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A HORA DA ESTRELA SOLITÁRIA

15 / julho / 2025

por Letícia Woolf e Sofia Castro

No Brasil, é muito difícil estar alheio ao futebol. No trabalho e na faculdade, comentam o resultado injusto do Fla-Flu; no Uber ou no táxi, o motorista escuta o jogo do Vasco; no bar, a madrugada reprisa o último jogo da Série B. Nem a jornalista e escritora Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira, foge dessa realidade. A melhor forma de evitar um silêncio constrangedor, dizem, é perguntar sobre o time. Todo mundo tem um time, até Clarice. A autora de “A Hora da Estrela”, “Água-Viva”, “Laços de Família”, entre outros livros, era torcedora do Botafogo de Futebol e Regatas.

Em março de 1968, ela expõe, pela única vez, sua relação com o esporte. O jornalista Armando Nogueira a desafia a escrever sobre futebol. Diz que trocaria uma vitória de seu time por uma crônica dela sobre futebol. Clarice rebate: se o time dele for o Botafogo, melhor não fazer isso. Na crônica intitulada Armando Nogueira, futebol e eu, coitada, a escritora revela um aspecto da sua vida até então nunca discutido – a paixão pelo clube:

“Deixe eu lhe contar minhas relações com futebol, que justificam o ‘coitada’ do título. Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo”.

Botafoguenses sempre foram conhecidos pelo pessimismo. O time pode estar ganhando de 10 a 0 e faltar cinco minutos pro fim do jogo, mas o torcedor sofre como se fosse um suado empate em 1 a 1. Como a autora mesmo diz, ela retém sua tendência ao excesso. Na verdade, qualquer torcedor apaixonado tem, de certa forma, essa tendência.

O excesso se manifesta, por exemplo, nas brigas de torcidas, nos debates acalorados, nos dramas do jogo tratados como gota d’água. Em 2008, o torcedor Luiz Fernando Vilaça tentou se jogar da marquise de São Januário após a confirmação do rebaixamento do Vasco – como se a derrota ultrapassasse o gramado e fosse tamanha a ponto de destituir a vida de sentido.

A professora de Cultura Brasileira na PUC-Rio, Luísa Melo, doutora em Literatura, acredita que a intensidade inerente à relação entre o torcedor e o objeto da sua paixão alinhava-se à veia literária e às inquietações da escritora:
“Acho que Clarice, como botafoguense, pôde viver todas as coisas. Viveu a intensidade do sentimento dela”, acredita Luísa. “O teórico Hans Gumbrecht diz que o futebol ganha essa popularidade toda no mundo justamente porque permite um pouco a gente emular a vida. Viver a metáfora da própria vida. Porque na vida as coisas não são justas ou injustas, as coisas acontecem”, acrescenta.

Clarice foi, supostamente, a um único jogo em estádio, acompanhada do filho botafoguense, com quem assistia às partidas na televisão. Ela fazia muitas perguntas. Considerava-se uma ignorante apaixonada:

“Digo ‘ignorância apaixonada’ porque sinto que eu poderia vir um dia apaixonadamente a entender de futebol”, escreve Clarice. Ela, inocentemente, comparava o jogo ao balé, com movimentos calculados, previsíveis. Neste ponto, o futebol, sabemos, é muito diferente da dança.

O futebol distingue-se também pelas conexões profundas com os torcedores. Muito da magia em torno do esporte está na torcida, nas arquibancadas. “Parte da experiência no futebol é assistir junto, vem dos elos entre os torcedores. Quando acontece um elo de família, isso se fortalece ainda mais”, comenta Luísa.

Em “A Paixão Segundo G.H.”, Clarice eterniza uma de suas frases mais famosas: “Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. O aforismo, de apelo existencial e filosófico, também pode ser atribuído ao jogo. Talvez seja impossível racionalizar experiências despertadas numa final de Copa do Mundo ou numa vitória sofrida do time do coração. Talvez seja só possível vivê-las, entrelaçadas à abertura do futebol para o improvável, o intangível. 

O Botafogo honra essa inclinação imaterial dos gramados, refletida na mística da Camisa 7 – vestida por Garrincha, Maurício, Túlio Maravilha, Luiz Henrique. Era de Jairzinho em 1968, ano do tal conto de Clarice. Mística atualizada na conquista da Libertadores 2024, com um jogador a menos na decisão desde os quarenta segundos do primeiro tempo, quando é expulso, e o terceiro gol marcado no sétimo minuto de acréscimo do segundo tempo. Clarice provavelmente consideraria essas peculiaridades da final evidências da aura mágica alvinegra.  

Convicta da predestinação, ela explora o místico em figuras como a cartomante, frequente em vários livros. A personagem Macabéa, por exemplo, busca ver o futuro com Madama Carlota, que prevê sua “hora da estrela”: nada mais do que a morte. Macabéa acaba atropelada, ao sair da consulta. Clarice revisita a ideia, central na tragédia grega, de fuga impossível do destino, já traçado.

O Botafogo conheceu, de certa forma, sua “hora da estrela”, ao deixar escapar o Campeonato Brasileiro de 2023, a coroação de uma campanha histórica no torneio. Mas, como o destino é inescapável, ganhou o título de 2024, em cima do grande rival do ano anterior, o Palmeiras.

Clarice Lispector entendia que a vida transcendia o cotidiano e se revelava nos milagres do dia a dia. O Botafogo de Clarice expressa tal perspectiva. Perde do Madureira no Carioca, vence o poderoso PSG (1 a 0), campeão da Champions, vice-campeão mundial. o PSG. Cada botafoguense deve ter sua própria explicação para a façanha na primeira Copa do Mundo dos Clubes. Um pode atribuí-la à promessa de parar de fumar, feita 20 minutos antes da partida. Outro acredita que tenha sido a graça atendida pela reza forte a São Jorge.

A superstição que acompanha a história do clube, e se manifesta nas arquibancadas físicas e digitais, aproximam as vivências do futebol da essência humana que Clarice buscava compreender. No livro “Água viva”, ela navega por sentimentos como religiosidade, solidão e medo da morte – replicados nas relações mediadas pelo esporte. A professora de Literatura da UFF compara: “O futebol é um lindo poema em prosa, no qual se comemora a vida de tudo o que, intensamente, é”.

Para milhões de brasileiros, tamanha intensidade significa, várias vezes, colocar o amor pelo time acima de outros amores. Diante da dimensão sociocultural e emocional do futebol no país, Clarice admitia certa impossibilidade de assimilar a totalidade do esporte. No penúltimo parágrafo da referida crônica, ela abre o coração:

“Então, na minha avidez por participar de tudo, logo de futebol que é Brasil, eu não vou entender jamais? E quando penso em tudo no que não participo, Brasil ou não, fico desanimada com minha pequenez. Sou muito ambiciosa e voraz para admitir com tranquilidade uma não participação do que representa vida […] É que, e não só em futebol, porém em muitas coisas mais, eu não queria só ter um passado: queria sempre estar tendo um presente, e alguma partezinha de futuro”.

Nesta avidez de participar de tudo, Clarice Lispector se tornou um dos maiores nomes da literatura brasileira e mundial. Aventurou-se por diversos campos. Foi jornalista, romancista e, como lembrado aqui, cronista esportiva. Para acentuar o misticismo botafoguense, Clarice viveu a conquista da Taça Brasil, primeiro título nacional do clube, no mesmo ano de publicação da crônica Armando Nogueira, futebol e eu, coitada. São tantas coincidências que fazem pensar: seria tudo obra do destino?

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