APELIDO DE ANÃO, FUTEBOL DE GIGANTE
por Luis Filipe Chateaubriand
Carlos Caetano Bledorn Verri, o Dunga, bem ao contrário do que muitos dizem, não era um jogador de futebol limitado, um pereba, uma baranga. Embora não fosse nenhuma virtuose técnica, o cara sabia jogar bola.
Sucede que, tendo alguma capacidade para jogar, preferia priorizar a raça, a garra, a luta, enfim, a vontade de vencer. Assim, fazia como muitos de nós que, aos querermos vencer na vida, nos valemos de um pouquinho de talento, mas, principalmente, de sangue, suor e lágrimas, para chegar onde queremos.
Começou no Internacional de Porto Alegre, em seguida teve passagens por Corinthians e Santos. Mas, no futebol brasileiro, foi a curta passagem pelo Vasco da Gama que determinou seu êxito.
Seguiram-se as idas a clubes italianos, alemães e japoneses.
Na Seleção Brasileira, foram mais de dez anos de presença. Nem sempre foi uma unanimidade, como na Copa do Mundo de 1990, onde alcunharam de “A Era Dunga” o fracasso verde e amarelo – uma grande injustiça. Mas o que prevaleceu, na maior parte do tempo, foi a presença de um líder, um comandante, que levou sua equipe a grandes conquistas.
Algumas vezes, Dunga se excedeu na vontade de vencer, como em uma desnecessária cabeçada que deu em Bebeto em jogo da Copa do Mundo de 1998. E, decerto, o técnico Dunga está bem aquém do que foi o jogador.
Mas, irrefutavelmente, no futebol e na vida, querer vencer é imprescindível, e Dunga nos ensinou o caminho.
Luis Filipe Chateaubriand é Museu da Pelada!
SUPER ÉZIO
por Marcello Pires
“Eeee o gol. Super! Super Ézio! Super-herói é para essas coisas”. Era assim que o lendário Januário de Oliveira, criador do apelido que o marcou para a eternidade no coração do torcedor tricolor, narrava seus gols. E após o último pelo Fluminense, dia 27 de maio de 1995, aos 36 minutos do segundo tempo, na suada vitória por 1 a 0 sobre o Bangu, pela terceira rodada do returno do octogonal decisivo do Campeonato Estadual daquele ano, se encerrava um importante capítulo da centenária história do Tricolor das Laranjeiras.
Naquele sábado, diante de 12.356 pagantes, o décimo-primeiro maior artilheiro do Fluminense balançava as redes pela última vez com as cores verde, branca e grená. Cores que o consagraram em campo e o eternizaram como um super-herói de carne e osso para uma legião de torcedores nascida nos anos 80. Geração essa que não viu a Máquina Tricolor nem tampouco o time tricampeão carioca e campeão brasileiro, comandado pelo eterno casal 20, e vivia o incômodo jejum de títulos encerrado justamente naquele ano, graças à barriga de Renato Gaúcho.
Época de vacas magras, do velho bom, bonito e barato, de pouco dinheiro, dívidas e uma coleção de ações trabalhistas na justiça. Craques que é bom, só nas fotos e pôsteres espalhados pela sala de troféu da deslumbrante sede da Rua Álvaro Chaves, número 41, cercada pelos famosos vitrais franceses e situada no bairro das Laranjeiras. Por falta do brilhantismo de outrora dentro de campo, Januário de Oliveira ouviu de um colega que para marcar gol naquele time do Fluminense só mesmo sendo um Super-Herói, e então decidiu adotar o camisa 9 tricolor, um dos únicos responsáveis por tirar o torcedor tricolor de casa e lhe dar um pouco de alegria, como um daqueles salvadores da pátria das histórias em quadrinho.
Dizer hoje, após sua precoce morte em razão de um câncer no pâncreas, que completou nove anos no último dia 9, que Ézio era meu ídolo seria, no mínimo, oportunista. Assim com seria leviano afirmar que aquele super-herói imaginário vestindo verde, branco e grená e que fez tanta gente feliz era apenas um jogador comum. Isso jamais. Quem é capaz de mexer com as emoções de uma geração inteira de torcedores sempre vai merecer um espaço reservado na galeria de notáveis.
Ézio pode não ter sido o gênio da grande área como Romário, não ter tido os números de Waldo, a força de um Doval ou a ginga do eterno Washington, mas deixava tudo em campo, jogava com o coração e sabia fazer gols. E como sabia. Principalmente contra o Flamengo. Dos seus 118 em 236 jogos com a camisa tricolor, 12 foram contra os rubro-negros. E se tem uma coisa que credencia qualquer artilheiro à condição de ídolo nas Laranjeiras é “maltratar” seu principal rival. E Ézio cansou de fazer isso, se tornando o sétimo maior artilheiro da história do clássico. De cabeça, de pênalti, de pé direito e até por cobertura em final de campeonato.
A identificação e o amor pelo Fluminense eram tão grandes que o jogador nunca criou empecilhos na hora de renovar com o clube e chegou a revelar mais de uma vez que assinava os contratos em branco e só depois discutia os valores com a diretoria. Foi assim durante as cinco temporadas que defendeu o Fluminense.
Mas não foram só aquele 27 de maio ou o inesquecível 25 de junho de 1995, quando além de levantar a mais importante de suas três taças pelo Flu, Ézio fez seu último jogo pelo clube, que o eternizaram na história tricolor. Dois anos antes, em pleno domingo de páscoa, o artilheiro foi decisivo ao marcar o gol solitário que selou a vitória sobre o Volta Redonda e deu ao Tricolor o título da Taça Guanabara daquele ano. O Campeonato Carioca, que à época “ainda valia” e muito, não veio e ficou com o Vasco, mas aquele 11 de abril se tornou inesquecível. Não só por ter sido o último título conquistado pelo Fluminense nas Laranjeiras, mas por Ézio ter sido abraçado pelos torcedores e saber que a primeira casa da seleção brasileira também seria sua casa para sempre.
O FUTEBOL PIOROU E O RACISMO TRIPLICOU
::::::: por Paulo Cézar Caju :::::::
Na década de 60, em uma excursão pelo Sul, com o time do Botafogo, me deparei com um cartaz na porta do restaurante em que íamos almoçar: É PROIBIDA A ENTRADA DE NEGROS. Claro que até hoje essa mensagem retorna à minha mente, volta a me atormentar. Se eu insistisse em entrar, gritasse com o porteiro, talvez tivesse o mesmo cruel destino de João Alberto Silveira Freitas, assassinado há alguns dias por seguranças do Carrefour, também no Sul do país. O que mudou de lá para cá? O futebol piorou e o racismo triplicou.
O americano George Floyd foi assassinado em maio desse ano e o mundo se mobilizou. Manifestações, discursos, planos de marketing, palanques e muitas camisas com a inscrição VIDAS NEGRAS IMPORTAM inundaram as ruas. Camisetas com o design bonito, cores chamativas, o velho e bom oportunismo de sempre. Aí vendem adesivos, plásticos para carros, canecas, uma farra. Os negros devem se mobilizar, se candidatarem, vencerem as eleições e criarem leis justas e eficientes. Os jogadores de futebol nada falam e vivem seu mundo de fantasia, alheios a tudo e a todos. E de depoimentos também já estou cheio!
As empresas estão pouco se lixando e agem como os times que vão jogar na casa dos adversários: seguram a pressão dos primeiros quinze minutos, depois tudo volta ao normal. Mas o que esperar do mundo do futebol se em plena pandemia os jogos acontecem naturalmente? Pior são os locutores e repórteres de campo trocando informações sobre o tema com a maior naturalidade…. ‘’O Santos entra em campo desfalcado de 10 jogadores…”. Mas o minuto de silêncio no início da partida não pode faltar, afinal é importante passar uma imagem de pesar para o telespectador.
Os sindicatos não falam nada e os jogadores nunca falaram mesmo. Quem é a liderança dos jogadores, quem representa a classe? Quem representa os negros, quem nos representa? Os supermercados têm seus representantes e são poderosíssimos. Já já a classe artística vai preparar uma live sobre o tema Carrefour, algum gênio vai compor uma música que será cantada por celebridades e dessa forma poética vamos tapando o sol com a peneira. Nos faltam líderes, referências, ideias, luz. Não é só esse vírus que nos tranca em casa, mas o medo dessa truculência, o medo de estar só em um mundo de loucos.
CAMARÕES 1990: O SONHO QUASE SE TORNA REALIDADE
por André Luiz Pereira Nunes
Espanha, 1982: Camarões fazia sua estreia em Copas do Mundo, justamente encarando um grupo composto por Itália, Polônia e Peru. Os Leões Indomáveis acabariam eliminados na primeira fase sem uma única derrota ou vitória. Três empates deixaram camaroneses e italianos com os mesmos 3 pontos. Os europeus se classificaram de acordo com os critérios de desempate. A primeira participação, portanto, não foi contundente, mas abriria caminho para o sucesso em 1990, tendo como principal artífice, Roger Milla, o veterano atacante que era um dos remanescentes da mediana campanha em terras espanholas.
A Copa de 1990 é considerada uma das mais monótonas de todos os tempos. O futebol-arte, protagonizado pelo Brasil, em 1982, tinha dado lugar ao esquema de resultados defendido na época pelos maiores treinadores e especialistas. Se iniciava nesse período a opinião reinante de que era melhor ganhar jogando mal a perder atuando bonito, uma crítica ao futebol brasileiro apresentado na Copa de 1982. Por conseguinte, os pontas foram sacrificados e os times passaram a contar com três zagueiros e um número cada vez mais crescente de volantes de contenção. O jogo aberto deu lugar ao intenso congestionamento no meio-campo. Um marasmo, portanto, passou a predominar nas seleções, que passaram a apresentar poucos gols, muita falta de criatividade e raras jogadas interessantes. Mesmo a Alemanha, campeã daquela edição e dispondo do melhor ataque, só bateria a Argentina, na decisão do torneio, pelo magro placar de 1 a 0, com um gol de pênalti assinalado pelo zagueiro Andreas Brehme.
Após disputar seu primeiro mundial em 1982, Camarões conquistou a Copa Africana de Nações, em 1984, e foi vice em 1986. A equipe era comandada, desde 1985, pelo francês Claude Le Roy, o qual conquistara a admiração da torcida por montar um elenco composto totalmente por atletas que atuavam no país, além de cessar com a prática habitual dos dirigentes e autoridades palpitarem na escalação da seleção do sudeste africano. Assim, mesmo perdendo a decisão da Copa Africana, em 1986, para o Egito, o técnico se manteve prestigiado à frente do selecionado. A base formada por Bell, Tataw, M’Bouh, Kundé, Makanaky, Massing, Mfédé e Milla despertava grandes expectativas. Entretanto, pelas Eliminatórias para a Copa de 1986, Camarões pereceu diante de Zâmbia, na segunda rodada da primeira fase.
A Copa Africana de Nações, de 1988, foi disputada no Marrocos. Além do campeão Egito, os favoritos eram Nigéria, Camarões, Argélia e os donos da casa. Os Leões Indomáveis pegaram uma pedreira de cara. Caíram no Grupo B ao lado de Nigéria, Egito e Quênia. Na primeira partida, com direito a gol de Roger Milla, os Leões venceram os egípcios pelo placar mínimo. No segundo cotejo, empate em 1 a 1 com a Nigéria. No último duelo, nova igualdade, dessa vez sem gols, com o Quênia, resultado que eliminou o Egito e classificou Camarões para a fase seguinte. Na semifinal, Makanaky assinalou o gol da vitória contra o Marrocos, colocando a equipe camaronesa na decisão continental contra a Nigéria. Kundé, de pênalti, decretaria a vitória para os Leões. Estava sacramentado o título para Camarões, que viria fortalecido e motivado nas Eliminatórias para a Copa do Mundo.
Após a conquista, veio um revés. O treinador Le Roy deixaria o comando ao aceitar uma proposta do Senegal. A Federação Camaronesa então se mexeu rapidamente, trazendo o inexperiente soviético Valeri Nepomniachi. Ainda que iniciante, mostrou talento ao levar o time à fase final das Eliminatórias, eliminando a Nigéria. Na decisão, venceu a Tunísia em duas partidas, se classificando de maneira incontestável para o Mundial de 1990.
Logo após o bicampeonato continental, o astro Roger Milla, 38 anos, havia anunciado a sua despedida da seleção. No entanto, o clamor popular e um pedido especial do presidente da nação, Paul Biya, o fizeram mudar de ideia. A estreia não poderia ser mais difícil. Os Leões defrontariam a campeã Argentina, de Maradona, além de Romênia e União Soviética. Porém, o time africano não se intimidou com os adversários sul americanos. O gol de Oman-Biyik decretaria o triunfo, ainda que diante de uma falha homérica do goleiro Pumpido. Na partida seguinte, novo obstáculo. A Romênia, composta pelos campeões europeus do Steua Bucareste, em 1986, vinha reforçada pela sua principal atração, o habilidoso meia Gheorghe Hagi. Mesmo assim, Camarões não se acovardou e bateu os romenos por 2 a 1, chegando às oitavas de final com uma rodada de antecedência. No último cotejo da fase de grupos os africanos foram goleados pela União Soviética por 4 a 0, mas a classificação já estava assegurada.
O rival a seguir era a Colômbia, de Higuita, Valderrama, Escobar e Rincón. Uma derrota diante dos sul americanos seria normal, haja vista que os colombianos eram tidos como grandes jogadores. Roger Milla, no entanto, acabou com o jogo em dois lances épicos que entraram para a história da Copa do Mundo. Em um deles, aproveitou-se da audácia do arqueiro Higuita, que ao tentar driblá-lo, acabou perdendo a posse de bola, resultando em gol. A vitória punha o continente africano pela primeira vez nas quartas de final de um mundial. “Ele tentou me driblar, e ninguém dribla o Milla”, diria posteriormente o veterano astro camaronês.
A imponente Inglaterra, de Bobby Robson e de craques como Gary Lineker, Peter Shilton, Paul Gascoigne, John Barnes e David Platt se colocava à frente dos Leões Indomáveis. A partida, realizada em Nápoles, é considerada uma das melhores de todas as Copas do Mundo. Os africanos jogaram como nunca, de maneira extremamente ofensiva, enchendo os olhos dos espectadores. Se não fosse a estrela e o talento do goleiro Shilton, fatalmente teriam saído com a vitória. O jogo só seria resolvido na prorrogação com o triunfo dos ingleses por 3 a 2.
Mesmo vencendo novamente a Copa Africana de Nações, em 2000 e 2002, além das Olimpíadas de 2000, Camarões não conseguiu igualar a campanha de 1990 em uma Copa do Mundo. Mesmo o talento de Samuel Eto`o não foi suficiente para conduzir o país a um retrospecto tão marcante.
O retrospecto de Camarões certamente inspiraria outras seleções africanas a acreditar que o sonho de ir mais longe em Copas seria possível. Em 2002, Senegal se classificou em uma difícil chave contendo a então campeã França e também cairia na prorrogação durante as quartas de final. Já em 2010, Gana esteve muito próxima de quebrar a barreira das quartas, mas a inesquecível defesa de Luís Suarez no último minuto da prorrogação e o subsequente pênalti perdido por Asamoah Gyan impediram o histórico feito.
O QUE SÓ ELES VIRAM
por Claudio Lovato Filho
O primeiro obstáculo eles haviam transposto sem maiores dificuldades: arranjar uma desculpa para passar toda a tarde de domingo fora de casa.
Aproveitaram um fato verdadeiro para inserir nele sua mentira. Disseram que iam participar do plantio de mudas no parque da cidade, uma atividade voluntária da qual participava a escola em que estudavam.
– Mas nada de muita gente junta! Sem chegar muito perto de ninguém! – disse a mãe de um deles.
– Não tirem a máscara! – disse o pai do outro.
Receberam permissão e, depois do almoço e de muita comunicação por mensagens de dentro de seus quartos, encontraram-se no ponto de ônibus, com suas mochilas e máscaras com o escudo do clube. No ônibus falaram pouco, porque estavam nervosos, mas a verdade é que nem precisavam conversar, porque já estava tudo planejado.
O ônibus os deixou muito além do ponto do parque. Desceram em frente ao estádio.
Ao lado do campo da escolinha, no qual eles jogavam todas as quartas-feiras à tarde, estavam construindo o estacionamento do estádio. Era uma obra pequena, para um estádio pequeno de uma cidade pequena. Havia uma rampa de serviço, provisória, porque o estacionamento teria dois níveis. Projeto modesto, mas bem-feito. E essa rampa, em certo ponto, praticamente se encontrava, de forma paralela, com o muro que fazia o limite do setor oeste das arquibancadas, o setor diametralmente oposto ao das sociais do estádio. Havia apenas um pequeno (embora perigoso, é verdade) vão que separava a rampa feita de madeira e o alto do muro. Era por ali que eles entrariam. Era por ali que tentariam entrar.
Primeiro se certificaram de que não havia vigilantes por perto.
– Devem estar trabalhando no jogo! – disse João Carlos, e Pedro apenas balançou a cabeça em sinal de concordância.
Entraram no terreno da escolinha, avançaram, se esgueirando, como se estivessem numa frente de batalha na guerra ou no meio de um tiroteio de gangues, e chegaram ao pé da rampa sem serem vistos. Avançaram, pé ante pé, cautelosos, tensos, contendo até a respiração, aqui e ali. Então chegaram ao ponto em que a lateral da rampa quase encostava no alto do muro que limitava as arquibancadas. Olharam um para outro.
– Tem que se agarrar no muro e depois passar as pernas – disse Pedro, e agora foi João Carlos quem apenas balançou a cabeça.
Primeiro foi Pedro. Com um pouco de esforço, conseguiu. Já do lado de dentro do estádio, de pé no que era o último degrau das arquibancadas, olhando o tempo todo para um lado e para outro, para conferir se alguém o tinha visto, ele fez sinal para João Carlos, que, apesar de ser mais alto e pesado que o amigo, conseguiu realizar a operação a contento.
Tinha dado certo. Haviam entrado no estádio.
Os dois times já estavam em campo. O time deles, o dono da casa, com o uniforme número 1, completo. Havia apenas alguns repórteres e fotógrafos. Da TV, apenas uma equipe.
Então o árbitro pediu que fosse feito um minuto de silêncio em respeito aos mortos na pandemia. “Tanta gente que se foi, meu Deus do céu!”, João Carlos ouvia o pai dizer a cada jogo que assistiam na TV.
O juiz apitou o início o jogo, e o que os dois amigos passaram a presenciar a partir de então foi uma experiência totalmente nova para eles, que, apesar da pouca idade, já estavam acostumados a assistir jogos no estádio. Ouviam tudo o que o seu Tadeu, o técnico, dizia (gritava) e também o que o treinador do time adversário gritava (berrava). Ouviam os que os jogadores falavam uns para os outros. João Carlos e Pedro só não estranharam mais porque, alunos da escolinha que eram, volta e meia conseguiam assistir a um treino do time profissional, mas, ainda assim, aquilo que estavam presenciando, numa partida oficial valendo pontos, era uma coisa totalmente diferente.
Tomaram o cuidado de ficar atrás de uma coluna, no alto das arquibancadas, escondidos.
O jogo se resumia a um infindável perde-ganha entre as duas intermediárias. Nada de lances de área. Mas para eles isso não era o mais importante. O que interessava mesmo era estar dentro do estádio, vendo jogar o time que amavam de todo o coração.
Veio o intervalo. Abriram as mochilas e tiraram delas copinhos de água iguais aos que os jogadores recebiam durante os treinos e jogos.
Imóveis e calados, eles viram os times voltarem a campo. O jogo foi reiniciado e prosseguiu em sua toada de muita disputa no meio-campo e feriado para os goleiros. Mas isso foi interrompido de maneira repentina e completamente inesperada lá pela metade do segundo tempo. O futebol e sua maravilhosa capacidade de surpreender e encantar. De uma hora para outra, a magia acontece. O futebol.
A bola veio do goleiro, uma reposição de bola para o grande círculo. O chutão encontrou Luiz Rafael, o atacante que costumava dizer que era o último centroavante do mundo, o garoto tatuado e marrento de quem João Carlos e Pedro eram fãs incondicionais. A partir daí foi tudo muito rápido. Cercado por três adversários – dois zagueiros e o lateral-esquerdo –, Luiz Rafael matou a bola no peito e, de costas, deu um lençol no lateral. Quando se virou, deixou a bola quicar uma vez, ela subiu muito e ele teve que aplicar um drible de cabeça num dos zagueiros, um testaço que permitiu que começasse a avançar em alta velocidade em direção à grande área. Percebeu o goleiro se armando todo para sair do gol e também a aproximação do outro zagueiro, que primeiramente tentou lhe puxar pela camisa, e depois, sem conseguir sucesso no primeiro intento, apelou para o carrinho por trás, um carrinho desesperado e assassino que Luiz Rafael evitou com um salto, deixando o defensor deitado. Com os outros dois marcadores ainda em seu encalço, mas já distantes e conscientes de que não conseguiriamcontê-lo, ele ficou cara a cara com o goleiro. Ameaçou a batida rasteira, no canto, o goleiro se jogou para o lado em que pensou que bola ia, e foi então que o atrevido e habilidoso camisa 9 deu uma cavadinha e fez a bola morrer lindamente no fundo da rede, bem no meio do gol.
Naquele exato momento, João Carlos, sem conseguir se conter, gritou a pleno pulmões:
– Puta que pariu!!!
E no meio do alvoroço das comemorações do time lá no campo, um funcionário do clube ouviu o grito, olhou para cima e viu os dois. Quando perceberam que o sujeito estava mexendo no celular, enquanto continua a olhar para eles, resolveram se mandar. Correram.
No trajeto entre a arquibancada e a rampa, e entre a rampa e o terreno da escolinha, e entre o terreno da escolinha e o ponto de ônibus, só o que eles conseguiam dizer uma para o outro era:
– Tu viu o que ele fez? Tu viu???
E entre risos e exclamações atônitas e a certeza de que haviam presenciado um momento especial na história do clube e, principalmente, em sua própria história pessoal, eles foram para casa com seu segredo bem guardado e com uma felicidade orgulhosa que era maior que tudo – um sentimento que, ao que tudo indicava, os acompanharia pela vida afora, com as novas roupagens que o tempo sempre traz.
Daqui a um tempo, muito tempo, eles contarão aquela história aos amigos e aos filhos e aos netos,em ocasiões diferentes, e, em alguns casos, mais de uma vez para as mesmas pessoas; contarão que estavam no estádio quando Luiz Rafael fez “aquele” gol. E muitos duvidarão da história, claro, ou todos, e muitos rirão e balançarão a cabeça ao ouvir o relato, porque, afinal, aqueles eram tempos de pandemia, e não havia torcida nos estádios. Mas eles, João Carlos e Pedro, saberão. Lembrarão em detalhes daquilo que viram – daquilo que, de uma forma muito especial e muito única, só eles viram.