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 SANTA CLARA

por Sergio Pugliese


Guaraci e Zico

Dona Sandra passava pelo corredor quando ouviu murmúrios no quarto. Só faltava essa. Seria Gaúcho, o maridão, falando sozinho? Da porta constatou um caso bem mais grave. Ajoelhado, ele olhava para o céu e rezava para Santa Clara clarear o dia seguinte, domingo da bendita pelada. Para a mandinga ser completa protegia dois ovinhos postados na janela.

– Preferi deixá-lo só. Não se contraria um doido numa hora dessas – divertiu-se a mulher.

Quem conhece Guaraci Valente, o Gaúcho, ex-modelo, ex-ator, craque de bola e empresário ousado, sabe que ele é um autêntico maluco beleza. É o gaúcho mais carioca de todos. Até Renato Gaúcho, batizado um dia de Rei do Rio, ele deixa no chinelo. É criativo, irreverente, espirituoso e completamente enlouquecido por peladas. Tanto que hoje vive delas. Em sociedade com Claudinho Cunha montou a Planet Globe, uma ideia genial. Um time de atores e cantores famosos que viaja por todos os cantos do planeta representando empresas ou campanhas educativas. Foram, inclusive, campeões do mundo na Rússia e sul americanos, na Argentina.

– Não pode haver nada melhor na vida do que respirar pelada 24 horas – vibra Gaúcho.

Na verdade ele e a pelada nunca se desgrudaram. Quando criança era manhã, tarde e noite. Jogou pelo mirim do Internacional e no colégio participou de todos os torneios. Na Aeronáutica fez parte da seleção. Nessa época já era modelo e também montou um time na agência. Aí veio para o Rio e, em 69, foi contratado pela Globo. Seu primeiro papel foi na novela A Ponte dos Suspiros, com Claudio Marzo. Entrava mudo e saía calado como chefe da guarda francesa.

– E ainda tinha que usar uma peruca loura – recordou, às gargalhadas.

Mas nem no elenco global se aquietou. Conheceu Dary Reis, ator responsável pelo time de estrelas da emissora que se apresentava no Brasil inteiro, principalmente em preliminares de grandes clássicos. Daí a inspiração para o Planet Globe. Entrou para o time e não saiu mais. Fez uma linha de frente infernal com Nuno Leal Maia e foram chamados para interpretar dois jogadores em Vereda Tropical.

– Não tinha jeito. Eu e a pelada sempre acabávamos nos cruzando. Um caso de amor! – brincou.

No Rio, Gaúcho circulava em todas as rodas e logo tornou-se uma figura conhecida e folclórica por seu jeito feliz de levar a vida. Morou com Tim Maia e Hyldon, no Solar da Fossa, uma espécie de albergue onde era o Canecão, e por anos jogou no Dínamo, time de praia de Tião Macalé, o Nojento. Vivia de sunga e invadia a casa de Junior Mendes para almoçar. Sujava tudo de areia para desespero do pai do amigo, Luiz Mendes, “o comentarista da palavra fácil”.

– Tenho história para contar – orgulha-se.

Certa vez o time da Globo foi jogar no Maracanã, preliminar do clássico Flamengo x São Paulo, com público de 123 mil torcedores. Gaúcho estava na ponta dos cascos. O jogo era contra astros paulistas e seu marcador, Agnaldo Timóteo. No último minuto, Betinho Lúcia Esparadrapo cruzou a bola para a área e Gaúcho ajeitou de cabeça e emendou uma bicicleta certeira. Gol da vitória. O Maracanã foi abaixo. Da cabine de rádio, João Saldanha comentou ao vivo para Luiz Mendes: “O Botafogo está precisando de um centroavante desses!”. Mas Luiz Mendes sabia de quem se tratava e fulminou: “Deixa quieto. Esse Gaúcho é amigo do meu filho. Vai lá para casa depois da praia, suja tudo e deixa a Daisy (Lúcidi, mulher dele) quase louca”.

No gramado, Gaúcho era festejado pelos amigos. Nesse dia, ele fez chover. Ainda bem que Santa Clara não interfere nesse tipo de chuva. Pelo contrário. Gaúcho garante que até ela deve ter pulado na arquibancada. Com todo cuidado do mundo para não quebrar os ovinhos.

José Cunha + Walter Salles

ÉPOCA DE OURO

entrevista: Sergio Pugliese | texto: Marcelo Mendez | fotos e vídeo: Daniel Planel 

Houve um tempo em que o rádio de pilha era o “melhor amigo” de muita gente e, se isso ocorreu, muito se deve a José Cunha e Walter Salles, o garimpeiro da notícia, sempre levando aos ouvintes o melhor da crônica esportiva.

José Cunha, por sua vez, é capaz de transformar até os jogos de futebol de mesa em emocionantes. Sua narração é algo fora de série.

Para falar de José Cunha, se faz necessário voltar para o tempo dos sonhos.

Uma época em que, sem tanta interatividade, sem tanta tecnologia, as pessoas não eram reféns de nada que não fosse seus próprios encantos, suas odes, suas tantas vidas e paixões.

No meu caso, eram os tempos de menino do Parque Novo Oratório em Santo André, naqueles tumultuados anos 70.

 Se bem que na segunda metade da década, quando realmente descobri o Zé, as coisas já não tavam tumultuadas assim…

 Mas isso não fazia parte da minha infância.

Aos sete anos de idade, no ano da graça de 1977, eu já era apaixonado pelas coisas da bola e como não tinha muito jeito de ver futebol se não fosse indo aos estádios, ou vendo os poucos jogos da TV, eu via absolutamente tudo que passava. E aos domingos à noite, ali por volta das 20h, era a hora do Compacto do Campeonato Carioca.

Para nós, em São Paulo, passava na TV Cultura e, dessa forma, descobri os narradores da TVE Rio.

 Foi assim que descobri José Cunha.

“Roberrtôôôô… Ta lááááááá!!!”

José Cunha não gritava gol, porque dizia que o telespectador não é cego. “Ele ta vendo aí que foi gol, pô!” – Tinha voz rouca, forte, preenchia toda a sala da minha casa e eu pirava nisso tudo.

Agora, no ano da graça de 2018, mais de 40 anos depois, temos a chance de ver José Cunha, ao lado da fera Walter Salles, de maneira orgânica, livre e solto, contando toda sua trajetória aqui no Museu da Pelada.

Divirtam-se!

 

 

GARRINCHA, UM CRAQUE ‘ITALIANO’ QUE POUCOS CONHECERAM

por André Felipe de Lima


Garrincha é, talvez, o jogador de futebol mais pródigo em histórias. Algumas realmente verdadeiras, outras, porém, parte integrante e indispensável do anedotário do futebol brasileiro. Vivemos assim, felizes com nossas histórias. O brasileiro, no fundo, confia nas mais diversas versões possíveis para reproduzi-las no dia seguinte. Isso nos faz diferentes e sempre sorridentes, sei lá. Talvez singulares. E, porque não, artistas. Sim, todos trazemos conosco um pouco do Garrincha. Ora tristes, é verdade, mas deliciosamente irresistíveis e, acreditem, felizes e lúdicos. Brincamos de viver como poucos.

Há muitas histórias do Mané que desconhecemos. Algumas delas, esse jornalista pretendia mostrar no documentário “Simplesmente passarinho”, que idealizei e comecei a produzir com o amigo e cineasta Marco Louro. Realizamos diversas entrevistas, com ex-jogadores, como Jordan, Altair e Coronel, a trinca mais famosa de “Joões” do Mané, e os tchecos da final da Copa de 62; amigos de Pau Grande, inclusive a primeira professora dele; personalidades do futebol, como o icônico João Havelange… enfim, gente à beça. O filme não conseguiu driblar a burocracia e o descaso com a cultura que afligem o Brasil. Mas vamos tocando (a vida) felizes… e contando histórias.

Garrincha era assim. Exímio contador de histórias e “tocador da vida” como poucos. Passava por ela da mesma forma que deixava para trás seus marcadores. Uma vez Elza Soares, companheira inseparável, levou-o a tiracolo para uma longa turnê na Itália, em 1970. Montaram residência na pequena Torvaianica. Elza queria tirar Garrincha do Brasil a todo o custo. No clássico “Estrela solitária”, Ruy Castro detalha essa desesperadora iniciativa da cantora para ajudar o companheiro, encalacrado com a justiça e muito deprimido. Mas essa é outra história. Mané estava na Itália e tinha que passar o tempo enquanto Elza cantava. Garrincha questionara: “O que farei enquanto a minha ‘Nega’ (como carinhosamente se referia a Elza) canta por aí?”. Ele pensou rápido, e veio a resposta: “Vou jogar bola, ora”.

Perto de Roma há uma pequena cidade chamada Sacrofano, que deve ter hoje cerca de 7 mil habitantes. Em 1970, quando Garrincha pintou por lá, deveria ter menos da metade que comporta hoje. Fez o mesmo em Mignano Monte Lungo, outra miúda “comune” italiana, ainda menor que Sacrofano, com pouco mais de três mil habitantes. Era o que Mané precisava naquele momento. Estava completamente duro e sem ter o que fazer enquanto Elza cantava. Calçou chuteiras e entrou em campo para disputar peladas com açougueiros e mecânicos. Embolsou por cada pelada cerca de 80 mil liras. Para os italianos, uma ninharia. Para Garrincha, a salvação da lavoura.

O time do Sacrofano era treinado por Dino Da Costa , ex-atacante histórico da Roma e da Juventus, com quem Garrincha jogou no Botafogo. Dino providenciou o show do Mané.


A deliciosa história foi recuperada pelo repórter Maurizio Crosetti, do jornal italiano La Repubblica, que ouviu, em 2016, personagens que arriscaram a honra ao tentarem, em vão, marcar Garrincha, que mesmo completamente fora de forma e já com sinais claros do devastador e impiedoso alcoolismo, deitou e rolou em cima dos italianos.

Carlo Sassi, um despretensioso lateral-esquerdo que jogou pelo modestíssimo e não menos despretensioso Sacrofano, tinha somente 20 aninhos quando ousou encarar um Garrincha já pra lá de Bagdá, mas ainda cascudo: “Garrincha estava sempre em silêncio, mas sorrindo. Ninguém conseguia tirar a bola dele. Ele marcou dois gols no canto, um no primeiro tempo e outro no segundo. Ele era um homem de pernas tortas, mas quão maravilhoso”, recordou o “João” italiano.

Crosetti fez a reportagem que todos nós, que amamos a história do futebol e, principalmente, a dos nossos ídolos, desejaríamos fazer.

Hoje, na sede da ASD Sporting Sacrofano, há fotos daquele memorável dia com Garrincha. Nosso Mané, cujas histórias andam tão esquecidas por nós, distraídos e lúdicos brasileiros, é para Edoardo Valentini, presidente do gentil Sacrofano, um “tesouro para todos”. Lá, na Itália, ou em qualquer canto do mundo, ainda se lembram do nosso Mané. Aqui, ainda sorrimos sem saber exatamente o porquê. Sorrimos ou choramos de histórias presentes sem que o passado nos instigue a nos prepararmos para o futuro. Não sabemos mais driblar nossa ignorância. Esquecemos que um dia fomos todos Mané. Mané Garrincha Futebol e “Vida” Clube.

CRAQUES TRÁGICOS

por Rubens Lemos


O futebol seria imperfeito sem o passional de componente. A paixão emana das arquibancadas e explode no campo e nos gestos de volúpia inconsequente dos jogadores desenhados pela tragédia sobreposta ao talento. O pecado nem tanto assim da ira e a fúria sem limites como a capacidade do drible e do gol. Edmundo foi a continuação de Almir Pernambuquinho.

Quando pesquisava para o livro “Danilo Menezes, o Último Maestro”, em 2000, descobri uma história que revela o cangaço e a lei sertaneja da justiça pelas mãos impregnadas em Almir. Ele estava no Flamengo em 1966. Seu irmão, Adilson, formava a linha atacante do Vasco ao lado de Nado, Célio e Tião. Adilson levara umas pancadas do imenso Denílson, o Rei Zulu, num jogo perdido para o Fluminense. Apanhara e não revidara. Adilson estava em sua beliche em São Januário e Almir invadiu a concentração, transtornado. Partiu para o irmão e aplicou-lhe uma
surra: “Pra você aprender a ser homem e não apanhar na rua, como nosso pai sempre ensinou em Recife. E quem encostar para me impedir apanha também”. Estava presente o hercúleo miolo de zaga cuzmaltino, formado por Brito e Fontana, que batiam até no vento mas nem se mexeram.


Almir Pernambuquinho, naquele 1966, provocou a maior briga da história do Maracanã. O Flamengo perdia do Bangu por 3×0 e dava adeus ao título carioca. Almir jurou que os campeões não dariam a volta olímpica e provocou o atacante Ladeira. O pau cantou, ele bateu em muitos, apanhou e cumpriu sua promessa.

Três anos antes, Almir substituiu Pelé com a 10 do Santos. Na finalíssima do Mundial Interclubes contra o Milan no Maracanã. Resolveu provocar Amarildo, estrela do time Rossonero e que havia tomado a sua vaga na Copa de 1962. Entrou com crueldade no tornozelo do Possesso, também conhecido pela coragem. Amarildo levou a pancada e não reagiu. “Seu covarde, vou bater na sua cara, traidor do Brasil!”.

Desta vez a experiência do volante Zito conteve Almir, porque se fosse expulso, o Santos provavelmente,  não comemoraria o Campeonato Mundial. Almir foi barrado da Taça do Atlântico de 1960. Seria titular da seleção brasileira. Proibido pelos organizadores de participar da competição por ser considerado um jogador “anti-social”.

Ele e o uruguaio Martinez que haviam trocado sopapos num jogo do Sul-Americano de 1959 que virou praça de guerra. Já em 1958 Almir, então no Vasco, teria vaga na reserva de Pelé. Perdeu o lugar para o ótimo e equilibrado Dida, do Flamengo.

Almir não tinha valentia de fanfarra. Seu temperamento suicida o levou a contar detalhes do submundo do futebol à Revista Placar em 1973. Almir admitiu jogar dopado, denunciou resultados manipulados, colegas venais. Antes de concluída a série de reportagens, uma bala disparada pelo português Artur Garcia atingiu seu crânio.

Almir morreu aos 35 anos, corpo estendido na grande área do Bar Rio-Jerez em Copacabana. Almir quebrou seu script e resolveu defender artistas gays provocados pelo português na barra- pesadíssima da Galeria Alasca. Regra contrariada, Almir foi defender o Grupo Dzi-Croquetes. Uma bala e não levantou mais.


Edmundo foi um atacante sensacional. Impetuoso, driblador, goleador. Nunca jogou bem pela seleção brasileira. Fracassou na Copa de 1998. Edmundo foi dispensado do Botafogo ainda juvenil. Costumava exibir-se nu para meninas de um colégio próximo à concentração. O Vasco descobriu seu talento e na primeira partida, uma preliminar no Maracanã, vingou-se fintando meio time do ex-clube e fazendo um gol que o público aplaudiu de pé.

Imediatamente integrado aos profissionais, arrancou felino à fama. Do Vasco ao Palmeiras, o Verdão quebrou o jejum de 17 anos sem títulos sob o comando explosivo do Animal, batizado à perfeição pelo narrador Osmar Santos.

No Palmeiras, Edmundo agrediu um cinegrafista e foi preso no Equador. Agentes diplomáticos foram acionados para soltá-lo do hotel que foi seu cárcere. Saiu para o Flamengo, onde a notoriedade saltou do gramado para as páginas policiais, com o acidente de automóvel com mortes em 1995.


Edmundo passou por Santos, Corinthians, Cruzeiro, novamente Palmeiras, Figueirense, brilhou mesmo no Vasco, sua casa e seu casulo. Pelo Vasco, chamou de “Paraíba” o juiz cearense Dacildo Mourão, quando foi anulado pelo América em Natal no Brasileirão de  1997, seu clímax.

Edmundo e Almir Pernambuquinho formam um só personagem de habilidade e ebulição incessantes. Edmundo e Almir Pernambuquinho provam que o futebol também escreve, por linhas de desgraça, epílogos  de homens de pés encantados.

A PEQUENA COBAIA DE DEUS, O VELHO ALEMÃO E UMA PARTIDA EM WEMBLEY

por Marcelo Mendez

Era tudo branco.


Depois que minha cadeira de rodas adentrou o CTI, eu só via branco por todos os lados. A parede, o chão, o teto, as roupas, os médicos. Aliás, eu já não tinha mais as roupas. Quando cheguei em casa mal, minha mãe correu comigo e, então, dei entrada no hospital com a roupa do Nacional do Parque Novo Oratório.

Mas me tiraram ela.

No lugar da minha camisa 10, me deram um camisolão branco, que deixava minha bunda de fora, mas esse não era o maior dos problemas. Eu estava zonzo, não sentia as pernas, tomei uma anestesia pesada, mas não dormi.

Do transe que era estar ali, aliado com todos os medos que eu tinha de tudo que tava me acontecendo, o pior era ficar sozinho. Eu tinha 11 anos de idade e nunca tinha sido separado dos meus pais, da minha irmã, dos meus primos e amigos. Nenhum deles ali.

No lugar, uma cama, várias agulhas de soro, o irritante barulho do aparelho em coração de outro e toda a agrura de estar só. Minha doença era transmissível e então eu fui impedido de ter contato com as pessoas, de receber visitas, de ter alguém ali comigo. A incerteza foi a tônica por aqueles dias CTI.

Dores de cabeça, choros noturnos, medo; Passei por tudo naqueles dias absurdamente cumpridos. Eu não sabia quantos, descobri quando o médico veio falar comigo em uma manhã cinza de maio:

– Fala, Craque; Eu analisei seus exames, estou aqui te consultando e depois de seis dias, você melhorou bastante. Vou pedir para ligarem para sua casa, vou te dar alta daqui. Você vai para o quarto.

Era dia 8 de Maio de 1981. E nunca mais na vida, gostei tanto de um quarto como aquele que ele me mandaria…

O Quarto…

Os dias seguiam no Hospital Santo André.

No quarto onde eu estava tinha eu, Dionísio e Seu Nelson. Dionísio tinha 42 anos, era metalúrgico, trabalhava na Cofap e estava la por conta de uma cirurgia para retirada de pedra nos rins. Seu Nelson tinha 77 anos e cuidava de uma complicação cardíaca, um troço muito grave.

Por conta disso, do avançado da doença e da idade, ele quase não falava. Dionísio era com quem eu mais conversava. A convivência com ele me ajudava passar as horas, as visitas ainda não estavam totalmente liberadas, só podia ver meu pai e minha mãe, nem minha irmã podia me visitar. Então foi ele quem se tornou o meu maior parceiro.

– Sabe Dionísio, amanhã o Brasil joga lá na Europa!

– Ah é. Li hoje no jornal.

– Pô… Queria ver esse jogo, mas aqui, sem chance.

– É. Tv só nos quartos particulares e no nosso andar só tem o do Velho chato lá do final do corredor…

– Que Velho?”

– Ah, é um Velho lá, um Alemão, tal de Gunther. Mas Marcelo, vê lá o que você vai fazer. Você tem que ficar de repouso, seu Pai pediu pra eu ficar de olho em você. E o Velho la é um puto de chato!

– Tá, Dionísio, tá bom!

Fui dormir pensando nisso e no outro dia, já tinha tudo confabulado…

Gunther…


Como parte da minha recuperação, o médico me mandou dar uns passos pelo corredor do Hospital.

Segundo ele, 100 passos pela manhã. Eu já me sentia bem melhor e então sempre dava umas andadinhas a mais. E foi com essas andadinhas que eu cheguei até a área onde ficava o quarto particular do nosso andar. Me aproximei da porta.

Parados, dois caras grandões me olhavam curiosos. Um deles, falou comigo:

– Ei moleque, que você tá procurando aqui?

– Nada que cê possa me ajudar a achar.

O outro grandão riu dele. Ele voltou a falar:

– Moleque abusado. Sai daqui, isso é um quarto particular!

– Eu num tô no seu quarto. Tô no corredor e vou ficar aqui!

Nessa hora, ele ficou bem bravo e o outro já não ria. Eles vieram até minha direção, sei lá o que fariam, mas daí uma voz forte, grossa, grave, veio lá do quarto:

– Que está acontecendo aí fora?

Não deu tempo de respondê-lo e ele já estava na porta. Um homem branco, enorme! De barba branca, bengala, rosto meio avermelhado. Os dois correram acudi-lo e ele os empurrou e xingou. Contaram a ele o que tinha acontecido e ele ouvia como se eu não tivesse lá. Mandou que um fosse ao interfone chamar alguma enfermeira e depois falou comigo:

– Como é teu nome?

– Marcelo!

– Sim e o que você tá fazendo aqui, Marcelo?

Respondi de primeira:

– Eu vim porque me falaram que no quarto do Senhor tem uma TV. E eu queria ver o jogo do Brasil, o senhor deixa?

– Jogo… Eu não tenho nada com isso de jogo. Vai pra seu lugar, a enfermeira ta chegando!

– O Senhor não gosta porque seu time é uma baba. A Alemanha tomou um baile da gente. Deveria assistir pra o senhor ver como jogo bola..

– Do que você tá falando, moleque? Eu não gosto de bola, de nada, vai embora.

– Eu vou. Mas o senhor é muito triste. Deve ser ruim ser assim.” – Falei e fui embora frustrado, encontrando com a enfermeira que chegou no corredor. Nessa hora ele chamou:

– Ei. Que horas é esse jogo?

– À tarde, Três da tarde!

– Hum. Ta bom. Pode vir aqui, ver” 

– Sério??

– Sim, pode…

Nessa hora, depois de 15 dias, eu corri uns 10 metros pelo corredor e pulei para abraçar o Velho Gunther. Os dois grandões que la estavam, seguraram a gente, visto que Seu Gunther andava fraco.

Descobri então que eles eram seguranças de Gunther, que o Velho Alemão era empresário, tinha uma fábrica de molas em São Bernardo, que estava ali cuidando de um câncer. Cheguei no quarto, contei pra Dionísio e ele me deu uma dura. Fui na sacola das minhas roupas e peguei a camisa do Brasil que a prima Lourdes me deu.

Às 15 horas fui para o quarto de Gunther para assistir o Brasil vencer a Inglaterra por 1×0 gol de Zico. Na verdade, outras coisas foram mais legais naquela tarde, outras histórias.

Foi a hora de conhecer Velho Gunther. E através desse fato, saber de muitas outras coisas da vida…