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NEWTON ZARANI

por Marcos Vinicius Cabral


Passava das 19h quando cheguei à redação do Jornal dos Sports, na Rua Tenente Possolo, Cruz Vermelha. 

Não lembro o dia mas não esqueci o ano: 1995.

Com meu portfólio debaixo do braço, percorrer os jornais da cidade era uma rotina que eu começava sempre depois do almoço e ia até tarde da noite.

Ora, era um garoto de 22 anos, que acreditava que minhas charges e caricaturas poderiam mudar o mundo, as coisas, as pessoas, sei lá…

Mas naquele noite, em que o corre-corre na redação era frenético em virtude do fechamento, tive a oportunidade de, antes de receber um “por favor, volte amanhã, e venha mais cedo que conversaremos”, de Carlos Macedo, então editor do jornal esportivo mais tradicional da cidade, cruzei com Newton Zarani na portaria.

Era fácil saber quem era Zarani, pois como leitor assíduo do “cor de rosa” e das suas colunas “Vale-Tudo”, “Esporte Total” e a principal delas, “De Trivela e na Canela”, seu rosto já era familiar para mim.

Segurei pelo seu braço, fui me apresentando e já mostrando meus desenhos. 

– Olha, me desculpe mas tenho que fechar duas matérias e uma Coluna! – disse tentando se esquivar de mim como quem driblava seus marcadores no infantil, no juvenil e nos aspirante do América, seu clube de coração. 

– Não! Por favor, preciso que o senhor veja meu trabalho e diga ao Macedo o que achou, pois ele me mandou voltar amanhã! – implorei.

– Tá bom, garoto, mas seja breve! – ordenou ajeitando os óculos. 

Não levei mais de cinco minutos.

– Pronto, já vi! Posso trabalhar? – perguntou e saiu andando.

Olhei fixamente com cara de desolado e antes de ir embora, soltei.

– Gostou, seu Zarani?

– Lógico que não, respondeu.

– Sério? – insisti. 

– Sério, pô! Não tem caricatura de nenhum jogador do América – justificou abrindo os braços, se virando em minha direção e rindo.

Depois disso, nunca mais o vi, ou melhor, nunca mais falei com ele.

No dia seguinte,  cheguei mais cedo e fui muito bem atendido por Macedo, que comentou sobre o Zarani ter visto meu portfólio.

Acabei fazendo as charges e as caricaturas naquele Campeonato Brasileiro de 1995, no qual Kléber Leite era presidente e responsável pela contratação do pior ataque do mundo, com Romário, Sávio e Edmundo.

Voltei a colaborar com o JS em outras três ocasiões: 1999, 2005 e 2010.

Mas a primeira eu jamais esqueci, assim como desse nosso (único) encontro.

Passados 25 anos, fica a dúvida: foi o Macedo que gostou realmente do meu trabalho ou o Zarani que deu uma força?

Não terei essa resposta, infelizmente. 

O craque que até os 80 anos esbanjou “catiguria” nos campos da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, chorou por duas vezes na vida pelo Mecão. 

Uma, no título carioca do América conquistado em 1960, na vitória por 2 a 1 contra o Fluminense, no Maracanã. 

– Eu tive um tremelique! Aquilo deu de uma hora para outra. Foi o momento que eu mais senti, achei até que ia passar mal, porque era muita emoção! Eu estava voltando do Maracanã e precisei encostar em um canto. Abaixei a cabeça e chorei muito! – desabafou ao repórter André Mendonça.  

A outra, no inexplicável rebaixamento do clube em 1987, na Copa União. 

– Aquilo foi uma covardia! Eu senti raiva, fiquei revoltado! Escrevi muita coisa sobre isso no Jornal dos Sports, dei muita porrada! Foi um assalto à mão armada com vários cúmplices. O América nunca foi ajudado pela arbitragem! Nunca teve força, porque sempre foi um clube de bairro. Clube querido, segundo clube de todo carioca, mas isso não adiantava nada! – revoltou-se à época.

Porém, das lágrimas derramadas por Zarani, certamente a mais dolorosa foi quando o Jornal dos Sports encerrou suas atividades e fechou.

Anteontem, dia 11 de maio, o criador do futsal e que era chamado carinhosamente “De Todos Os Esportes”, se foi aos 93 anos.

Enquanto aqui esteve, foi grande como o seu América e referência para todo jornalista.

Ao mestre, todo carinho e que descanse em paz!

JOÃO FELIPE

por Claudio Lovato 

É um garoto alto e de olhos arregalados, como se estivesse em permanente estado de espanto. 

Tem 16 anos recém-completados, se chama João Felipe e neste exato instante está curvado sobre a mala aberta em cima da cama em seu pequeno quarto na casa pobre de madeira em que sempre viveu.

A mãe o observa, da porta, com os braços cruzados e uma cara de quem está vivendo uma tragédia.

O pai permanece na sala, sentado em sua poltrona, vestindo seu melhor traje, aguardando o visitante que chegará a qualquer momento.

Um carro estaciona em frente à casa. “Jurandir”, todos pensam ao mesmo tempo, sem engano.

Mais alguns instantes e há uma batida na porta, e o pai a abre e os dois homens se cumprimentam com vozes graves e empostadas, há um tom solene naquilo.

A mãe aperta o terço que usa no pescoço, depois alisa o tecido do velho vestido estampado, presente do marido num tempo em que ainda havia presentes entre eles.

O pai vem pelo corredor e chega àporta do quarto e coloca uma das mãos sobre o ombro da esposa e pigarreia.

“Tá na hora de ir”, ele diz, olhando para o filho.

João Felipe coloca na mala a sacola de supermercado com escova de dente, escova de cabelo, saboneteira, desodorante, xampu e cortador de unhas, e então a fecha. É uma mala surrada, cor de vinho, com um cinto passando em volta e uma fivela grande, uma mala usada tempos atrás pelo pai, quando ele viajava pelo interior vendendo equipamentos agrícolas e roupas e chocolates e laticínios e o que mais lhe caísse nas mãos; quando o pai ainda trabalhava de verdade.

O garoto alto e magro que tem um chute forte de canhota e um domínio de bola que impressiona a muitos veteranos observadores do futebol, coloca a mala no chão e pega o boné em cima da mesa de cabeceira.

João Felipe vai embora, vai para a capital, vai morar no estádio.

Ele olha para os pais e se sente dominado por um sentimento até então desconhecido, um sentimento que mistura alegria e tensão, entusiasmo e medo; há excitação contida e melancolia antecipada. Uma confusão.

João Felipe então agarra a alça da mala com a mão molhada de suor e vai ao encontro de “seu Jurandir”, vai ao encontro do que a vida tem para ele longe dali, em outro mundo, vai em busca do que ele imagina que terá que arrancar da vida de um jeito ou de outro e, mesmo que não saiba o quanto realmente quer isso, vai em frente, apenas vai, porque não há outra coisa a fazer, porque ele, em termos muito realistas, não tem escolha, não mais.

 

 

Esta cena – em parte – ocorreu, segundo o que me foi relatado, numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, no começo dos anos 90. De acordo com outros relatos, João Felipe foi dispensado quando ainda estava na base do clube para o qual foi levado por Jurandir. Na sequência vagou por clubes do interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, alguns pertencentes à segunda divisão do futebol desses estados. Hoje é dono de uma pequena loja de material de construção na cidade onde nasceu e na qual trabalham seus dois filhos – um canhoto e o outro destro, ambos com um assombroso domínio de bola.    

“VAI PARA CASA, PC”

  :::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::


Um dia de sol desses é impossível ficar em casa. Então, me arrumei, peguei meu Fiat Spider na garagem, abaixei a capota e fui, devagarzinho, sem máscara, sentindo a saudável brisa de Ipanema e Leblon. No caminho, reencontrei a turma do Grêmio, time que jogava na praia, entre as ruas Jerônimo Monteiro e Aristides Espinola, no início da Niemeyer. Acenei para Roma, Ronaldo Luiz, Lauro, Rica, Manoel, Gilo, Fred Foca, Reinaldo, Iata Anderson, Batata e meu irmão Fred. Tomavam uma cervejinha gelada, me chamaram, mas segui em frente. Parei quando vi uma aglomeração. Berraram meu nome. “Vem PC, só falta você!”. Era o time do Columbia que tinha armado um amistoso com estrelas do futebol. Estacionei e estavam lá Jairzinho, Zico, Adílio, Júnior, Gerson Canhotinha de Ouro, entre outros.

Pelo Columbia, aliás, tive a oportunidade também de jogar ao lado de Reinaldo, Juarez, Ivan, Mota, Agnaldo, Edu, Eduzinho e Léo. Uma equipe da Placar estava lá para cobrir. Fiquei só um pouquinho porque tinha combinado encontrar Evandro Mesquita, no Píer, altura da Joana Angélica. De longe, o avistei. Estava com Malibu, Otávio, Paulo Proença e Paulinho Suprimento, com sua Kombi. Essa turma é da pesada! Já cheguei gargalhando porque não dá para ficar perto do Evandro sem rir. Na areia, perto de nós, estavam Caetano Veloso, Gilberto Gil e Fernando Gabeira, os três com as tanguinhas que estão bombando nesse verão. Como é bom encontrar amigos, rir, falar bobagem. Gugu e Joninha, do Lagoa, passaram por ali e me chamaram para uma dupla de chute a gol. Não tem como negar! Me despedi e fomos caminhando pela areia até encontrar o pessoal. Feliz demais por reencontrar Nelinho, que chegou de Minas. Mas o pessoal do vôlei também estava, Zezinho, Aluísio, Bernard…claro que escolhi Nelinho, mas morri de rir porque ele, sem conseguir chutar direito da areia, optou por chutar do calçadão, Kkkk, não me aguentei!!! Mas pior que saiu cada petardo de endoidar o goleiro Paulo Sergio. Ganhamos, claro!

Depois, demos um mergulho e ficamos sentado na areia. Foram chegando Búfalo Gil, Pintinho…agradeci a Deus por tudo, pela família, pelos títulos, pela amizade, pelo Rio de Janeiro, por estar com saúde. Sol se pondo, os surfistas aplaudindo, saí de fininho para dar um pulo na Montenegro. Para mim, sempre será Montenegro. Pedi um guaraná e fiquei olhando o movimento. Vi Doval, meu grande parceiro das noitadas, chegar de moto com Marinho Chagas. Dois grandes amigos! Pedi a conta, entrei no meu Fiat e voltei para a casa. Ligo a tevê, vejo que o número de mortos pelo Corona vírus vem aumentando e fico inquieto. Preciso respirar. Pego minha máscara e fico parado na portaria do prédio olhando as ruas vazias. Vejo uma cidade, vazia, sem brilho. Saio para caminhar no quarteirão. Meu Fiat Spider não existe mais, Doval e Marinho Chagas nos deixaram bem antes da existência desse vírus. Não encontro ninguém na caminhada, nem os amigos do Columbia, do Grêmio, da dupla de praia, ouço apenas uma voz vinda não se de onde me aconselhando….”vai para a casa, PC”.

A COOPERATIVA DE ATLETAS DO SÃO CRISTÓVÃO EM 1983

por André Luiz Pereira Nunes


Quem um dia resolver enveredar sobre a escrita da história dos clubes-empresa no Brasil, terá de iniciar pela embrionária experiência do São Cristovão de 1983 através da sua inovadora cooperativa de atletas. De acordo com o projeto, os próprios jogadores seriam responsáveis pelas contratações e gerenciamento do time. A ideia parecia excelente. Quem duvidaria que um elenco composto por expoentes como Nílson Dias, Gil, Orlando Lelé, Nielsen, Rodrigues Neto, Rubens Galaxe, Edu (campeão de 70), Jayme de Almeida e Rui Rei não seria imbatível? Mas nada deu certo. Faltou comando e literalmente pernas. A divisão era assim composta: 40% da renda líquida se destinava aos atletas da cooperativa, 40% ao clube e os 20% restantes para reserva técnica. Inicialmente houve lucro. Basta dizer que na estreia (0 a 3 Fluminense em São Januário) o público pagante foi composto por 8.742 pessoas. Em seguida o time jogou um amistoso em Aracaju (2 a 2  Combinado Sergipe/Confiança, gols de Edu e Orlando) com uma excelente cota. Tudo levava a crer que o projeto seria bem lucrativo, mas as derrotas se sucederam. O time era considerado velho demais apesar dos inegáveis talentos, embora alguns estivessem em fim de carreira e nem todos continuassem até o fim do Estadual. Gil e Nílson Dias foram os primeiros desfalques. Ambos se transferiram para Portugal, aproveitando a divulgação que a cooperativa lhes trouxe. Até o final ficaram apenas Rodrigues Neto, que se tornara treinador do time, e o ponta Edu.

A cooperativa de jogadores do São Cristóvão, em 1983, foi uma grande ideia, mas com péssimos resultados. Não trouxe prejuízos financeiros, mas o time acabaria rebaixado à segunda divisão após uma campanha muito aquém do esperado. Foram 22 jogos, 0 vitória, 4 empates e 18 derrotas. Foram utilizados 45 atletas e 5 técnicos, entre os quais, Aristóbolo Mesquita, lembrado com carinho pela torcida cadete por ter trabalhado de graça para o time cadete. 

Portanto, apesar dos revezes, o time cadete de 1983 é lembrado com enorme carinho por conta da experiência inédita e inovadora envolvendo ídolos consagrados do futebol brasileiro.

CHEIRO DE SAUDADE

texto: Mauro Ferreira | fotos: Marcelo Tabach

O velho Zarani foi jogar futsal em outras bandas. Peladeiro nato, daqueles que perde o casamento do irmão, mas não perde a pelada, o jornalista Newton Zarani, 39 anos de Jornal dos Sports e primeiro jogador federado de futebol de salão do mundo, foi chutar a bola pesada em bandas extraterrestres na madrugada fria desse 11 de maio de 2020. Quis o destino que esbanjasse  sua“catiguria” nas quadras terráqueas até os 82 anos e frequentasse a do Club Municipal diuturnamente, até os 93.

Cobriu quase todos os esportes ditos amadores, mas foi no basquete e no futsal que “sentou praça”. Era o colo de muito “foca” – e o esporro, também. Todos eram acolhidos com carinho; no primeiro vacilo, assanhamento, um chega pra lá sutil derrubava o aventureiro do seu pedestal recém construído. O melhor de Zarani, era o Zarani. Escrevendo, jogando, convivendo. Não à toa, uma legião de seguidores chora sua ausência, mal ergueu a mão esquerda num adeusinho unido ao seu indefectível sorriso de canto de boca. Como definiu um estagiário observador o sorriso mais não-sorriso do mundo.


É, velho, seu legado é muito mais extenso do que você e seus filhos imaginavam. Mais infinito que o próprio infinito. Se você pensou em  morrer, pensou errado. Taí uma coisa que sua teimosia não vai conseguir. Como Getúlio – sem a política e o desatino do Getúlio -, você saiu da vida pra entrar para a história. E foi além. Impregnou em todos com quem conviveu um cheiro peculiar:

O cheiro da saudade!