CANAL 100: CEMITÉRIO DA MEMÓRIA?
por Paulo Marcelo Sampaio
Quem tem a minha idade ou é um pouco mais velho sabe da emoção que a música “Na cadência do samba”, a popular “Que bonito é…”, consagrada pelas lentes do Canal 100, despertava. Imagens por ângulos jamais captados, closes de jogadores em pé de guerra, craques sendo caçados por chuteiras viris, deuses aplicando seus concertos em câmera lenta; nada disso era perdido pelos cinegrafistas do canal. E assim, gols que eram o delírio de torcedores – tão genialmente retratados também – eram a desgraça de outros, se transformavam com o tempo em patrimônio cultural de um povo.
Pode ter sido em 1993. Quem sintonizava a TV Manchete naquela época tinha chance de assistir um miniprograma que mostrava as pérolas do Canal 100. Como uns times triunfavam sobre outros, criou-se ali, na correria da redação, no meio do ‘fechamento’ do jornal, um clima de concentração de estátua de Bellini.
Num desses dias, perguntei ao apresentador do miniprograma, herdeiro das imagens do Canal 100, quando passaria os 6 a 0 do Botafogo sobre o Flamengo, em 1972. Até porque tinham exibido a revanche, conquistada pelos rubro-negros nove anos depois. O rapaz flamenguista, sorridente e simpático, desconversava. Até que disse que as imagens estavam guardadas às sete chaves. mas que nunca mais seriam exibidas. Eu até entendi. Dor de torcedor só quem sente sabe o quanto dói.
Soube hoje da revelação dada ao Museu da Pelada. As ditas imagens daqueles 6 a 0 – o baile de Jairzinho e companhia – foram apagadas logo depois da goleada. Para sempre. Eram imagens únicas, exclusivas. Fiquei chocado, não por eu ser botafoguense, mas pelo descaso com a memória. Um gesto tão sem piedade, com a maior desfaçatez, narrado com deboche deselegante, sem o mínimo de arrependimento. Esse crime prova que os documentaristas não eram documentaristas. Eram torcedores travestidos de documentaristas.
Nada mais sintomático que a entrevista do rapaz fosse dada ao Museu da Pelada. Afinal, entrevistador e entrevistado com facetas tão antagônicas. Se o rapaz tivesse trabalhado no Museu da Pelada, nada disso tinha acontecido. Esse gesto – desculpem-me – nada tem de nobre. Nobreza é para poucos.
Paulo Marcelo Sampaio é jornalista. Autor de “Os 10 Dez do Botafogo” e de “21 depois de 21”, em parceria com Rafael Casé
O DIA EM QUE PELÉ MANDOU UM JUIZ PARA O CHUVEIRO
por André Felipe de Lima
Não. Definitivamente, não. Nunca um jogador foi capaz de expulsar um juiz de um campo de futebol. A situação seria, no mínimo, completa e totalmente inverossímil. Surreal. Inimaginável. Lembro que em um jogo do Botafogo, em novembro de 2008, contra não sei quem o zagueiro André Luiz, um camarada alto, forte e sempre com cara de poucos amigos, tomou o cartão vermelho da mão do pobre do árbitro e o ergueu. “Fora!”, deve o beque ter gritado de supetão. Mas ficou nisso. André Luiz não tinha nome nem cacife para expulsar um juiz e acabou ele mesmo indo para o chuveiro após baixar a bola. Mas será que houve um dia em que algum maluco como André Luiz tentou (e conseguiu) botar para fora um árbitro? Sim, e somente um camarada com suas devidas idiossincrasias e capaz de mandar mais que a própria bola de futebol no contexto de uma peleja, seria capaz de chegar a esse extremo, e isso aconteceu no dia 17 de julho de 1968, dois anos antes do “tri” no México. O juiz em questão chamava-se Guillermo “el chato” Velásquez, que já não está mais aqui para contar a história; quanto ao seu “algoz” tem nome, sobrenome e um apelido, o mais famoso do mundo, por sinal: Pelé.
A história, uma das mais inusitadas na história do futebol, aconteceu durante um jogo do Santos contra a seleção olímpica da Colômbia. Um simples e (em tese) inofensivo amistoso, cujas cotas eram gordas para o clube paulista pelo simples fato de Pelé estar no gramado. Mas o rei teria aplicado um “chega-pra-lá” em uma dividida mais ríspida com o zagueiro Luís Eduardo Soto. Houve confusão entre os jogadores do Santos e os colombianos. Dirigindo-se ao juiz, Pelé teria proferido um sonoro “Vá se f., seu filho de uma p.”. Velásquez ouviu e viu muito bem o que gritara Pelé. A expulsão (na época ainda não havia cartão amarelo ou vermelho) era o remédio para a situação. Todo mundo se empurrando e ao juiz (coitado), que emenda: “Pelé, ‘con permiso’ fora!”. O Edson sempre negou ter participado da confusão ou mesmo xingado Velásquez, mas o Pelé nunca negou isso, e saiu de campo. Pelé caminhando e a torcida gritando: “¡Vuelve, Pelé, vuelve!”. Os santistas em cima do pobre do árbitro. Empurra dali, empurra daqui; torcedores ensandecidos, que só foram ao estádio por causa do Pelé. A tragédia era iminente. Alguém tinha de fazer algo imediatamente ou nem mesmo Pelé sairia vivo daquele estádio onde o caos se instaurara. Um cara soprou no ouvido do bandeirinha Omar Delgado, e deve ter dito mais ou menos assim: “Ve allí y saca al árbitro loco del césped”. Delgado acatou a ordem e mandou o recado para Velásquez, que, obviamente pasmo, ouviu a decisão contra ele. Velásquez estava expulso. Pelé, que sequer saiu de campo, permaneceu. No fim das contas, o jogo continuou, e deu Santos. Quatro a dois, com um gol dele, Pelé. Velásquez e Pelé estiveram dois anos depois, no México. Mas não se esbarraram. Nunca mais um cruzaria o caminho do outro. Para Pelé, a glória. Para o pobre do “El chato” Velásquez, bem… sobraram um olho roxo e o chuveiro do vestiário.
CONFIRA O VIDEO DAQUELE JOGO QUE ENTROU PARA A HISTÓRIA DO FUTEBOL
ESPECIAL 70 ANOS DA COPA DE 1950: GHIGGIA INOCENTA BARBOSA
por Marco Antonio Rocha
Alcides Ghiggia vivia em Las Piedras, subúrbio distante da correria de Montevidéu, há 20 anos, quando batemos um papo sobre a histórica final da Copa de 1950. Nas paredes do sobrado simples de pedra, placas alusivas à conquista e apenas uma foto desbotada de quando o algoz do Brasil defendia o Peñarol. Daquele Mundial, nada de fotos ou recortes de jornais. Apenas memórias, guardadas dentro de uma cabeça que ostentava um topete cuidadosamente penteado, além de um bigodinho no melhor estilo milonguero.
– Não tenho mais as fotos, estão com meus filhos. Para que ficar lembrando algo que já passou? – perguntou Ghiggia, usando uma calça preta com frisos amarelos, tipos anos 80:
– Sou Peñarol até hoje!
As fotos podem até estar esquecidas num canto de armário, mas as lembranças da final entre Uruguai e Brasil estão vivas para vencedores e vencidos. Segundo o ex-jogador, aquele foi o dia mais importante de sua carreira.
– Todo jogador sonha defender a seleção e disputar uma Copa do Mundo. E nós tivemos a sorte de sermos campeões! – admitiu, relegando o gol que decidiu o título!
– Parece que aquilo foi o fator principal da partida, mas a conquista foi dos 11. Fui tocado pela sorte e acabei fazendo o gol.
Da arrancada que deu em direção à linha de fundo ao arremate certeiro, Ghiggia demorou pouco tempo, alguns segundos fatais para o futebol brasileiro.
– A jogada foi um pouco parecida com a do primeiro gol uruguaio. No empate, passei por Bigode, que tentou matar o lance com um carrinho, e depois cruzei para Schiaffino marcar. Na virada, aproveitei o espaço entre a trave e Barbosa, que esperava pelo cruzamento, para desempatar! – explicou, inocentando o goleiro:
– Ele fez o lógico. Quem fez o ilógico fui eu!
E só mesmo a ilógica e muita coragem para pôr fim à festa que tomara conta do Brasil do início da Copa ao gol de Ghiggia, a 11 minutos do fim. O carrasco uruguaio garantia que não havia se impressionado quando deixou o vestiário para trás e viu o Maracanã repleto de torcedores que já planejavam como seria a comemoração.
– A multidão nunca me impressionou, nunca dei importância à torcida. O que me preocupava era jogar e ganhar, porque nunca gostei de perder! – disse, fortalecido pela quebra do favoritismo brasileiro:
– Quando o primeiro tempo acabou 0 a 0, já consideramos um triunfo porque o Brasil vinha vencendo todo mundo de goleada. Depois do gol do Friaça, decidimos ir atrás da vitória. Com a virada, as camisas que fizeram com a inscrição “Brasil campeão do mundo” acabaram encalhando…
Ghiggia parecia ter a nítida noção do prejuízo que causara aos brasileiros. Um prejuízo muito maior do que o valor de simples mercadorias que ninguém mais queria. Tanto que ele, até os últimos anos de vida, ainda cobrava para dar entrevistas.
– Eu cobro mesmo. Certa vez, uma emissora de TV peruana esteve aqui em minha casa e recebi sete mil dólares. A imprensa uruguaia parece não saber o que represento! – disparou o eterno camisa 7 celeste, que conversou conosco sem cobrar um centavo sequer.
A certeza que Ghiggia tinha do que representa para a história do futebol uruguaio se fazia presente quando assumia, de fato, o papel de carrasco. Como num ritual macabro, numa tentativa de não deixar que seu feito fosse esquecido, fazia questão de repetir a frase que jamais saiu da cabeça dos brasileiros:
– Só três pessoas calaram o Maracanã: o Papa, Frank Sinatra e eu! – afirmava, incorporando a seu gol toda a dramaticidade do fato:
– Foi o gol mais importante já marcado no Brasil. E talvez o mais triste também. A Copa do Mundo foi feita pelos brasileiros, que levantaram um estádio para o Uruguai ser campeão mundial!
SCHIAFFINO QUASE FOI PARAR EM BANGU
por André Felipe de Lima
“Se perdemos somente de três, ficaremos satisfeitos”, disse o icônico capitão da Celeste Olímpica Obdulio Varela dirigindo-se ao genioso camisa dez uruguaio Juan Schiaffino. Os dois sempre se estranharam dentro de campo, tanto nos jogos do Peñarol quanto nos da seleção do Uruguai. Dizem que Obdulio, sem paciência com os chiliques do Schiaffino, teria emendado a seguinte frase, machista, sem dúvida: “Toma una mujer!”, cuja tradução literal resume-se em “Vá para as mulheres!”. Sim, “El capitán”, todos sabem, era duro na queda e a delicadeza não era, definitivamente, seu forte. Com seus gritos de fazer tremer a muralha da China, ele calou um país inteiro ao berrar incessantemente no gramado do Maracanã naquele dia 16 de julho de 1950, o mais triste da história do nosso futebol. Defino-o como o “mais triste” porque tínhamos um dos melhores escretes nacionais em todos os tempos ao contrário daquele que entubou um imperdoável 7 a 1, em 2014. Ali, como bem define meu amigo Mário Moreira, não foi “tragédia”, foi “vergonha”. No Maracanã de 1950, houve, sim, uma tragédia. Obdulio e Schiaffino pareciam em armistício. Falavam a mesma e precisa língua charrua enquanto nós empinávamos o nariz e, soberbos, afogávamos em nossa turva água do destino.
Quando recordamos aquela final da Copa do Mundo de 50, logo nos vem à mente as imagens (repito incansavelmente) icônicas do Obdulio recebendo a taça Jules Rimet das mãos do próprio e incrédulo Rimet e o gol do Ghiggia, o segundo e derradeiro do jogo. Barbosa, Bigode e Juvenal (coitados) entraram para a história como “vilões”. Uma rotunda injustiça. Obdulio e Ghiggia tornaram-se imortais perante o povo uruguaio e na história do futebol. Mas Schiaffino foi maior que seus dois colegas de time. Ouso afirmar isso porque, além do gol que fez no “maracanazo”, o primeiro dos uruguaios, “El Pepe”, como era carinhosamente chamado, foi o termômetro da Celeste em toda a competição. O cérebro. O maestro. O mágico. O estilo de Schiaffino era inconfundível. Elegante com a pelota, Pepe fazia dela sua amante bem amada. Jamais a maltratou. Isso, nunca. Ouso também afirmar que se Schiaffino não estivesse naquela Copa, o Brasil não a perderia. Foi ele o nosso maior algoz. Se Obdulio pôde gritar naquela tarde e Ghiggia partir como um azougue rumo à meta do Barbosa, isso só foi possível porque eles tinham Juan Alberto Schiaffino, o “Juan del Maracaná”.
Ah, ia esquecendo e quase encerro a crônica sem contar que, dois meses após o “maracanazo”, o notório Silveirinha, cartola histórico do Rio, por muito pouco não levou Schiaffino, que operara o menisco após a final da Copa, para jogar com Zizinho no Bangu. O Peñarol botou preço. Queria 200 mil pesos-ouro equivalentes a um milhão, quinhentos e seis cruzeiros da época. Mas não deu para o Silveirinha e Schiaffino voou para outros ares. Na Itália, tornou-se ídolo do Milan e “italiano” de carteirinha, fato que os uruguaios, que passaram a chamá-lo de “Deus do futebol” após o “maracanazzo”, nunca engoliram. O fato é que Schiaffino nasceu para acabar com o nosso sonho, ou, pelo menos, retardá-lo. No final das contas, a dor transformou-se em alegria e a Jules Rimet foi parar na rua da Alfândega, onde deveria repousar para sempre em nosso solo, mas foi, ali mesmo, surrupiada, eis a dialética da nossa tragédia. Aquela taça, repetem até hoje os uruguaios, jamais deveria ser nossa, e o “Juan del Maracaná”, que faria 95 anos no próximo dia 28 de julho, como se tramasse um complô com o destino, parecia ser o único a ter essa certeza.
UMA RELÍQUIA QUE MANTÉM VIVO O VERDADEIRO MARACANÃ
por André Felipe de Lima
Há uma bola de futebol em minha vida. Não aquelas convencionais, de couro ou mesmo as de meia, com as quais dei meus primeiros chutes no chão de terra e cimento da vila onde nasci e cresci. É uma bola de mármore. Um mármore muito especial no qual milhões um dia pisaram, pularam, vibraram, cantaram ou mesmo choraram. Aliás, o choro primevo está cravado nela, que tornou-se uma relíquia sem preço. Minha amada bola está marcada com lágrimas que, na dolorida tradução poética, assemelham-se às lanças com as quais imperadores romanos ceifaram cristãos em priscas eras. Só mesmo a fé celestial de gente como aquela para seguirmos adiante após o fatídico 16 de julho de 1950. Vejam, amigos, são 70 anos que esta bola permanece encharcada com lágrimas de milhões. Mas ela, teimosa, seguiu firme para presenciar reviravoltas de placares inimagináveis, no campo e na vida. Esta bola viu seleções extraordinárias conduzirem o Brasil ao pentacampeonato mundial. Viu, inicialmente, Zizinho e Ademir de Menezes. Viu também Barbosa e sua imagem mais marcante após o gol de Ghiggia naquela data medonha. Viu depois Didi, Nilton Santos, Dida, Evaristo, Garrincha, Dequinha, Bellini, Vavá, Almir, Quarentinha, Waldo, Telê… viu Pelé, a nossa majestade universal. Viu Gerson, Paulo Cezar Caju, Tostão, Rivellino e o nosso tricampeonato sendo construído nas gramas de seu septuagenário estádio. Viu Zico, Roberto Dinamite. Viu Romário. A minha bola de mármore viu isso tudo, mas não verá mais. Ela está aqui comigo, longe do chão onde um dia brilhava porque havia gente zelosa e especial a lustrá-la diariamente. Gente que, embora com nome, CPF e identidade, sempre passava despercebida aos olhos de torcedores e jornalistas. Hoje, setenta anos após aquele gol uruguaio que nos fez chorar sangue, a minha bola tem um novo e dedicado lustrador. Este cronista, no seu recanto, no Rio de Janeiro, no dia 16 de julho de 2020, sentindo muita saudade daquele estádio que já não existe mais. Daquele do qual restou somente a minha linda e brilhante bola de mármore.