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MESTRES NA BATIDA DA BOLA

por Serginho 5Bocas 


Houve um tempo em que bons batedores de falta no Brasil nasciam nos cantos dos paralelepípedos e nas frestas das calçadas, igual capim, era aquela surrada história de onde se planta, dá. É uma história antiga e repleta de talentos, um legado extenso de batedores extraordinários que me deixa curioso, se estou certo, mas quase posso afirmar que nunca, em lugar nenhum do planeta, nasceram tantos mestres na batida da bola como no Brasil.

Para se ter uma ideia da oferta de talentos, nos anos 50 e início dos anos 60, quem dava as cartas e assombrava a galera eram Jair da Rosa Pinto e Pepe, com fortes petardos que desmontavam defesas e o Mister Didi, com a leveza das folhas secas.

No final dos anos 60 e início dos 70, Pelé que não era especialista nesta matéria, batia bem de várias formas e marcou vários gols, incluindo em Copas do Mundo. Rivelino e Nelinho soltavam seus mísseis cheios de curvas deixando enlouquecidos os pobres dos arqueiros. Ailton Lira, Dicá e Zenon eram daquela estirpe de classe total na batida. 

No final dos anos 70 e início dos anos 80, Zico e Roberto Dinamite enlouqueceram goleiros com gols de falta “a rodo”, semanalmente e às vezes mais de uma vez numa só partida. Edér ia dizimando os adversários com suas bombas certeiras, bem de longe, já que, para ele, meio de campo era meia lua.


Logo em seguida, ali pelo final dos anos 80 e início dos 90, Branco surgiu derrubando e botando pra “ninar” repórter atrás do gol. Neto e Marcelinho Carioca davam curvas impressionantes na bola, raríssimas de se ver ou prever a trajetória.

No final dos anos 90 e início dos anos 2000, Juninho Pernambucano batia com uma precisão incrível que parecia fácil, Roberto Carlos enviava seus torpedos violentíssimos sem dó nem piedade e Marcos Assunção batia na bola com muita categoria e jeito.

Nos anos 2000 em diante, os últimos moicanos foram Rogério Ceni com uma incrível precisão e fome de gols para um goleiro e Ronaldinho Gaúcho com categoria absurda e inventando batida por baixo da barreira, um assombro. 

Depois de apresentar essa turma toda, com a saudade boa de quem viu boa parte deles em ação na sua plenitude, tentei buscar as razões para tamanha escassez deste tipo de jogada, que sempre foi tão brasileira, sempre alegrou demais a nossa galera e que sempre mostrou ao mundo a nossa inventividade. O que pode ter acontecido para deixarmos a bola ficar murcha?

Dizem que os jogadores de hoje não gostam de ficar treinando batidas de faltas após o horário normal dos treinos, hora extra nem pensar. Talvez tenha um fundo de verdade, já ouvimos constantemente vários destes grandes batedores explicando que ficavam após o horário dos treinos batendo faltas adicionais e muitas vezes sem auxiliares ou goleiros para ajudar na tarefa. Eles tentavam simular situações de jogo, para que na hora “H”, acertar o gol fosse como “bater cartão” na empresa, tamanha a facilidade, dada a exaustão das repetições dos movimentos.

Outros dizem que os fisiologistas de hoje, tão em voga nos clubes que de tão importantes nas equipes de futebol, dizem quem deve ser escalado e quem deve ser poupado, porque a musculatura pode estourar daqui a alguns instantes, um exagero.

Se o ritmo e a intensidade dos jogadores nas partidas ficou tão puxado que nem treinar batidas de faltas podem ser executadas, talvez devessemos rever se o tempo das partidas não deveria diminuir ou se o número de jogadores deveria ser maior para se desgastarem menos, correndo menos quilômetros. 

Não sei se há uma dose de exageros destes especialistas do esporte, mas que se for verdade, pode estar “matando na raiz” um “expertise” tão brasileiro, que chego a pensar que a solução é treinar os goleiros. Sim, afinal de contas, um dos maiores batedores de falta de todos os tempos foi Rogério Ceni. Se hoje os goleiros são obrigados a saber sair jogando com os pés, porque não encontrar entre eles, os caras que podem trazer de volta a nossa supremacia neste quesito da modalidade.

O que não consigo entender com clareza é que, mesmo o futebol atual sendo mais intenso, por outro lado a medicina avançou espantosamente e recupera os jogadores com incrível rapidez. Lesões que antigamente encurtavam facilmente as carreiras, hoje tem solução rápida e eficaz, é só ver quantos atletas de várias modalidades estão jogando por mais tempo, esticando seu tempo de vida esportiva. 


Talvez o problema seja mesmo a falta de talentos, bater faltas com perfeição não é só treinamento constante, existe o fator talento, dom ou como queiram chamar a qualidade nata de nossos antigos jogadores e isso é límpido que a queda de talentos foi vertiginosa. Já foi o tempo em que na hora da falta, tínhamos dois, três ou mais especialistas rondando a bola para confundir e matar de medo o goleiro adversário, hoje é só um monte de enganador que chutam oitenta, noventa bolas para acertar uma, dá até dó de ver.

Confesso que não me conformo, porque como era bom quando saia uma falta contra o adversário e você tinha um cara “especial” para batê-la. Por outro lado, também era um inferno ver seu time cometer a falta e ter que secar muito para a bola não entrar quando a fera estava do outro lado.

Agora. Para matar a saudade com elogios, vou elencar dez grandes mestres desta arte, explicando o porquê de cada um estar nela, mas ressaltando que só entrou na lista quem teve um longo legado, quem metia medo e só os que eu realmente vi bater na bola. Peço desculpas aos ausentes por não tê-los visto ou pelo pouco tempo que estiveram assombrando pelos campos, mas quero lembrar que a lista está em ordem alfabética e não de preferência, ok? 

EDER entra na relação, sem dúvida nenhuma, pela força e efeito de sua batida. Ficou famoso na Copa de 82 pelo chute forte, mas também pelo colocado. Lembro de quantas vezes, vi fazendo gols de muito longe, às vezes um pouco depois da linha do meio de campo, impressionante;

JUNINHO PERNAMBUCANO tinha uma precisão e uma forma diferente pela elegância de bater na bola. Nem preciso falar daquela falta contra os argentinos do River Plate, histórica, perfeita e que só poderia ser desferida por quem tem “culhões”, nos momentos decisivos;


MARCELINHO CARIOCA entra na relação pela variedade e formas. Batia de qualquer lugar do campo e as curvas que a bola fazia eram diferenciadas, coitados dos goleiros, enganou muita gente com seu chute com pé pequeno, um espanto.

NELINHO talvez tenha sido o melhor chutador de longe com curva de todos os tempos. Para ele não tinha distância, o duelo de suas curvas com Manga foi histórico na final do Brasileiro de 1975. Seu gol contra a Itália na decisão do terceiro lugar da Copa de 78, apesar de não ser de falta, foi de outro planeta, Zoff pensou que ia sair, só que entrou;

NETO também batia na bola com força, seu gol de longe contra o Flamengo no Maracanã foi de almanaque, Gilmar não contava com a última curva. Durante uns 4 ou 5 anos foi o maior batedor de faltas do Brasil;

RIVELINO era um monstro na batida com força. Largou o “aço”, digo, suas patadas atômicas em duas Copas do Mundo e reza a lenda, que deixou um goleiro argentino quase desmaiado, após uma tentativa de encaixar uma bola chutada por ele de muito longe, dizem que o crucifixo do cordão que o goleiro usava, ficou marcado no peito, o bigode era sinistro;


ROBERTO DINAMITE já tinha no sobrenome o predicado explosivo. Começou batendo forte e depois, com o tempo, talento e a experiência, começou a se dedicar a batida mais colocada, mas em qualquer das duas formas, era certeza de gols, um monstro, fez muito gol deste jeito na carreira.

ROGERIO CENI entra pela sua incrível capacidade de executar o movimento da batida de falta, da mesma forma e por muitas vezes com extrema perfeição. O São Paulo venceu muitas partidas pelos gols de falta que fez. Ceni fez mais gols na carreira que muitos centroavantes e quebrou o paradigma do goleiro só ficar embaixo das traves. Ele assuntou muitos treinadores que temiam pela sua volta ao gol quando não acertava, mas foram poucas.

RONALDINHO GAÚCHO foi escolhido pela categoria, leveza e arte de criação na batida de falta. Aquela por baixo da barreira em um jogo fantástico contra o Santos, foi de extrema inventividade, talento e confiança em uma partida de altíssimo nível e rendimento, coisa de bruxo.


ZICO sua batida clássica era com a bola subindo, fazendo a curva e descaindo no ângulo, um primor. Fazia gols de falta igual a gente chupa uma laranja. Na Itália fez tantos gols de faltas, logo na primeira temporada que até na mesa redonda na TV RAI, foi motivo de resenha para discutir como pará-lo. Teve gol de falta em Copa do Mundo, em final de Libertadores, dois gols de falta em um jogo só, mas talvez o seu gol de falta mais emblemático, seja aquele contra o Santa Cruz, na Copa União de 1987. E afinal de contas, muitos já devem ter ouvido esse refrão: “…é falta na entrada da área, advinha quem vai bater, ê, ê, ê….é o camisa 10 da gávea…”

Fico por aqui, na esperança que novos batedores surjam e calem este rabugento, que dizem as más línguas é somente um velho saudosista, talvez seja mesmo, mas que deixamos de ver aqueles gols de almanaque, deixamos. 

Os torcedores agonizam, mas que maré!

Um forte abraço

Serginho 5bocas

JOÃO DANADO, O AZARADO

por Luis Filipe Chateaubriand


Nunes, um grande artilheiro que brilhou em vários clubes – especialmente Santa Cruz, Fluminense e Flamengo – era conhecido pelo sugestivo apelido de João Danado.

Jogador de técnica limitada, era, no entanto, um fazedor de gols de primeira, devido à excelente colocação na área, o chute potente e a capacidade de colocar a bola onde queria.

Assim, também foi alcunhado de “o artilheiro das grandes decisões”.

Suas virtudes não se resumiam a fazer gols, pois se movimentava pelos dois lados da área, atraindo a marcação, abrindo espaços para quem vinha do meio.

 Zico fez muitos gols assim, deve muitos gols a Nunes.

Mas, infelizmente, nosso João Danado não dava sorte quando o assunto era Seleção Brasileira.

Em 1978, estava convocado para a Copa do Mundo de 1978, na Argentina, mas se machucou e ficou fora, sendo cortado pelo técnico Cláudio Coutinho.

Foi substituído por Roberto Dinamite.

Em 1982, para a Copa do Mundo de 1982, Careca foi cortado por contusão.

A primeira opção do técnico Telê Santana era Nunes, mas este estava com um problema no joelho.

Novamente, Roberto Dinamite foi o escolhido.

Resumindo: Nunes ficou fora de duas Copas do Mundo por estar contundido.

Que azar, hein, João Danado?

Luis Filipe Chateaubriand é Museu da Pelada!

RIVA, 75

por Rubens Lemos


O menino, teimoso, tapeava o pai, siciliano sangue quente e orgulho disfarçado. Banco para ele, nem o da escola. O curso natural da vida era a bola jogada com os amigos humilhados por dribles homéricos e indecentes.

– Sai da rua, Roberto! – berrava seu Nicola.

Roberto, Rivellino com dois éles abreviados pelo tempo e a fama, desafiava o cinto grosso de couro e a autoridade paterna enfileirando colegas e desafiantes de quadras de rua. Um gênio genioso no pé esquerdo.

Referência dos meus primeiros exemplares da Revista Placar, Rivelino (nome literal artístico), mandava no futebol brasileiro depois de Pelé e antes da afirmação de Zico.

No entreato de 1971 a 1978, viuvez de Pelé, Rivelino carregou nas costas sinalizadas pela camisa 10, as esperanças e devaneios do torcedor romântico, fanático e bêbado de tanta elasticidade canhota. Rivelino enganava seus inúteis perseguidores com uma goma de mascar escondida em algum detalhe da chuteira.

Corria 1975. Vivíamos num apartamento alugado de esquina na avenida Hermes da Fonseca, em frente ao Quartel do Exército. O pai, vascaíno fanático pelo timaço de Walter Marciano e Vavá de 1956, gozava seu segundo ano de liberdade. Fora destroçado fisicamente pela tortura, desprezado por amigos e parentes medrosos e colaboracionistas da tirania.

Levavam meu pai até a delegacia para “averiguações”, humilhavam-no e o soltavam com risadinhas cínicas. Tenho menos ódio dos orangotangos do passado do que dos beócitos do presente, nulidades que pedem ditadura sem colhão para tomar um cascudo. Numa dessas perseguições, perdeu a hora do jogo no Castelão (Machadão) e voltou para o pequeno apartamento aos impropérios.

Chegou a tempo de ligar o televisor, tomar uma dose de Cachaça Caranguejo e sintonizar a TV Universitária. Brincávamos, eu e minha irmã, minha mãe, católica, apostólica e americana contra a maioria, rezava seu terço. Ouvimos o berro:

– Filho da puta!

Não era delator ou espancador o alvo. Papai xingava o dedicado volante Alcir, do Vasco, paralisado pelo drible dos mais debochados de todos os tempos do Ex-Maracanã. Rivelino, bola colada à pata boa, produzira um efeito especial.

A bola foi e voltou em centímetros latifúndiários sem sair do seu domínio. Parado estava, parado Alcir ficou. Levou uma caneta, Rivelino passou no meio dos zagueiros Moisés e Renê feito raio, esperou a queda do goleiro Andrada e tocou a bola rasteiro.

O Fluminense – eu que apreciava Durango Kid e Daniel Boone – heróis de seriado, saberia depois, ganhava de 1×0 e avançava para o título carioca. Seria o primeiro da vida de Rivelino em clube, ele que havia sido fantástico no Tri da seleção no México e escorraçado do Corinthians na perda do Campeonato Paulista de 1974 para o Palmeiras.

Rivelino me encantava nos primeiros flertes do amor ao futebol. Jogava brincando, esbanjava categoria, driblava e driblava e traria a Copa de 1978, que praticamente não jogou, machucado e depois barrado pelo técnico Cláudio Coutinho, retranqueiro convicto. Batista, aplicado volante do Internacional tomara o lugar de Rivelino.

Mascote do ABC, minha timidez impediu de lhe pedir um autógrafo no amistoso contra o Vasco em 1979. Rivelino, antipático, estava entediado, abusado, queria cachê e tabelou cinco ou seis vezes com o maestro Danilo Menezes, seu companheiro de meia-cancha. A partida acabou 1×1 com Noé Macunaíma, substituto de Rivelino, empatando para o ABC. De cabeça, Noé nanico, vencendo o pernóstico Leão, goleiro da seleção brasileira.

O mágico Rivelino fez 75 anos de vida. Nasceu na passagem de 1945 a 46. Uma transição definidora, espetacular. Vi Rivelino jogar depois pelo Brasil de veteranos, lançando com efeito, escravizando marcadores em deslocamentos e fintas deliciosas. Era saboroso ver Rivelino jogar.

Melhor que ele, em 1970, só Pelé. Rivelino empatava com Gerson e Tostão. Geração luminosa. A meninada nem sabe quem foi Rivelino e fica boba com firulas de Neymar. Vantagem minha, que sou velho. Fã do bigodudo, amante requintado de uma bola possuída em orgasmos gritantes. Rivelino, Roberto, foi pra rua. Ganhou o mundo.

1º DE MAIO DE 1976

por Valdir Appel


Dia do Trabalho. 

O estádio Raulino de Oliveira é inaugurado oficialmente, com a presença do presidente da republica Ernesto Geisel nas tribunas de honra. 

É registrado o público histórico de 30 mil pessoas, recorde porque o novo Raulino, o Estádio da Cidadania, tem capacidade para 21 mil espectadores.

O povão se acotovela pelas arquibancadas e os mais corajosos se penduram nas torres de iluminação, buscando um jeito de assistir o espetáculo que iriam proporcionar Flamengo e Voltaço.

Um dia de sol maravilhoso contribui para a festa. Enquanto Zico homenageia o presidente os dois times se perfilam no gramado para ouvir o hino Nacional.

O jogo começa e é empolgante, com os times se revezando em ataques e lances de grande emoção.

Antes da partida, Paulinho de Almeida fez a sua tradicional palestra nos vestiários. Passou a limpo o esquema tático do time, orientou e numerou os homens que comporiam as barreiras nas faltas, geralmente cobradas pelo galinho Zico e pediu muito empenho para o grupo buscar uma vitória.

Um atleta recebeu uma recomendação toda especial do Paulinho.

– Paulão! Quero ver você colado no Zico. Se ele for ao banheiro você vai junto. Ele não pode passar por você.  

O jogo estava lá e cá quando Aluisio gritou para o Paulão:

– Segura o homem!

– Segurem vocês aí atrás porque aqui ele já passou.

E em todos os demais jogos contra o Flamengo, Paulão evitou que Zico fizesse mais estragos do que geralmente fazia contra os seus adversários. 

Era um marcador implacável e determinado.

MINHA GUERRA PELO TEU NOME

por Cláudio Lovato Filho


Ele passou o diabo para reabilitar a imagem do velho.

Foi ameaçado nas redes sociais, confrontado na rua, colecionou inimigos: os filhos, os amigos, os filhos dos amigos e os parentes daqueles que transformaram seu pai em um pária e escarraram em sua memória. 

Tudo por causa de um lance protagonizado pelo velho, zagueiro seguro e de boa técnica: uma rosca, uma espirrada de taco, o gol contra. E a taça – pela primeira vez na história do clube situada a uma distância possível, um sonho realizável – escorrendo entre os dedos. 

Então algum ressentido, alguém com voz levada em conta naquela cidade hipócrita, levantou a suspeita: e se é gaveteiro? E se estava comprado? E rapidamente outros medíocres amargurados, outros “donos da cidade”, compraram a ideia e aquilo em pouco tempo se tornou consenso: é gaveteiro; estava comprado. Vendido.

Os companheiros silenciaram. Nenhum dirigente saiu em defesa dele. A imprensa local – tacanha e provinciana que só ela – gostou da repercussão daqueles títulos canhestros, tendenciosos, falaciosos, e comprou o boato para vender como fato. 

Mas por fim ele, o filho obstinado, o herdeiro do pária, com a ajuda de um jornalista obcecado pela história do futebol conseguiu seu trunfo e troféu: uma reportagem especial no site de esportes mais lido do país. 

A foto do velho abrindo a matéria: ele sendo cuspido e levando um soco na cabeça de um torcedor que conseguira romper o (falso) cordão dos seguranças do clube. 

A segunda foto: o velho, alguns anos após ter encerrado precocemente a carreira, sentado num tronco podre na frente do sítio modesto, com uma caneca branca esmaltada na mão direita e um cigarro entre os dedos da mão esquerda. No rosto barbado, barba grisalha desgrenhada, a falta absoluta de expressão; uma neutralidade fisionômica que sugeria morte. O pai a algumas semanas da morte. Dava para ver num canto da foto, se sobressaindo da velha árvore de tantas fotos de família, o galho grosso no qual ele passara a corda em que pendurou e sufocou toda a melancolia que lhe corroía os ossos e a alma e lhe drenou por completo a vontade de prosseguir.

Sim, ele comeu o pão que o diabo amassou para limpar o nome do velho e recontar aquela história que um grupo de filhos-da-puta inventou para condenar ao patíbulo da execração pública um homem de comportamento humilde e pacífico vindo da parte mais pobre e esquecida e mal falada daquela cidade. 

Agora ele só pensava numa coisa: transladar os restos mortais do velho – da cova com uma cruz de pau feita lá nos fundos do sítio ruinoso para o cemitério principal daquela cidade que o escorraçou como se fosse uma secreção, um dejeto contaminado, uma doença contagiosa.

Ele daria ao pai um sepultamento digno. Esfregaria a morte – o assassinato – do pai na cara de todos. E, de tempos em tempos, visitaria o túmulo para lustrar as letras douradas do epitáfio que ele próprio, o único filho do homem transformado em criatura abjeta de caráter purulento, escreveu: 

“Aqui estou para que vocês jamais se esqueçam de sentir vergonha pelo que são”.

Mas ele sabe que é provável que ninguém leia aquelas palavras. E os que porventura as lerem certamente não acharão que elas são endereçadas a eles, comprovando-se assim típicos habitantes daquela cidade cheia de máculas e sem alma.