COM O DESTINO NAS MÃOS
por Alberto Lazzaroni
Rio de Janeiro, anos 50. A então capital da República era uma cidade bem diferente da que conhecemos hoje. Eram os anos subsequentes ao fim da Segunda Guerra Mundial e vivia-se a esperança de novos tempos. Tempos de paz e prosperidade.
Desde a sua fundação, a cidade sempre teve como característica marcante o fato de ser aberta ao mundo, de receber pessoas das mais variadas origens. E foi ali, no então aprazível bairro do Rio Comprido, que se estabeleceu um filho de imigrantes sírios. Seu nome? João Elias. Ou simplesmente Elias. Ou ainda Cachimbo, por conta do amigo inseparável.
Elias era uma figura ímpar. Sujeito alto, forte e decidido, não gostava de ficar esperando as coisas acontecerem. Ele ia literalmente à luta para realizar os seus objetivos. Era chofer de táxi. Ou melhor, era “O” chofer tamanha a seriedade com que encarava o seu ofício, o que inspirava todos à sua volta. Aqui vale lembrar um detalhe inusitado: à época os taxistas tinham que usar um uniforme, que era camisa branca e calça e gravata pretas. A camisa dele vivia furada por conta das brasas do cachimbo.
Apaixonado por futebol e com tamanha liderança, não tardou a buscar novos voos. O América FC, tradicional clube tijucano, abriu suas portas para ele e, com a mesma maestria com a qual guiava seu táxi, conduziu o time de veteranos a grandes conquistas. Mas Elias queria mais. Não deixava de pensar na família. Criou então um time de futebol de salão (hoje futsal) do qual faziam parte os três filhos. Os dois mais velhos eram realmente bons de bola mas o caçula não jogava nada. O que fazer? Deixar de fora? Nem pensar. Não titubeou: vai virar goleiro.
E aí o destino se encarregou do restante. Os dois mais velhos não deram sequência na carreira de jogador de futebol. Já o caçula é ninguém menos que o grande Nielsen Elias. As mãos que seguravam o volante inspiraram as mãos que seguravam a bola. Dois homens fortes. Dois homens de bem.
O destino estava literalmente em suas mãos.
Bate-pronto: essa coluna é uma declaração de amor de um filho para o seu pai. Serve para nos mostrar o quanto podemos ser inspiradores fazendo o simples, o básico, qual seja fazer sempre com amor. Obrigado Nielsen Elias por me dar essa oportunidade.
FUTEBOL EM FAVOR DE QUEM?
por Marcelo Mendez
O dia amanhece em Santo André.
O sol de inverno que é quase quente, ilumina uma manhã em que as coisas da periferia apontam para um dia que seria quase normal se não fosse por uma razão secular que marcará a história de nossa geração; Temos uma pandemia alimentada pelo coronavírus batendo a nossa porta.
Está, portanto, proibido todo afeto que se possa ter. Você que está me lendo não pode mais abraçar seu amigo, quando o ver, não deve apertar sua mão, seu sorriso não poderá ilustrar a manhã de sol, porque agora é necessário usar uma máscara e tudo que se tinha como comum está em suspensão. Todavia, como já é sabido pelas Gentes do Brasil, teremos futebol no Rio de Janeiro.
Sim, caro leitor. Não terá Olimpíada, Eurocopa, Copa América, Champions League, NBA, mas o mundo em pandemia precisa mesmo de um Flamengo x Bangu para chamar de seu!
O futebol ser usado como propaganda de Governos populistas para encobrir fatos, para divulgação de práticas eleitoreiras não é uma novidade. A história está recheada de momentos em que as máquinas públicas voltaram seus esforços para tal fim. Muitas são as maneiras para se maquiar e se fazer isso. A diferença cabal é que agora não se maquia nada, tudo é as claras, na larga, sem pudor ou discernimento algum.
A diretoria do Flamengo, em acordo com a Federação Carioca de futebol, mais os protocolos (Termo cada vez mais insuportável e hipócrita de se ler) chegaram a conclusão de que sim, em detrimento aos milhares de mortos diários no Brasil, o mundo precisa ter um Flamengo x Bangu no Maracanã vazio em suas arquibancadas, tendo como vizinho, um hospital de campanha em que pessoas lutam pela vida, contra o Covid. A história se repete em forma de perguntas:
Qual é a razão para ter esse jogo agora? Com que animação serão comemorados os gols? Com quem? Para quem? Os artilheiros baterão cotovelos e calcanhares para respeitar as normas da OMS do distanciamento social? E vai mudar o que na nossa realidade, ou mesmo no futebol?
Caro leitor do Museu da Pelada, essas perguntas que faço foram respondidas em malabarismos intelectuais vergonhosos nos últimos dias. O Absurdo para justificar o inargumentável. Uma lástima. Se você que me lê aqui tentar responder dessa forma, vou respeitar o que pensas mas vou lamentar muito. Porque algumas coisas não tem respostas práticas ou instantâneas como esses pacotinhos de macarrão ruim. O tempo e a calma são necessários para formação de um discernimento e de um bom senso para que se entenda o que o momento histórico pede de nós
Decerto que não é de gols que estamos precisando.
O FALSO ALEGRE
por Marcos Eduardo Neves
No tempo em que existia ponta-direita e ponta-esquerda no futebol, surgiu uma peça ofensiva que vestia a camisa 7 ou 11 mas não se restringia à limitada faixa lateral do campo. Era o falso ponta. Em sua fase áurea, por exemplo, o Flamengo teve dois atacantes assim: Tita e Lico. Nesta semana, perdemos não um falso ponta, mas um falso alegre. O sorridente malandro Mário José dos Reis Emiliano. O trágico Marinho, do Bangu.
Moleque travesso, luz que escureceu da noite para o dia. Aliás, do dia, vários dias, para a noite. Treva eterna de uma existência triste, solitária e infeliz.
O destino foi cruel com ele. Disfarçadamente. Primeiro o enganou, fez dele uma revelação do futebol. Aos 12 anos, precisou arrancar forças do Além para superar o drama de ver sua irmã morrer na sua frente, atropelada, quando o levava a um treino. A bola o salvou.
Marinho despontou com a camisa da seleção de novos e disputou a Olimpíada de 1976. Estreou jovem no fortíssimo time principal do Atlético Mineiro. O céu parecia o limite. Mas justamente quando poderia ter disputado sua primeira final de Brasileiro, ao lado de astros como Cerezo, Reinaldo e Éder, não prestava mais seus serviços em Beagá. Escondia-se em São José do Rio Preto, defendendo as cores do América paulista. Primeira grande ironia.
Não se abateu. Talentoso, provou seu valor e por alta cifra se transferiu para o forte Bangu, clube patrocinado por um contraventor cheio de bufunfa. O bicheiro Castor de Andrade montou um time para ganhar tudo. Em 1985, Marinho se tornou estrela nacional. Melhor jogador do Campeonato Brasileiro, fazia parte da seleção. Nos braços de amigos e na boca das mulheres, surfava a crista da onda.
Seu Bangu chegou às finais de tudo que disputou naquele ano. No Carioca perdeu a decisão para o Fluminense de maneira contestável. O árbitro fez vista grossa para um pênalti claro a favor do clube suburbano, nos instantes derradeiros. Já no Brasileiro, cenário final apoteótico. Maracanã lotado com as torcidas cariocas em peso no estádio; o Rio a favor do alvirrubro de Moça Bonita. Nos pênaltis, Bangu vice. Diante do mediano Coritiba e em casa, o apogeu de um belo time sem títulos, em suma, uma excelente equipe condenada ao ostracismo.
Marinho, contudo, era maior do que uma simples faixa no peito. 1986 era ano de Copa do Mundo. Na convocação final para o Mundial do México, porém, Telê Santana contrariou o ‘Zé da Galera’, personagem de Jô Soares no humorístico ‘Viva o Gordo’, e extirpou em um corte só dois ponteiros: ele e Renato Gaúcho. Nova decepção. Que sempre com um sorriso no rosto, sua marca registrada, Marinho haveria de contornar no ano de 1988.
Contratado pelo Botafogo, clube que dependia financeiramente de outro dono de banca do jogo do bicho, Emil Pinheiro, tudo indicava que Marinho, aos 30 anos de idade, daria finalmente o pulo do gato.
Não deu. E por não saltar não salvou seu filho, que com um ano e sete meses caiu na piscina da mansão enquanto o pai concedia uma entrevista à imprensa. O anjinho partiu afogado. Matando Marinho de vez.
Do mundo de tapinhas nas costas e farras, o jogador mergulhou profundamente no umbral das bebidas. Foi dizimado aos poucos pelo alcoolismo. Em contrapartida, seu patrimônio e sua vida pessoal dele se desfaziam de maneira tão veloz quanto partia Marinho para cima dos beques, serelepe, com a bola nos pés.
Perdeu a esposa, morou no próprio carro e até nas dependências do Bangu. Vagava pelas ruas do bairro que lhe deu fama e anonimato. Nos últimos anos contraiu tuberculose. Resgatado por um filho, voltou a Belo Horizonte. Na cidade que viu seu início mostrou-lhe o capítulo final.
Aos 63 anos, numa sala de UTI de um hospital público, o falso alegre perdeu o jeito para driblar tantas adversidades. Encarava um marcador inclemente: um câncer metastático de pâncreas. Passou por três cirurgias, mas pela última vez perdeu o jogo decisivo. Deixando lacrimejado nos fãs um sorriso amargo. Amargo de amargura.
“DINAMÁQUINA”: A SELEÇÃO QUE FEZ HISTÓRIA NA COPA DE 86
por André Luiz Pereira Nunes
Ao longo dos anos, muitas seleções e times se notabilizaram internacionalmente, ainda que não tenham ganhado campeonatos. No entanto, o esporte não sobrevive apenas de vitórias, mas de histórias. E nessa relação, o Carrossel Holandês se consagrou pelo estilo de jogo envolvente e apaixonante. Um outro esquadrão que encantou os gramados do mundo foi o da Dinamarca, na Copa de 1986, no México, o qual ganharia a alcunha de “Dinamáquina”.
Todavia, para avaliarmos esse talentoso conjunto, então estreante na competição, precisamos recuar à Eurocopa de 1984, disputada na França. Naquele certame os nórdicos, não só se classificaram, como ainda chegaram às semifinais, quando foram eliminados pela Espanha, a vice-campeã do torneio. A equipe contava com jogadores técnicos e com habilidade de sobra como Laudrup, Arnesen, Jesper Olsen, o goleador Elkjaer Larsen e o experiente Morten Olsen, o capitão do time.
Dispondo de uma ótima base em mãos, o técnico Sepp Piontek preparou o elenco para as Eliminatórias da Copa do Mundo. Integrando o Grupo “6” com União Soviética, Suíça, Irlanda e Noruega, os dinamarqueses facilmente conquistaram a primeira colocação e a classificação antecipada para o Mundial, enquanto os soviéticos, segundo colocados, ficaram com a segunda vaga.
Considerado um dos maiores revolucionários do futebol, Piontek consagraria o esquema 3-5-2, retirando um defensor para rechear o meio de campo de atletas talentosíssimos, os quais serviam de engrenagem à máquina. Vale ressaltar a presença do líbero e capitão, Morten Olsen, o qual anos depois se tornaria o treinador. A meia cancha ainda dispunha dos talentos de Soren Lerby, Frank Arnesen e Jesper Olsen, companheiros do forte Ajax. Na armação, uma promessa: o jovem Michael Laudrup, o qual mesmo às vésperas de completar 22 anos, já se destacava no futebol italiano pela Juventus. O grande astro, contudo, era Preben Elkjaer, fantástico atacante do Verona, campeão italiano em 1985, que ficara no pódio do prêmio Bola de Ouro nos dois anos anteriores.
Na Copa do Mundo, os nórdicos ficaram no Grupo “E”, ao lado de duas bicampeãs da competição: a Alemanha Ocidental, em 1954/1974, e o Uruguai, em 1930/1950. O quarto membro do grupo e, não menos importante, era a Escócia, país que desde de 1974 vinha participando de todos os Mundiais. Diante do equilíbrio, tudo levava a crer que os alemães ficariam na dianteira da chave, enquanto os adversários lutariam encarniçadamente pela segunda vaga.
A estreia ocorreu justamente contra os escoceses, na época comandados pela futura estrela do Manchester United, Sir Alex Fergunson. O jogo foi bastante parelho, mas o camisa 10, Elkjær Larsen decretou a primeira vitória. Parecia o início de um sonho possível.
O segundo adversário seria o Uruguai. O desafio se mostrava mais difícil para os atletas do pequeno país europeu, pois a Celeste Olímpica se sagrara campeã da Copa América, em 1983, e chegava ao Mundial em ótima fase. Porém, mesmo sob a batuta de Enzo Francescoli, os sul americanos foram os segundos a caírem diante dos dinamarqueses, os quais contaram com uma atuação impecável de Michael Laudrup e principalmente de Elkjaer, autor de três gols na goleada por 6 a 1. A partir daí todos os holofotes se voltaram para a seleção de Sepp Piontek.
Pela última rodada da primeira fase, a Dinamarca defrontaria a Alemanha Ocidental, justamente temida por acabar com a farra das seleções que apresentavam um futebol revolucionário. Os nórdicos, no entanto, não se intimidaram, não dando a menor chance para a bicampeã mundial. Com um futebol rápido e envolvente, os germânicos foram fragorosamente derrotados por 2 a 0.
O surpreendente desempenho rendeu à talentosa equipe o apelido de “Dinamáquina”. Contudo, da mesma forma em que foram alçados ao posto de candidatos ao título, os dinamarqueses acabaram causando uma grande decepção nas oitavas de final diante da Espanha. Os nórdicos chegaram até a abrir o placar com Jesper Olsen, ainda no primeiro tempo. No entanto, um inimaginável apagão mudou o rumo do confronto e a Dinamarca acabaria derrotada por 5 a 1 em uma atuação impecável de Emílio Butrageño, autor de 4 gols.
Apesar da precoce eliminação, pontuada por uma inesperada goleada, a reputação dos dinamarqueses permaneceu inatacada. Elkjaer terminaria eleito o terceiro melhor jogador do Mundial e a base estaria montada para futuras conquistas e elas não tardariam a vir. A Dinamarca voltaria a surpreender na Eurocopa de 1992.
O FANTASMA DO CRUZEIRO VELHO
por Claudio Lovato
Faustino Bezerra tinha oito anos quando o conheceu: um mulato alto e magro chamado Irineu Alves. Faustino ouviu esse nome ser pronunciado pela primeira vez quando o recém-chegado do Rio de Janeiro foi ao encontro de seu pai, gerente administrativo da obra, e se apresentou:
– Irineu Alves, topógrafo.
Irineu começou a trabalhar no dia seguinte, e não se passou muito tempo até que começasse a impressionar a todos como goleiro nos jogos do canteiro de obras. Alguns trabalhadores vindos do Rio tinham a impressão de que já o haviam visto.
Depois das partidas, os trabalhadores se reuniam para beber. Até que todos iam embora e apenas Moisés e Irineu permaneciam. Haviam se tornado amigos. Essas conversas, relatadas ao longo de anos por seu pai, permitiram a Faustino escrever a maior parte do que está registrado à caneta em ensebados cadernos escolares de espiral.
Irineu realizou seu primeiro grande feito futebolístico aos 17 anos, num jogo em São Januário contra o poderoso Vasco da Gama. Naquela partida, ele defendeu dois pênaltis e foi elogiado por Sabará e Pinga ao longo de dias. Vavá, outro integrante do Expresso da Vitória, disse que aquele garoto logo se tornaria o melhor goleiro do país, opinião compartilhada publicamente por Nilton Santos, do Botafogo, e Moacir, do Flamengo.
Nascido em Bonsucesso, Irineu chegou aos 15 anos ao clube que leva o nome do bairro e logo cedo começou a se sobressair. Dividia-se entre o clube, a escola e a ajuda ao pai no pequeno armazém que ficava no andar de baixo da casa onde moravam.
Conheceu Mariana quando tinha 17, e ela, 16, recém-chegada de Madureira, de mudança com a família. Nessa época, Irineu já tomava conta do armazém praticamente sozinho, porque o pai sofria o açoite constante da artrose na coluna, e, em razão disso – e também por conta da amizade de um dirigente do Bonsucesso com um tenente-coronel torcedor do clube –, conseguiu escapar do Exército.
O jovem goleiro assumiu a titularidade do time principal quando ainda não havia completado 18 anos, e pouco tempo se passou até o dia do jogo contra o Vasco em São Januário e os subsequentes elogios de Sabará, Pinga, Vavá, Nilton Santos e Moacir.
Irineu e Mariana se casaram com a autorização e as sinceras bênçãos do pai dela. Irineu conseguia tempo para o curso técnico de topografia, uma escolha feita em razão do que alguns conhecidos haviam lhe dito, de que o Brasil estava para se tornar um grande canteiro de obras.
Vasco, Flamengo e América tentaram contratá-lo, mas, por vontade própria, ele permaneceu no Bonsucesso. Moacir, o reserva de Didi na Copa de 58, na Suécia, chegou a procurá-lo no armazém da família para tentar convencê-lo a aceitar a proposta do Flamengo, mas não teve sucesso na empreitada.
Irineu e Mariana se casaram. Da união nasceu uma menina que eles decidiram que se chamaria Paulina, nome da mãe de Irineu, falecida quando ele tinha sete anos.
Goleiro promissor, mencionado em crônica de Nelson Rodrigues, dono do próprio negócio, topógrafo formado, marido e pai amado, benquisto na comunidade, Irineu não poderia imaginar para si uma vida melhor, mas as tragédias ao que parece chegam exatamente nessas horas e foi então que uma vela acessa em uma casa próxima causou um incêndio que destruiu uma dezena de residências e a vida de duas famílias, entre as quais a de Irineu. Mariana e Paulina foram levadas pelo fogo.
A vida para ele não seria mais possível em Bonsucesso nem no Rio. Quanto mais longe melhor, mesmo que tivesse que esquecer a carreira de jogador, e assim Irineu foi para Brasília, tentar reconstruir a vida em meio à construção do novo Distrito Federal.
O trabalho o ajudava a enfrentar o terror do passado e a impossibilidade de vislumbrar um futuro, mas a vida é maior que tudo, sempre empurrando a tudo e a todos para frente, e Irineu conheceu uma jovem de cabelos negros muito lisos de nome Luzia, filha de um comerciante nascido na Bahia e de uma professora goiana. Foi com Luzia que Irineu voltou a sorrir. Foi com Irineu que Luzia viveu o amor pela primeira vez. Planejavam se casar e ter uma casa ali mesmo no Cruzeiro Velho.
Esses planos bem que poderiam ter se concretizado não fosse um jovem engenheiro de São Paulo, decidido a fazer de Luzia sua esposa. Um dos encontros clandestinos de Irineu e Luzia foi testemunhado por um encarregado de obras, subordinado do engenheiro. O pai da Faustino deu seu conselho:
– Esqueça essa menina, Irineu.
A resposta era o silêncio e um sorriso indolente.
Um dia, Irineu sumiu de repente. Seus pertences desapareceram por completo. Foi como se ele tivesse evaporado ou como se nunca tivesse existido.
O engenheiro paulista e Luzia, depois de obsessiva insistência dele, se casaram e foram morar em São Paulo – ela com a sensação de que perdera a chance de ser complemente feliz; ele com uma culpa da qual jamais conseguiria se livrar, resultado de um ato de violência e covardia que o impediria de conseguir olhar nos olhos de seus três filhos.
Pouco tempo se passou até que os moradores do Cruzeiro Velho passassem a relatar o quicar de uma bola e certos gritos, de madrugada, entre as quadras e blocos. Quando saíam para verificar, não viam ninguém. Os gritos diziam sempre a mesma coisa:
– Sai, zagueiro, sai!
e
– Essa foi pra você, Luzia!
Não tardou muito para que um veterano decretasse:
– É o fantasma do Irineu!
Faustino, cujo pai se foi deste mundo quase cinco décadas depois do sumiço de Irineu, continua escrevendo em seus cadernos – acrescentando detalhes, ampliando o contexto, passando a limpo.
Faustino já decidiu que frase usará como epígrafe de seu livro, que ele ainda não desistiu de ver publicado. É uma frase de sua própria autoria, lapidada ao longo dos anos:
– Todo mundo vira fantasma um dia. A diferença é que alguns fazem isso depois de morrer e outros, antes.