Paulinho Criciúma
O POETA DA BOLA
Embora seja Drummond o predileto do craque, é a prezada Cecilia, onde quer que ela esteja além dos corações e das mentes daqueles que só mentem para fingir as dores que deveras sentem – e já vou fazer o mesmo a Pessoa -, que peço permissão para começar este texto, distorcendo levemente seus versos, quase da mesma forma que fez Caetano. E que o baiano Veloso me conceda por sua parte também.
Nem alegre, nem triste, poeta. Poeta da bola. Paulinho Criciúma, 10 na camisa, na posição em campo e na nota no trato com a pelota e com as pessoas, devia estar meio ressabiado e me driblou várias vezes. Porém, gentilmente cedeu à marcação, certamente só para não causar uma desfeita. E, podem crer, foi a melhor coisa que fizemos: ele ao aceitar o convite para este papo que você tem aí à sua disposição, e eu – perdoem-me pela citação em primeira pessoa – por não ter desistido de trazer a sua voz de inteligente sensibilidade e um pouco de sua valiosa História no futebol para o público fã do Museu da Pelada.
Depois de mais de um mês de idas e vindas, dribles daqui e dali, ele rolou a bola para mim e tabelamos desde o nosso encontro numa manhã de sexta, no início de dezembro, em frente ao edifício em que mora, onde fui apanhá-lo com o motorista Vander Schons para seguirmos até onde já se encontrava – preparando tudo – o nosso cinegrafista, Fernando Gustav. Ali, cercados de verde por todos os lados e observados por crianças que pararam sua pelada matinal para saber o que acontecia, traçamos uma resenha sem firulas, mas com aquela destreza de quem lida com prosa e versos com a mesma facilidade com que (ele) tratava a bola. E foi assim que este bate-papo fluiu, como um bate-pronto da entrada da área, daqueles que pega na veia e a pelota morre no barbante depois de quase matar a coruja dormindo.
No fim, o autor deste golaço ainda me pediu desculpas, como se fosse preciso. Porém, diante da solicitação do craque aceitei, acatei, é claro, porque gentileza gera gentileza, já dizia o profeta. E, que se preze, todo e qualquer poeta.
Caso queira ler na íntegra a poesia “Botafogo”, de Paulinho Criciúma, é só clicar aqui: http://mundobotafogo.blogspot.com/2014/11/paulinho-criciuma-poema-do-poeta.html
O PRIMEIRO BRASILEIRO A CONQUISTAR UMA COPA DO MUNDO
por André Felipe de Lima
O ano era 1958. O primeiro protagonista, seu Filó, ou Amphiloquio Guarisi Marques, proprietário de uma modesta mercearia, a Santa Clara, no Jardim Paulista, zona nobre de São Paulo. A segunda personagem principal, a seleção brasileira, que se preparava para disputar a Copa do Mundo, que se realizaria nos gélidos campos suecos. Novamente, como acontecia há duas décadas, a imprensa montava guarda na porta do estabelecimento daquele senhor, que nutria o sobrenome “Marques”, herança do pai português Manuel Augusto, segundo presidente da história da Portuguesa de Desportos, e o “Guarisi”, benção da mãe italiana Wanda. Um senhor que desde o “Maracanazo” de 1950 não queria saber de futebol.
Mas os jornalistas queriam ouvi-lo. Precisavam extrair dele o sentido de ser campeão mundial de futebol. Afinal nenhum outro brasileiro ostentava algo parecido. Com exceção de seu Amphiloquio, que, na distante data de 10 de junho de 1934, dia em que a Azzurra conquistou sua primeira Copa do Mundo, tornou-se o primeiro jogador de futebol do Brasil a sentir o gostinho de fazer parte do melhor esquadrão do planeta. Tampouco importava se o pavilhão que defendera era pintado com as cores verde, vermelho e branco ou se a Itália, sua nova nação, estivesse sob a ditadura fascista de Benito Mussolini. Nenhum outro teria o mesmo status de Filó, este o apelido que o consagrou nas canchas brasileiras, pelo menos até surgirem, em julho de 1958, Garrincha, Pelé, Didi, Nilton Santos e Cia.
Desejosos em saber como era ser o melhor do mundo, os repórteres o enchiam de perguntas sobre os tempos em que fora um ponta-direita dos mais habilidosos na primeira metade do século XX.
O grande Filó nasceu na rua Araújo, no Centro paulistano, no dia 26 de dezembro de 1905. Ele respondia aos jornalistas com orgulho, mas quase didaticamente. Falava linearmente, ou seja, do início, quando começou aos 12 anos, em 1917, no time infantil do aristocrático C.A. Paulistano, onde jogava o craque Rubens Salles, um dos grandes ídolos da moçada paulistana nos primórdios do futebol no Brasil, para somente depois recordar sobre sua breve passagem pelo time infantil do São Bento, em 1918.
Enchia-se de orgulho ao narrar sua estreia, com apenas 17 anos, no time principal da Portuguesa de Desportos, no dia 30 de abril de 1922, para onde foi levado pelo pai, cartola da Lusa. De cara, deparou-se com o temido Paulistano. E o resultado não seria outro senão a vitória do poderoso clube da aristocracia: 2 a 0. Mas o menino não se importou. Apesar da pouca idade, jogava ao lado de alguns dos primeiros ídolos da Portuguesa, como o goleiro Mesquita; os zagueiros Remo e Gaúcho; a linha média formada por Meirelles, Aloya e Canhoto e os atacantes Salerno, Dino, Coelho e Mancuso. O jovem Filó firmou-se como o novo craque da Lusa.
No Campeonato Paulista de 1924, seu time empatou em 5 a 5 com o Brás. Filó saiu de campo consagrado ao assinalar os cinco gols da Portuguesa. No mesmo ano, lembraram-se dele para compor a seleção paulista. Estreou no dia 9 de novembro, quando os paranaenses conheceram o poder de fogo de Filó, que marcou dois gols da goleada de 5 a 0 aplicada no escrete adversário. Estava cada vez mais difícil mantê-lo na Portuguesa.
Filó, cujo apelido era “Maquininha” devido à versatilidade em campo — cedeu ao assédio dos cartolas do Paulistano, sobretudo o de Antonio Prado Junior, que articulara com representantes esportivos franceses uma excursão inédita de um time brasileiro à Europa.
O futebol sul-americano estava na crista da onda. Os uruguaios conquistaram a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1924 e, no ano seguinte, Nacional de Montevidéu, Boca Juniors e Paulistano arrumaram as malas de seus craques para uma longa viagem ao Velho Continente. Filó e todos os seus companheiros de Paulistano, como Friedenreich, Araken Patusca, Clodô, Barthô e Mario de Andrada, embarcaram no dia 10 de fevereiro de 1925, em Santos, no navio Zeelandia, do Lord Real Holandês, rumo a Cherburgo, na França.
O Paulistano disputou 10 partidas e venceu nove. Autor de quatro dos trinta gols marcados pela equipe brasileira, Filó foi um dos destaques da extraordinária campanha.
O estádio de Búfalos, em Mont Rouge, Paris, estava lotado, no dia 15 de março de 1925, para o primeiro jogo do Paulistano em solo francês, e logo contra um escrete bleau, blanc et rouge. Na arquibancada havia muita gente de nome, dentre as quais representantes políticos da França e os brasileiros Washington Luís [então governador de São Paulo], Souza Dantas [diplomata] e o príncipe D. Pedro de Orleans e Bragança. Mas o que ninguém esperava — nem mesmo os ilustres brasileiros — era uma goleada de 7 a 2 do Paulistano, com Filó balançado as redes uma vez.
E o Paulistano do Filó não parava de ganhar jogos. Um atrás do outro. Os jornais franceses não falavam em outra coisa senão sobre “les rois du football” [Os Reis do Futebol]. As reportagens do Américo Rocha Neto, do jornal O Estado de S. Paulo, e de Mário Vespaziano de Macedo, do São Paulo Esportivo, também apontavam o Paulistano como um esquedrão imbatível. Quando o Paulistano, no último jogo da campanha, aplicou um rotundo 6 a 0 na seleção português, aí não havia mais dúvida: os caras eram mesmo os maiorais. Mas a peleja contra os lusitanos teve de acabar aos 30 minutos do segundo tempo. Caso a delegação não deixasse logo o estádio, perderia o navio de volta ao Brasil.
Naquele mesmo ano da estupenda campanha do Paulistano pela Europa, Filó vestiu a camisa da seleção brasileira pela primeira vez. Atuou na vitória do Brasil por 5 a 2 sobre o Paraguai, no dia 6 de dezembro de 1925, e fez um dos gols do match. O escrete brasileiro formou com: Tuffy, Penaforte e Clodô; Nascimento, Floriano e Fortes; Filó, Lagarto, Friedenreich, Nilo e Moderato. Filó jogaria mais quatro partidas pela seleção do Brasil.
Em 1926, o ponta-direita ajudou o Paulistano a conquistar o Campeonato Paulista e encerrou a competição como artilheiro, com 16 gols. Na temporada seguinte, faturou o bicampeonato, mas pela Liga Amadora Futebolística [LAF]. No ano de 1929, Filó foi duas vezes campeão paulista. Pelo Paulistano, que disputou o torneio realizado pela LAF, e pelo Corinthians, que disputou a competição organizada pela Associação Paulista de Esportes Atléticos [Apea]. Pelo clube alvinegro, conquistaria o bicampeonato em 1930.
A ITÁLIA NA VIDA DE FILÓ
Com os craques brasileiros se destacando aqui e em jogos no exterior e, claro, com a insatisfação reinante com o amadorismo no futebol, o mercado europeu começou a atrair muitos jogadores. Especialmente a Itália, o novo eldorado. E nem precisaria de sobrenome italiano para que algum craque ingressasse no calcio. Burlavam-se certidões de nascimento e um “Da Silva” se tornaria um “Giuseppe” da noite para o dia. “Oriundi” torto, mas que funcionava. “Qualquer jogador, branco, mulato ou preto podia ir embora. Bastava jogar bem futebol, querer fazer a Europa. O jogador branco, então, tinha todas as facilidades. Era branco se trocasse de nome, se arranjasse um sobrenome italiano, ninguém na Itália daria pela coisa”, destacou Mario Filho. O Guarisi, da mãe, garantiu o passaporte de Filó sem nenhum subterfúgio. Para o cronista, o assédio ao Filó era, descaradamente, o mais acintoso: “O caso de Amphiloquio Marques, o Filó do escrete paulista, do escrete brasileiro. Quem não sabia em São Paulo, os jornais cansados de publicar biografias dele, que Filó era filho de portugueses? Pois chegou a jogar na azurra, posando para os fotógrafos de braços levantados. Aquele ali, de braços levantados, não era o Filó, Amphiloquio Marques, era o Guarisi, Amphiloquio Guarisi.”
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Esta introdução da biografia de Filó integra o primeiro volume de “Ídolos & Épocas – A Era do amadorismo, de 1900 a 1933”, contemplando biografias de craques com iniciais de A a F, a ser lançado em breve.
HABITUADOS A PERDER
:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::
Em 1950, jogamos de igual para igual com o Uruguai, na decisão do Mundial, perdemos de 2×1 e vivenciamos o maior choro da história do Maracanã.
Em 1982, com uma seleção dos sonhos, jogamos de igual para igual com a Itália, levamos de 3×2 e desabamos em lágrimas.
Em 1974, o Brasil jogou de igual para igual com a Holanda, perdi um gol feito – até hoje tenho pesadelos com esse lance – e fomos eliminados da Copa.
Depois disso, o Brasil curvou-se aos europeus e há 20 anos tomamos pancadas nas principais competições internacionais. E o pior disso é que nos acostumamos a perder.
Essa derrota do Flamengo para o Liverpool foi a prova incontestável de que estamos em outro patamar no futebol mundial. Antes mesmo de o Flamengo entrar em campo muitos torcedores rubro-negros e a própria mídia destacavam o poder de força do time inglês. Ou seja, o time do Mister já estava feliz por ter ido tão longe. Jogou de igual para igual com o River e até mesmo com o Al Hilal.
Jogar de igual para igual já está de bom tamanho para o futebol que um dia foi o. melhor do mundo. Os alemães nos colocaram na roda e tiraram o pé para não nos dar de 10 o que não bastou para enterrar, ali, a Era Felipão. Agora, outro alemão, Jürgen Klopp, reforça que ainda falta muito para voltarmos a ser os melhores do planeta. Estamos alguns bons patamares abaixo. Enquanto o time inglês voltou para a Inglaterra sem festas e carros de bombeiro esperando no aeroporto, o noticiário da tevê brasileira abriu informando que o Flamengo perdeu jogando de igual para igual. Mas não bastou! No último domingo, no intervalo do Faustão, um ao vivo despertou minha atenção, afinal chovia muito e pensei em alguma catástrofe, mas era, pasmem, uma repórter, de capa amarela, sozinha, em um lugar ermo, informando que o avião do Flamengo acabara de pousar no Galeão.
Nunca um vice-campeonato foi tão festejado, nunca aceitamos tão passivamente uma derrota, nunca assinamos um atestado de segundo escalão, talvez terceiro, quem sabe quarto, do futebol mundial. Mas na mesa ao lado da minha, no bar, um torcedor jovem comentava com o outro, orgulhoso, “mas ganhamos milhões, o clube está com muito dinheiro”. Me preocupa essa postura, que não se concentra apenas naquela mesa de bar. O futebol brasileiro precisa contratar um bom psicanalista, deitar-se no divã e rever os seus conceitos.
A derrota deve ser chorada, sofrida. Do contrário, nos acostumaremos com ela e oficializaremos esse ridículo de igual para igual como nosso mantra. Pergunte para algum jogador brasileiro da Copa de 78 se eles concordam com o título dado a eles de campeão moral.
Campeão é quem está no alto do pódio, como fez o Liverpool e sua louvável miscigenação, com o egípcio Mohamed Salah, o senegalês Sadio Mané, o holandês Virgil van Dijk, o brasileiro Roberto Firmino e o inglês John Alexander-Arnold.
O Brasil mais uma vez bateu palmas para os vencedores. Se continuarmos com essa filosofia acabaremos lustrando suas chuteiras e os carregando nos ombros durante a volta olímpica.
A MÍSTICA DA CAMISA SETE
por André Felipe de Lima
Há coisas que só acontecem ao Botafogo. Ouço até hoje essa máxima. Porém, embora a frase tenha sido praticamente patenteada pelos alvinegros, nos últimos 12 anos sequestrei-a para mim. Explico o porquê. Logo que me transferi de mala, cuia e livros para a Tijuca, um, digamos, “espírito que anda” (e não é o Fantasma dos quadrinhos) me cerca vestindo uma camisa sete do Botafogo. A primeira vez que o encontrei foi na fila de um banco. Ele tentou puxar um papo. Não dei muita bola porque estava estressado e fazendo cálculos – aliás, minha vida é mais matemática que literatura ultimamente. Pedi licença ao botafoguense e que me deixasse calcular em paz. Dali em diante, em cada canto da Tijuca e até de Vila Isabel me deparo constantemente com ele e sua indefectível camisa sete.
O camarada parece me seguir. Hoje não foi diferente. Passeando com minha esposa e meu filho no shopping Tijuca, lá estava o cara novamente. Nossos olhares se fitaram, e concluí: trata-se do meu anjo da guarda. Não tenho dúvida disso. De algum lugar do céu, a camisa sete do Mané me acompanha. Passo a passo, ensinando-me a driblar essa tão difícil marcadora que se chama vida. Deveria ter dado atenção ao botafoguense naquele primeiro encontro. Há coisas que só acontecem conosco e, vá lá, ao Botafogo.
JOHAN CRUYFF. O GÊNIO INDOMÁVEL
por Israel Cayo Campos
Não posso falar de um universo tão grande como o de jogadores que já jogaram e ainda atuam no futebol atual. Mas com certeza, posso afirmar que dentro do status futebolístico que alcançaram, os dois jogadores mais inteligentes que eu já vi na história desse esporte foram o Doutor Sócrates e o holandês Johan Cruyff.
Infelizmente, como todos os gênios, o excesso acabou por lhes ceifar a vida. Respectivamente o álcool e o cigarro. Por mais que ambos tivessem plena consciência do caminho arriscado que escolheram seguir…
No dia 25 de abril de 1947, nascia em Amsterdã, capital da Holanda aquele que seria o maior gênio da história do futebol de seu país e um dos maiores jogadores da história do futebol. Seu nome era Hendrik Johannes Cruijff. Mas “aportuguesamos” seu difícil nome para Johan Cruyff.
Segundo a Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS), o maior jogador europeu de futebol de todos os tempos e o segundo maior jogador do mundo só atrás de Pelé.
Ainda garoto, Jopie (apelido de Cruyff na infância), perdeu seu pai, Hermanus “Manus” Cruyff, vítima de um fulminante ataque cardíaco. Sua mãe, Petronella “Nel” Bernarda Draaijen, que já trabalhava de maneira voluntária no Ajax, passou a exigir do clube uma remuneração. Além de procurar outro emprego para que pudesse sustentar a família.
Tal atitude de “Nel” associada a perda do pai moldou o caráter de Cruyff, o tornando um ser humano contestador e revolucionário. Mesmo com a ajuda terapêutica paga por Rinus Michels com o objetivo de contribuir na superação do luto, nada funcionou. Anos mais tarde, Cruyff admitiu que “Nunca aceitou uma ordem”. Se isso foi verdade, está explicado porque ele se daria tão bem com o “Baixinho” Romário tempos depois…
Ainda alternando as peladas na rua e os treinos no Ajax, Cruyff teve um problema na formação dos pés que quase o impediu de jogar futebol. Todavia, para sorte dos amantes do esporte, houve um grande erro médico e Jopie continuou a treinar no time que anos a frente lhe permitiria alcançar a projeção que conseguiu.
Em 1964, estreou pelo seu clube do coração com apenas 17 anos marcando um gol. Mas o time, que não enfrentava uma sequência vitoriosa desde os anos 1930, não fizera uma boa temporada.
Cruyff, já aquela época, possuía um senso de liderança admirável dentro do campo, sendo capaz de reorganizar o time no meio da partida, dar instruções com a bola no pé e atuar em várias faixas do campo durante os 90 minutos.
Certa vez, emprestou a camisa 9 que costumava usar a um companheiro de clube e vestiu a 14. Se sentiu tão bem usando esse número que nunca mais o largou! Em um mundo onde todos os craques querem vestir a camisa 10, dar ao número 14 tamanha importância foi criar uma marca registrada que dura até hoje! Cruyff, já no final dos anos 1960, entendia de marketing pessoal!
No ano seguinte, Cruyff se uniu a um treinador de ginástica para crianças surdas chamado Rinus Michels. A forma de ambos enxergarem o futebol era comparável ao de um amor a primeira vista. A partir dessa união, surgia o conceito de “Futebol Total”, que Rinus e Cruyff jamais abandonariam.
Até hoje é difícil dizer qual era a posição do holandês dentro de campo. Horas estava marcando como um zagueiro ou lateral, horas armando o jogo como um volante, meia ou ponta, horas dentro da área definindo como um autentico camisa nove! O incrível era que nessa polivalência, o holandês conseguia ser um craque em todas as faixas do campo! O que dificultava ainda mais saber qual era sua principal zona de ocupação no gramado!
Particularmente, ficaria com a brilhante definição da Revista Placar. “Cruyff atuou em todas as posições, menos no gol”.
A partir daí, o Ajax passou por uma revolução. Foram oito campeonatos holandeses e cinco copas da Holanda em dez anos de duas passagens do craque pelo clube. O time voltara a ser a principal potência dos Países Baixos. Mas isso era pouco para Cruyff.
Michels fora contratado pelo Barcelona em 1971 e chamou Johan para o clube catalão, no entanto, Cruyff mesmo tentado decidiu ficar no clube de Amsterdã para conseguir três títulos seguidos da atual Liga dos Campeões da Europa: 1971, 1972 e 1973. Sendo essa última, com direito a eliminar o Bayern de Munique de Franz Beckenbauer.
Ainda vieram a Supercopa da UEFA e o Mundial Interclubes de 1972 (Só não vieram mais dois mundiais pois o Ajax declinou das disputas em favor dos vice campeões europeus).
Com as conquistas sendo o destaque da equipe, vieram também os títulos individuais. dentre eles, três Bolas de Ouro em 1971, 1973 e 1974. Cruyff assumia o bastão que antes fora de Puskas e Eusébio como o melhor jogador europeu.
Após ter mudado o Ajax de patamar, Cruyff se sentiu traído por seus companheiros que decidiram lhe tirar a braçadeira de capitão por sua forte personalidade. Com isso, migrou para o Barcelona, clube que já era treinado pelo seu grande amigo Rinus Michels.
Antes de chegar a Catalunha, o Real Madrid lhe fez uma boa oferta, mas Cruyff pediu um salário de 12 mil dólares anuais, o que foi considerado absurdo pelo clube merengue.
Com isso, o holandês seguiu para o Barcelona na metade de 1973 e na mesma temporada (73/74) já conquistou o campeonato espanhol. Um título que não vinha para o time catalão há 14 anos Aos dirigentes do Real Madrid, restou o arrependimento até hoje de não terem subido um pouco a oferta.
Tal atitude já denotava que Cruyff era um gênio indomável, e que sabia muito bem que o futebol por mais divertido que fosse era um trabalho, e que por isso mesmo deveria ser encarado de uma maneira profissional.
Apesar de um grau de entendimento de mundo superior a média da maioria dos futebolistas, um vício o seguia desde garoto no Ajax: Os cigarros! Em uma declaração de 1991, Cruyff disse que chegava a fumar 20 cigarros por dia!
Ainda no período entre Ajax e Barcelona, chegava mais uma eliminatória para a Copa do Mundo. Dessa vez a Holanda iria tentar uma vaga no mundial da Alemanha Ocidental, coisa que não conseguia ha 40 anos, quando foi ao mundial de 1934 disputado na Itália.
Apesar do forte time montado com base no Ajax e no Feyenoord, a Seleção holandesa só conseguiu a vaga no mundial pelo saldo de gols ser superior ao de seus arquirrivais belgas. Tendo empatado em número de pontos e em jogos diretos contra o país vizinho! Mesmo assim, Cruyff conseguia mais um feito, recuperar o futebol holandês de seleções para o mundo!
Chegava o mundial da Alemanha Ocidental de 1974, Michels havia pego uma espécie de licença do Barcelona para treinar a seleção holandesa (Dizem alguns que fora influência direta de Cruyff). Estava montada a espetacular “Laranja Mecânica”, um time que misturava o talento individual ao vigor físico e que revolucionaria o futebol mundial a partir de conceitos estabelecidos na ideia do futebol total de anos antes. Tais como o jogo em alta velocidade, marcação mais dura, toque de bola, dribles sempre em projeção do gol e posse de bola.
Mas antes da Copa, Cruyff teve que mostrar mais uma vez sua personalidade. A seleção holandesa era patrocinada pela Adidas, e para estampar seu patrocinador resolveu colocar as três listas características da marca nas mangas de suas camisas.
Porém Cruyff, que era patrocinado pela Puma se recusou a fazer propaganda gratuita do patrocinador rival! Sua camisa era a única que só tinha duas listas ao invés das três tradicionais!
Começa o mundial e o “Carrossel Holandês”, apelido dado pela tática em que os jogadores não guardavam posições fixas, em especial o próprio Cruyff, começou a “passar o trator” por todos os adversários.
O uruguaio Pedro Rocha, uma das vítimas de Cruyff, chegou a dizer que só pediu por sua mãe duas vezes na vida! Uma em sua estreia como profissional e a outra quando enfrentou a seleção holandesa de 1974! Os marcadores uruguaios que haviam “jurado” Cruyff antes da partida saíram dela reclamando que não conseguiam sequer chegar perto do camisa 14.
Além do Uruguai, a seleção laranja passou por Suécia, Bulgária, Argentina, Alemanha Oriental e Brasil. Com Cruyff atuando muito bem em todas as partidas!
Contra o Brasil em especial, mesmo em um primeiro tempo de muita pancadaria, Cruyff fez Leão fazer a mais bela defesa da Copa do Mundo!
Mas no segundo tempo debaixo de chuva, o camisa 14 cruzou para Neeskens marcar e em seguida, ele mesmo fechou o caixão brasileiro. Em sua segunda Copa na história, Cruyff, Neeskens, Krol, Rep, Resembrink e Michels conseguiram levar a Holanda a final do torneio com total favoritismo, mesmo que o adversário fosse a dona da casa, a Alemanha Ocidental.
Antes de prosseguir na história vale um adendo sobre a Seleção brasileira: Desde 1950, os brasileiros têm o costume de nunca reconhecerem o mérito adversário, mas sim erros próprios! Foi assim com Barbosa em 50, O complexo de vira-latas em 54, o goleiro Manga e pancadaria europeia em 66, o roubo argentino em 78, os erros individuais de Cerezo e Valdir Peres em 82, o pênalti perdido de Zico em 86, Lazaroni em 90, a convulsão de Ronaldo em 98, a falta de pulso de Parreira em 2006, Felipe Melo em 2010, Felipão em 2014, e Fernandinho em 2018.
A única Copa em que os jogadores e imprensa da época reconhecem que o Brasil não perdera por seus erros, mas sim pela total superioridade do adversário fora a derrota de 1974 para a Holanda e para Cruyff. Se tratando de Brasil, onde sempre nos consideramos superiores no futebol, isso é um mérito e tanto para Johan.
Voltando a final do mundial de 1974, mal o jogo havia começado e Cruyff recebeu a bola como um zagueiro. Foi avançando, driblou seu marcador individual Vogts, entrou na área e acabou derrubado, era pênalti para a Holanda sem sequer a seleção alemã ter tocado na bola! Neeskens bateu e abriu o placar.
No primeiro tempo, Cruyff ainda deixou Rep na cara do gol. Poderia ser o segundo e decisivo gol holandês. Mas o atacante foi parado pelo goleiro Sepp Maier, talvez na maior atuação de um goleiro em finais de Copas do Mundo.
Após o gol de empate e virada da Alemanha ainda no primeiro tempo, Cruyff parecia bastante irritado, o que acabou por desestabilizar o time como um todo. Ao fim da primeira jornada, tomou um cartão amarelo após áspera discussão com o árbitro. Tal instabilidade aliada a uma partida irreparável de Maier fizeram o jogo de Cruyff desaparecer e consequentemente a Alemanha segurar o jogo até o final, o que garantiu o bicampeonato mundial do país.
Para Cruyff, restava o vice campeonato e o prêmio de melhor jogador da Copa e do ano de 1974 como já citado antes!
Citando Israel Cayo Campos em outro texto: “Acho engraçado ler de alguns especialistas que Cruyff era um jogador tático, porém não talentoso como outros grandes gênios do futebol! Além da consciência tática que possuía, o holandês também tinha um talento absurdo! Passes precisos, dribles desconcertantes para ambos os lados sempre em direção ao gol, movimentos giratórios que deixavam zagueiros no chão, velocidade, arranque, ótimos cruzamentos e um faro de gol que faria inveja a qualquer camisa nove de ofício”.
Para os mais jovens, se pudéssemos comparar épocas, um jogador que lembra o estilo de jogo de Cruyff é o argentino Lionel Messi. A exceção é que Messi não volta para marcar, Cruyff fazia isso com primor!
Claro, o argentino é mais talentoso e vitorioso durante sua ainda não terminada carreira, mas Cruyff não fica tão atrás no jeito de jogar, além de ter um conhecimento tático como jogador bem superior ao do argentino.
Assim como no Ajax, Cruyff e Michels revolucionaram o estilo de jogo do Barcelona. Um clube que tinha a cara do holandês, Revolucionário! Mais um título da Copa do Rei veio em 1978 e chegava a hora da Copa do Mundo da Argentina.
A Holanda conseguira de novo a classificação, mas dessa vez, Cruyff anunciara que não disputaria o torneio! Aos 31 anos e ainda em seu auge, a ausência do melhor jogador do mundo a época não fora entendida e explicada por ninguém!
A Holanda foi novamente vice-campeã, mas já não lembrava o futebol maravilhoso do mundial anterior sob a capitânia de Johan.
Muito se especulou sobre a recusa de se jogar aquela Copa. Alguns disseram que Cruyff não teria ido como afronta a ditadura militar argentina da época! Outros alegaram que foi por motivos relacionados a patrocinadores como ocorrera em 1974. Mas anos depois o próprio Cruyff contou que fora um sequestro pelo qual ele e sua família passaram um ano antes do mundial da Argentina que acabou gerando o trauma que o fizera querer sair dos holofotes mundiais por um tempo.
A alegação apesar de demorada nunca foi contestada, e por isso ficou como a explicação oficial para a não ida do craque holandês a Copa de 1978.
Em 1978 resolveu se aposentar, mas acabou voltando atrás após problemas financeiros. Em 1979, acabou indo jogar na Liga dos Estados Unidos, onde segundo o próprio, teria mais sossego e anonimato! O que em partes comprova seu argumento sobre o sequestro!
Após o reestabelecimento financeiro, Cruyff voltou para o seu Ajax de coração aonde conquistou mais uma liga holandesa! Mas ao fim da temporada, o clube não quis pagar o que o craque achava merecer receber e o dispensou! A vingança de Cruyff foi assinar um contrato com o arquirrival Feyenoord, que em 1984, com Cruyff como principal jogador, ganhou o campeonato holandês em cima do Ajax!
Aos 37 anos, era o fim de sua carreira como futebolista em grande estilo!
Cruyff terminou a carreira de jogador com 660 jogos e 514 gols por clubes, além de 48 jogos e 33 gols pela seleção holandesa. Números excelentes para uma carreira de vinte anos de futebol profissional!
Mais uma prova de que Cruyff era um sujeito de personalidade forte se deu ainda anos 1980 quando a seleção holandesa não conseguira se classificar para as Copas de 1982 e 1986 mesmo sendo vice-campeã nas duas dos anos 1970.
Fora feito um congresso de treinadores holandeses para resolver o problema da Seleção em 1987. Entre os membros do debate estava Rinus Michels. Cruyff apareceu meio que de penetra e começou a dizer tudo que estava errado no futebol holandês dos anos 1980, inclusive para o seu mestre Michels. A partir dali, a Holanda se reestruturou e montou uma base forte que culminou no título da Eurocopa de 1988 com a nova versão da “Laranja Mecânica”.
Seleção holandesa que era novamente comandada por Rinus Michels, mas que se recuperara graças aos conselhos do antes aluno Johan Cruyff!
O conhecimento futebolístico do ex-camisa 14 o levou para a carreira de treinador. Em 1986 assumiu o Ajax, e conquistou duas Copas da Holanda em 1986 e 1987.
Logo foi chamado para dirigir o Barcelona, que não vinha mostrando um bom futebol desde a época em que o próprio Cruyff era jogador.
Em 1988, Cruyff voltava a Barcelona para fazer história, dessa vez como técnico. No time catalão ele passou a inserir um estilo de jogo que dura até hoje. Onde a posse de bola, o futebol bonito, a técnica e objetivo do gol são as principais características!
Se o Real Madrid foi, e continua a ser mais vencedor, o Barcelona graças ao estilo Cruyff se tornou um futebol mais belo de ser observado enquanto espectador! Mas um belo com resultados que fizeram a distância em conquistas para o clube da capital espanhola diminuir!
Só com Cruyff como treinador, foram quatro campeonatos espanhóis, uma Copa do Rei, quatro Supercopas, sendo três da Espanha e uma da UEFA. E a tão sonhada Liga dos Campeões de 1992, título que até então era inédito para o clube. Cruyff é um dos poucos que podem dizer que revolucionaram um clube como jogador e como técnico!
Ao contrário de quando era jogador, quando “cuspiu cobras e marimbondos” pela derrota na final da Copa de 1974 com a famosa frase “A Alemanha não ganhou a Copa do Mundo. Nós a perdemos”, Enquanto treinador, aprendeu a reconhecer quando uma equipe era superior a sua. Foi assim com o São Paulo de Telê Santana no Mundial de Clubes de 1992 e com o Milan de Fábio Capello na final da Champions de 1994.
A maturidade, o nome na história, e os títulos conquistados trouxeram mais tranquilidade ao gênio holandês! Mas não só isso. Sua saúde passou por um risco em 1991, quando por causa do tabagismo precisou fazer uma cirurgia cardíaca! A partir dali, largou o inveterado vício em cigarros e passou a cuidar mais da saúde. Fez até propagandas antitabagistas onde dizia que só teve dois vícios: O futebol, que lhe deu tudo que ele possuía, e os cigarros, que quase lhe tiraram a vida!
Mesmo assim, quase 25 anos depois de ter parado de fumar, Cruyff foi diagnosticado com câncer de pulmão. Que rapidamente se alastrou em seu corpo e o fez nos deixar, segundo seus familiares de maneira tranquila, no dia 24 de março de 2016 em Barcelona.
Chegava ao fim a vida de um dos cinco maiores jogadores de todos os tempos (Na opinião do escritor do texto), mas seu legado fica até hoje para jovens do mundo todo em vários projetos sociais promovidos pelo craque! Alguns inclusive no Brasil!
Em pesquisa popular de um programa inglês, Cruyff ainda fora eleito o sexto maior holandês de todos os tempos, atrás de nomes como Erasmo de Roterdã, Antonie van Leeuwenhoek (O verdadeiro inventor do telescópio, e não Galileu Galilei), Willian de Orange e Pim Fortuyn. Pra se ter uma ideia, nessa mesma pesquisa no Brasil, um país com bem menos tempo de história que a Holanda, Pelé, o maior jogador de todos os tempos, ficou apenas em décimo segundo!
O estádio do Ajax mudou de Amsterdã Arena para Johan Cruyff Arena. O Ajax aposentou a camisa 14! E só nos restou o “espírito” desse gênio do futebol aprisionado naqueles que puderam aprender com ele. A maioria saídos das “canteiras” do Barcelona…
No mais, nunca mais veremos outro gênio igual Johan Cruyff a desfilar seu talento nos gramados! Um gênio contestador, Um gênio com as palavras, Um gênio com a bola nos pés! Um gênio político! Um gênio indomável!