Escolha uma Página

UM QUILO DE ALCATRA

por Claudio Lovato Filho


A carne era tudo o que ele carregava. 

O açougueiro a havia cortado em bifes grossos e colocado no saco plástico com a etiqueta que informava o peso e o preço. No caixa rápido – para “10 volumes no máximo” – ele pagou pelos 987 gramas de alcatra usando o cartão do banco em que abrira conta havia menos de um mês e saiu do supermercado.

Saiu do supermercado, mas não conseguiu sequer chegar à esquina que lhe daria acesso à avenida que ele percorreria até chegar em casa, onde a mãe – ele sabia – ficaria de queixo caído e sem saber o que dizer assim que se desse conta daquela surpresa que ele havia preparado para ela.  

Ele não chegou à esquina porque uma viatura da Polícia Militar subiu na calçada e lhe interrompeu a passagem. Ele só teve tempo de arregalar os olhos e sentir o coração disparar antes que o PM que saiu do assento do lado do motorista começasse a gritar com ele.

“Na parede! De frente pra parede!”

“Solta a sacola!”

“Mão na cabeça!”

“Abre as pernas!”

Com o nariz quase encostado ao muro da escola pela qual ele tantas vezes havia passado na vidapercebeu a aproximação, à direita, de outro PM. Esse outro tinha uma voz arranhada, grossa, e o cheiro que vinha daquela boca lembrou a ele um bicho morto.

“Onde é que você arranjou dinheiro para comprar esta carne?” 

Ele conseguiu reunir calma e coragem para responder.

“Eu ganhei. No Castanheira. Eu jogo lá”.

“Cadê a nota fiscal?”.

“Joguei fora”.

O PM que havia se aproximado primeiro começou a enfiar as mãos e mexer nos bolsos da bermuda dele,até que os forros ficassem para fora. Com brutalidade, o policial tirou um chaveiro com o escudo do clube, ao qual estavam presas duas chaves (do portão e da porta de casa). Depois puxou uma carteira de plástico. Por fim arrancou do bolso de trás o celular com o protetor de tela rachado.

Esse mesmo PM examinava lentamente o conteúdo da carteira (havia uma nota de R$ 20, uma de R$ 10 e duas de R$ 2, a carteira de identidade, o cartão do banco, um bilhete do metrô e a carteirinha do clube com a foto dele e o registro como jogador das categorias de base), enquanto o outro se mantinha com a mão na coronha da pistola automática e com um dos coturnos encostado na sacola com a carne.

Então o que tinha o bafo de esgoto disse:

“Vira”.

Ele se voltou devagar até ficar de frente para os dois policiais.

O PM que havia revistado a carteira a devolveu. Devolveu também as chaves e o celular. O outro lhe entregou a sacola do supermercado. Os dois policiais se entreolharam.

“Tranquilo. Poder ir”, disse o primeiro PM.

E o outro:

“A gente recebeu uma informação e a descrição bate com uma pessoa com a sua… com a sua… aparência. Pode ir”.

Ele ouviu – não viu, porque não conseguiu olhar;apenas ouviu, de cabeça baixa e com os olhos fixos na calçada – os dois policiais entrarem no carro e irem embora.

Foi para casa como se fosse a primeira vez que estivesse andando naquela avenida e naquela cidade.

Quando chegou e entregou a compra à mãe, ela ficou sem saber o que dizer, apenas sorriu e ficou olhando para ele, exatamente do jeito que ele imaginou que seria.

“Vou fazer com ovo pra você, meu filho”, ela disse. “E batata frita”.

Ele tentou sorrir. Tentou deixar para trás o medo, ao mesmo tempo em que – agora, sim – sentia a raiva se apresentar com toda a força.

“Agora você é jogador profissional, meu filho. Você conseguiu. Vai ganhar o seu o dinheiro, vai ficar conhecido, vai ser respeitado, porque neste país só assim para uma pessoa como nós ser respeitada”.

Pensou no enorme esforço que teria que fazer para engolir aquela carne que a mãe já estava começando a preparar na cozinha. Seria mais uma luta que teria que empreender, uma luta pequena em comparação às tantas que já havia se acostumado a enfrentar desde muito cedo, desde sempre.

Mas foi só quando olhou para o irmãozinho, que assistia TV sentado no chão e sorria para ele de um jeito que só as crianças conseguem fazer, que as lágrimas finalmente vieram, e ele teve que correr para o banheiro porque não poderia deixar que nenhum deles visse em seu rosto a amarga materialização de todo o medo e de toda a desesperança e de toda a humilhação que naquele momento ele carregava dentro de si.      

O FUTURO DA NARRAÇÃO NA TELEVISÃO BRASILEIRA

por André Luiz Pereira Nunes


A volta do Show do Esporte, na Rede Bandeirantes, foi extremamente comemorada pelos amantes do desporto. Idealizada por Luciano do Valle, a primeira edição perdurou décadas e contemplou diferentes modalidades como sinuca, vôlei, tênis, boxe e o futebol. Revivida após anos de hiato, completa um ano no ar, trazendo novidades como os campeonatos russo e alemão, a Copa Africana de Nações e o Mundial Interclubes.

Porém, o formato das transmissões de futebol, assemelhadas a um papo informal entre amigos no boteco da esquina, tem incomodado bastante os telespectadores. As reclamações têm sido inúmeras por parte dos internautas. O motivo: muita conversa fiada e pouca narração.

Foi exatamente o saudoso Luciano do Valle quem começou a inserir ex-jogadores nas veiculações esportivas. Como deu muito certo, a prática passou a ser estimulada pelos concorrentes. Lamentavelmente, no tocante à emissora dos Saad, a narração tem ficado ultimamente em segundo plano, enquanto sorteios de camisas, elogios, bajulações, apostas e muito papo furado dominam inteiramente as transmissões.

De acordo com o ex-narrador da Rádio Globo do Rio de Janeiro, Maurício Menezes, a figura do narrador em breve desaparecerá da TV brasileira. Segundo ele, tudo será tocado por ex-jogadores e ex-árbitros em um bar ou na casa de qualquer um deles. O que tiver mais jogo de cintura será o responsável por informar o gol. Aliás, diante de tanta mediocridade, talvez esse pequeno detalhe nem seja tão importante, pois quase todos em casa vêem quem está a assinalar os gols.


Jornalista Rafael Rezende deixa função de comentarista do SporTV (Fogão Net)

É importante frisar que o comentarista de rádio ou TV não deveria se pronunciar tantas vezes durante as transmissões. A importância da sua presença não é devida ao seu número de participações, mas pela capacidade de leitura de jogo. O poder de realizar uma análise tática é a síntese da função. A fala só deveria ser repetida quando enxergasse algo diferente que mudou ou que poderá mudar o panorama da partida.

O número cada vez mais crescente de ex-jogadores nas atrações esportivas pode ter estimulado a demissão do competente comentarista Rafael Rezende, do SporTV. Após 16 anos de casa, o jornalista se tornou responsável pela análise de jogadores no mercado para o Botafogo. Provavelmente ele enxergou um futuro promissor nessa carreira, percebendo que a chance de crescer na televisão não seria muito grande, haja vista que os boleiros dominam cada vez mais as atrações esportivas.


João Saldanha assiste ao jogo (Acervo O Globo)

Atualmente os comentaristas anseiam por falar a todo momento durante as transmissões. Não raro, repetem o que já foi dito anteriormente. Sobre isso, vale recordar o inesquecível João Saldanha, no intervalo de um Uruguai e Brasil, em Montevidéu, em que o escrete canarinho aumentou o placar ao fim do primeiro tempo, abrindo uma diferença de dois gols. O João sem Medo abriu a sua fala dizendo o seguinte:

– MEUS AMIGOS, COMEMOS ELES! Com essa frase, Saldanha definiu tudo.

O CRAQUE DO BRASIL EM 2010

por Luis Filipe Chateaubriand


O argentino Dario Conca teve em 2010 um ano de destaque em sua carreira, jogando pelo Fluminense.

Franzino, era dono de um futebol livre, leve e solto.

Bom no drible, bom no passe, bom nos lançamentos.

Quem gostava era o centroavante Fred, que fez muitos gols a partir das engenhosidades de Conca.

O Fluminense terminou como campeão brasileiro em 2010, muito graças ao que Conca produziu.

E, por isso, Conca foi o craque daquele ano no Brasil!

NUNCA MAIS SEREMOS OS CAMPEÕES DO MUNDO DE 1950

por Arnaldo Jabor

Texto publicado originalmente Folha de São Paulo em 30 de junho de 1998


O pintor Antonio Peticov me gelou a espinha ontem. Mandou-me o seguinte e-mail: “O Brasil ganhou a Copa em 1994. Antes disso, ganhou também em 1970. Some 1970 com 1994 e o resultado será 3964. A Argentina ganhou a Copa em 1986. Antes disso, ganhou também em 1978. Some 1986 com 1978 e o resultado será 3964. A Alemanha ganhou a Copa pela última vez em 1990. Antes, ganhou também em 1974. Some 1990 com 1974 e o resultado será 3964. E, agora, aqui está o que assusta. A Inglaterra ganhou a Copa em 1966. Some 1966 com 1998 e o resultado será 3964!”.

Será que uma Fifa intemporal já traçou nosso destino de derrotas? Sinto um frio na espinha, igual ao frio que senti quando meu avô me levou ao Maracanã pela primeira vez, há muitos anos.

Todo mundo torcia e gritava, e eu percebi, em pânico, que, enquanto todo mundo olhava o jogo, eu olhava os torcedores. Tive um arrepio de horror. “Sou louco?”, pensei. “Por que não estou vendo o jogo, como todo mundo? Por que estou olhando-os viver? Percebi que minha entrada na vida seria rala e difícil. Até hoje estou assim, “olhando os torcedores”.

Futebol para mim sempre foi um trauma. No colégio, aos dez anos, fui agarrar no gol. A bola entrou bem no cantinho da trave e foi considerado “frango” (a gíria era recentíssima). Caí na humilhante segunda divisão, composta de gorduchos, pernas tortas, veados e babacas molengas. Eu era comprido e trêmulo.

Depois, estou na praia da Urca, legendária arena de times famosos: o Arsenal, o Lavaibola, o Ipiranga. Eu adorava o Ipiranga. Nunca jogava, claro. Ficava olhando. Faltou um jogador na hora da partida. “Dá a camisa pra ele!”, gritou o capitão. Todo orgulhoso, ostento a camisa verde e vermelha e chego a fazer umas embaixadas para esquentar. Silvinha, na amurada, me olhava.

Quando vai começar o jogo, chega o Ceará, dono da posição. “Tira a camisa”, gritou o capitão. Até hoje, sofro a dor desse momento. Silvinha, pálida, fingiu que não viu meu fracasso. Eu, para me salvar, me joguei ao mar e não sei se chorei debaixo d’água, pois o sal de meus olhos se misturou com a água da Urca.

Não me levaram ao famoso Brasil x Uruguai em 50. Mas me lembro de meu avô, chorando e dizendo: “Só se ouvia o som dos pés das pessoas descendo as rampas. Ninguém falava. Só se ouviam os sapatos”. “O silêncio era ensurdecedor”, esse foi o oxímoro usado para descrever aquele dia.

Meu amigo Paulo Perdigão, escrevendo sobre esse dia terrível em seu livro “Anatomia de uma Derrota”, tem a tese de que o Brasil seria outro país se tivéssemos ganho “aquela” Copa, “naquele” ano. Talvez não tivesse havido a morte de Getúlio nem a ditadura militar.

Eu penso como ele. Perdigão acha (e eu também) que as outras Copas não chegaram a sarar as feridas daquele dia. A vitória em 50 teria sido essencial para o progresso nacional.

Ele escreve: “Foi uma derrota atribuída ao atraso do país e que reavivou o tradicional pessimismo da ideologia nacional: éramos inferiores por um destino ingrato. Tal certeza acarretou nos brasileiros a angústia de sentir que a nação tinha morrido no gramado do Maracanã…”. E aí ele diz a frase rasgada de dor: “Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!”.

A partir desse dia, associei futebol e país, numa “tabelinha” histórica. As taças de 58 e 62 marcaram um momento de abertura econômica e de progresso cultural jamais vistos. JK, Brasília, bossa nova, cinema, teatro, reformas populares em um país novo. Mas a esperança seria arrebentada em 64, pelo golpe.

A Copa de 70 teve para mim um sabor amargo e doce, que fazia sorrir o ditador Médici, legitimando a tortura e a morte de heróis. A taça de 70 foi outro oxímoro: uma “alegria dolorosa”. Eu imaginava os torturadores e seus torturados no “pau-de-arara”, todos torcendo pelo Brasil. A vitória em 70 veio animar o torto “milagre brasileiro”, que nos mergulhou em buracos de dívidas impagáveis.

Depois, vieram: a derrota das eleições diretas, a morte de Tancredo Neves, que teve o mesmo gosto de absurdo do Brasil x Uruguai; depois, os “anos Sarney”, quando parecia que o Brasil nunca mais sairia do buraco, descrente até mesmo da liberdade, com a falência do Estado e a descoberta de que a “democracia real” não existia dentro das instituições, nos alicerces do país.

Depois desse período letárgico, com gosto de conto-do-vigário, os brasileiros deprimidos chamaram o “bonapartismo narcísico” de Collor para “salvá-los” mais uma vez… Acho até que Collor nos “ajudou” com seus erros, que foram tantos, que nos acordaram do fracasso passivo que já durava havia 40 anos, desde a derrota de 50.

O impeachment e os caras pintadas foram o “trailer” da vitória de 94, com o governo FHC raiando com “novas palavras”. Quase no mesmo mês, derrotamos a inflação e viramos tetracampeões. Um novo tempo estava começando!

Mas aí chego a hoje, dia em que escrevo esta coluna, depois do jogo Brasil x Chile. Vi o quê? Vi uma vitória não merecida, com um time de craques sem completar jogadas, com uma trama de jogo hesitante.

Vi um time parecido com o tempo político que estamos vivendo. Tudo para dar certo e não dando, saídas esperançosas e frustrações imediatas, falta de penetração, falta de gols, um “bom senso” de classe média de Zagallo, que tira o brilho da coragem, jogadores seduzidos pela economia global da Nike, como, aliás, o próprio país.

E aí um terceiro arrepio me gela a espinha. E se não der certo a idéia de país a que FHC e o mundo nos levam? E se a Inglaterra, com seus “hooligans”, for campeã, como reza a profecia de Peticov? Vejam: 1966 + 1998 = 3964.

Que quer dizer esse número fatídico? Que destino nos está reservado? Conseguiremos entrar no ano 2000 de cara nova? Tenho medo que não. Talvez nosso destino tenha sido traçado pelo gol de Ghiggia. Deus nos proteja. Acho que nunca mais seremos campeões do mundo de 1950…

COVARDIA NO MUNDIAL

:::::::: por Paulo Cézar Caju :::::::


Sou do tempo dos clássicos acirrados, repletos de craques em campo, estádios lotados e festa da torcida. Muito por isso, me decepcionei bastante quando fui convidado para assistir Palmeiras x Santos pela Libertadores de 2020, no Maracanã, e presenciei uma das piores finais de todos os tempos. Sem brincadeira, durante todo esse tempo jogando e acompanhando futebol, nunca vi uma decisão tão fraca na minha vida.

Na ocasião, o gol saiu na prorrogação e foi marcado por puro espiritismo do atacante! Classificado para o Mundial daquele ano, o Palmeiras decepcionou e foi eliminado ainda na semifinal. Em 2021, o título veio novamente com um “gol espírita”, dessa vez de Deyverson, após falha de Andreas Pereira.

No sábado, parei para assistir a final do Mundial e juro que tentei ver o que tinha de positivo no time de Abel Ferreira, afinal o treinador vive sendo idolatrado pela torcida e pela imprensa. Mas o que pude ver foi um time extremamente acovardado, acuado, jogando para não perder e torcendo para Dudu, o único que apresenta uma lucidez, resolver com uma jogada individual.

Acho que a preocupação do português era não levar uma goleada, mas a verdade é que o Chelsea também não é lá essas coisas e jamais seria capaz de fazer uma chuva de gols. Também não gosto do estilo de jogo do Thomas Tuchel, do Chelsea, e não por acaso o zagueiro Thiago Silva foi eleito o melhor do torneio.

O que me deixou mais assustado foi ver a torcida vangloriando Abel Ferreira no desembarque em São Paulo! Sério isso? Na minha época o sarrafo era outro e nem quando a gente levantava a taça o treinador saía com tanta moral! Os tempos mudaram e eu preciso urgente achar um novo esporte para assistir!

De quebra, ainda vou me livrar do “futebol reativo com arsenal de modelos e ideias de jogo para os zagueiros e volantes brucutus fazerem ligação direta buscando o atacante agudo, que ataca a segunda bola com o objetivo de chapá-la na bochecha da rede”.