que nutriu na infância pelo Flamengo, como confirmou o amigo José Tollendal, Heleno sempre afirmou ser Botafogo “desde criancinha”. Mesmo jogando pelo Fluminense, com o qual conquistou o campeonato carioca juvenil de 1939, caso seguisse nas Laranjeiras, disputaria a liga profissional. Mas ao ser abordado em Copacabana por João Saldanha em outubro de 1939 decidiu ingressar no Botafogo, que participava da dissidência amadora do futebol carioca, como assinalou Marcos Eduardo Neves, o biógrafo do Heleno de Freitas.
Com a unificação do campeonato carioca em 1940, prevaleceu a paixão pelo Botafogo, que era o time de seus amigos de pelada e boemia, entre os quais João Saldanha por quem nutria uma grande amizade. Chegaria a defendê-lo, anos mais tarde, para que policiais não o levassem preso. Era madrugada e os dois estavam na esbórnia. Ambos dividiam o aluguel de um apartamento no bairro para o qual levavam mulheres. Sua vida estava entre General Severiano, a Faculdade de Direito, que cursava em Niterói e onde se formou em 1946, e Copacabana. A amizade com Saldanha ficaria estremecida em 1943 após brigarem feio durante uma pelada no Posto Seis. Heleno disse que Saldanha “era um merda” e apanhou do amigo. Passou a freqüentar a praia, mas nada de futebol na areia.
Desde 1937, apesar de vestir a camisa tricolor, o Botafogo já via em Heleno um provável substituto do ídolo Carvalho Leite, goleador do tetracampeonato estadual, de 1932 a 35. Nos contratos com o Alvinegro, constavam cláusulas pesadas, que exigiam o pagamento de multa em caso de indisciplina. Com mais dinheiro em caixa, o jogador começou a ostentar. Comprou um suntuoso automóvel Chrysler. Só ele e o famosíssimo Leônidas da Silva tinham um igual. Nas concentrações, gostava de um carteado. E apostava alto. Era um jogador incomum. Dentro de campo era craque. Já jogara uma barbaridade em uma partida, realizada em abril de 1940, contra o São Cristóvão, na qual substituiu Carvalho Leite e marcou dois gols. Estava pronto para ocupar a vaga do ídolo alvinegro.
“Vi-o jogar, tantas vezes, fosse pelo Botafogo, fosse pela seleção nacional. Foi o meu primeiro ídolo, no futebol, quando cheguei ao Rio, em 1944.”, confessou Armando Nogueira, que na mesma crônica, estendeu o fascínio que a figura de Heleno sempre exerceu nele e em outros milhares de torcedores: “Viveu em conflito com o universo do futebol, amado como um Deus, renegado como o demônio: era o espantalho dos árbitros, o gênio da bola, o desafeto das torcidas. Era, também, o galã irresistível das mocinhas de Copacabana que lhe namoravam a elegância, no traje, a rebeldia, o anel de doutor e a celebridade. […] Heleno de Freitas realizava todas as virtudes de craque com um toque de beleza. Tinha, contudo, a psicose da perfeição: o erro do homem derrotava o artista — e Heleno perdia a cabeça, perdia a razão, perdia o jogo. Transtornado, acabava expulso. Fora de campo, era um cavalheiro, apesar de ter sido sempre marcado por uma sombra de narcisismo que é, por sinal, um dos grandes abismos do ídolo”.
Se foi mito a informação de que Heleno dormia abraçado a uma bola, não se pode dizer o mesmo de sua paixão pelo futebol. Isso não era lenda. Mesmo internado no sanatório jogava bola [de basquete] com as crianças de São João Nepomuceno. Volta e meia encontrava uma forma de escapar para disputar umas peladas. Não ia só. Dois enfermeiros ou os médicos que o tratavam acompanhavam-no.
Um dia, o Botafogo resolveu visitá-lo em 14 de outubro de 1956, para a inauguração do estádio Santa Teresa, o do Olimpic, de Barbacena. Geninho, grande craque do Cruzeiro e do Botafogo nos anos de 1940 e por quem Heleno tinha grande admiração, era o técnico provisório do Olimpic. O reencontro dos dois foi emocionante. Abraçaram-se e choraram copiosamente por alguns minutos, como relataram os repórteres Pedro Blank e Maurício Miranda.
Estiveram lá, entre outros, Nilton Santos, Didi e Garrincha. Heleno estava na arquibancada e viu a tudo sem poder fazer nada pelo Olimpic, que sofreu cinco gols. Xingou os companheiros e antes que a partida terminasse, deixou o estádio. Horas depois, recebeu os amigos botafoguenses em seu quarto na clínica e conversou com todos, exceto com o ex-ponta-esquerda Braguinha. Talvez porque os muitos passes errados na época de Botafogo ainda lhe vasculhavam a memória. Como o meticuloso Heleno brigava com o pobre Braguinha… e com o mundo.
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No período que fui repórter do Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, tive o imenso prazer de ter como colega o monstro sagrado da imprensa carioca Carlos Rangel, o querido “Rangelão”, que, como denota o apelido, tratava-se de um camarada alto no tamanho e, evidentemente, na competência como repórter. “Rangelão”, infelizmente, não está mais entre nós e lamento profundamente nas várias vezes que conversamos, entre intermináveis doses de café no botequim em frente à redação, não termos abordado sobre a figura de Heleno de Freitas. Falávamos de política, economia e cultura, mas jamais sobre Heleno. Pena…
Carlos Rangel escreveu uma biografia sobre Heleno intitulada “O Homem que sonhou com a Copa do Mundo”. Livro que este jornalista incauto só leria muitos anos depois para escrever sobre Heleno para a enciclopédia “Ídolos-Dicionário dos craques”. Tanto os empenhos pioneiros de Carlos Rangel e, pouco antes dele, de João Máximo e Marcos de Castro foram fundamentais para que entendêssemos (ou começássemos, pelo menos) a incomum trajetória de Heleno. Mas foi a obra singular de Marcos Eduardo Neves, ao seguir o caminho da excelente investigação após um papo com Luiz Mendes, que revelou de vez quem foi Heleno de Freitas.
Fica a dica para quem ainda não leu “Nunca houve um homem como Heleno”: simplesmente leiam. Independentemente de gostarem ou não de futebol, a obra revela uma história dramática, da glória ao ocaso, que só poderia mesmo parar no cinema.
Heleno faria hoje, neste domingo, 98 anos. Poderia ter vivido um pouco mais. Morreu prematuramente, no dia 8 de novembro de 1959, vítima do impiedoso avanço da sífilis, que corroeu integralmente seu cérebro, deixando-o em um estágio indescritível de total insanidade.
ABAIXO, OS POUCOS REGISTROS DE HELENO EM VÍDEO:
GOL PELA SELEÇÃO CARIOCA (DÉCADA DE 1940)
https://www.youtube.com/watch?v=Vyt_fPue5sQ
HELENO NO BOCA JUNIORS
https://www.youtube.com/watch?v=Uz3NfPDY_9o
https://www.youtube.com/watch?v=LxP3wKpIiKI
A MAGNÉTICA
por Serginho 5Bocas
Jorge Ben (ou Benjor) soube definir com precisão cirúrgica o apelido da torcida do Flamengo. O maior e mais carismático clube do Brasil tinha que ter uma torcida à altura, com vontade própria, com magnetismo, que fosse capaz de magnetizar os jogadores dentro do campo, empurrando-os para as vitórias, um décimo-segundo jogador.
A torcida do Flamengo sempre lançou moda e tendências no futebol brasileiro, ou algum flamenguista de carteirinha já se esqueceu quem foi a primeira torcida organizada deste país? Isso mesmo, a Charanga de Jayme de Carvalho, criada em 1942 e que animava os jogos com sua famosa bandinha.
Depois, em 1978, esta torcida maravilhosa criou uma versão de uma marcha ufanista do governo militar que caiu nas graças da galera e é repetida até hoje: “Conte comigo Mengão, acima de tudo rubro-negro, Oh meu Mengão, eu gosto de você…”.
E quando se ouviu pela primeira vez a torcida gritando o nome de cada jogador da escalação, do goleiro ao ponta-esquerda, com uma pequena alteração na ordem numérica, é que nesta homenagem o 10 sempre vinha depois do 11. Aquele era um momento solene, era a hora de enchermos os pulmões e gritarmos o quanto amávamos o nosso deus: “Zico, Zico, Zico…”.
Depois veio a década de 90 e trouxemos da Argentina, de um jogo contra o Boca Juniors, a batida de palma de mão espalmada, que na versão rubro-negra foi um espetáculo em preto e vermelho, principalmente na trajetória do “penta” comandado pelo maestro Junior, o famoso “chama o velho”.
E mais recentemente teve o grito de “poeira, poeira, levantou poeira…”, a música de Ivete Sangalo embalou os dribles de Felipe na condução de mais um carioca para a Gávea, e ainda sobrou espaço para homenagear Ayrton Senna com o “tema da vitória” adaptado para o universo rubro-negro.
Realmente esta torcida é um capítulo à parte na história deste clube e do futebol brasileiro, e eu teria um desgosto profundo se faltasse o Flamengo e a torcida do Flamengo no mundo.