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Rondinelli

DE ZÉ BAIANO AO DEUS DA RAÇA

por Mauro Ferreira

O sobrenatural comunga com os deuses e, obviamente, há algo de muito sobrenatural naquele gol.

Nascido sob o signo das águas férteis de São José do Rio Pardo, Antônio José Rondinelli Tobias foi para o Flamengo ainda menino. Cunhado pelos jogos de vôlei, a natação no rio e no clube e na colher de pedreiro, chegou àGávea batizado Zé Baiano, apelido de quando recolhia areia da ladeira para que o material não se perdesse durante as chuvas.

Chegou lateral, virou zagueiro e o apelido de menino ficou sob a tutela apenas dos mais íntimos. Por exigência de quem o levou, virou Rondinelli. E só. Das divisões de base ao gol espírita, uma história carregada de emoção. Da fúria ao choro, o rastilho é curto. E a faísca brota dos olhos até hoje, quando o assunto é Flamengo. É certo que usou outras camisas, incluindo a do arquirrival rubro-negro, só que a alma veste as cores do Exu campeão do carnaval carioca.

Antever e antecipar – verbos necessários na linguagem dos zagueiros – eram especialidades da casa. Como um punguista, surrupiava a bola dos atacantes adversários assim, do nada, surgindo das sombras. E, se não desse com os pés, usava qualquer parte do corpo para evitar um gol. Incluindo a cabeça, mesmo se a bola estivesse nos pés do artilheiro, ao feitio do chute. Ainda assim, não se conseguia enxergar a entidade.

O sobrenatural comunga com os deuses e, obviamente, há algo de muito sobrenatural naquele gol.

Até que 1978 chegou. Foi um ano triste. Até o gol. Até os 42 minutos do segundo tempo de um final de ano de final de campeonato carioca. Uma lesão na coxa tirou de Rondinelli uma Copa do Mundo. E por pouco não ficou fora da decisão do carioca daquele ano. Mas, como diz o ditado, enquanto não dá certo, é porque ainda não se chegou ao fim. Ainda haveria um fim. 

Num escanteio cobrado por Zico, a bola subiu muito.Assim como Rondinelli subiu ao ataque contrariando as ordens do capitão Carpegiani para que permanecesse na zaga. Mais uma vez, surgiu do nada para encontrar a bola de Zico no alto do templo, no tempo correto para esmagá-la com a testa e acertar a coruja do gol de Leão.

Fanática e fascinada, a torcida do Flamengo teve, ali mesmo, no templo da bola, uma conversa de pé de ouvido com Zeus, reapelidou Zé Baiano e garantiu ao Olimpo o surgimento de mais um deus.

Rondinelli renascia. Agora, com novo sobrenome: 

O DEUS DA RAÇA

RONDINELLI, A ‘PEDRA FUNDAMENTAL’ DE UMA ERA RUBRO-NEGRA

“Ele é o jogador que tem alma. Isso é o que eu queria dizer: sem alma não há um grande jogador. Na decisão de 1978 contra o Vasco da Gama, ele tinha aquele impulso profético do gol. Rondinelli é um jogador de grande emoção, de grande coragem, de grande vontade de vencer, que crava no peito a estrela rubro-negra. Rondinelli é dono dessa mística da camisa rubro-negra, dono de uma torcida, de uma nação, de uma religião. Ele é o padre da religião apaixonante, ele é o ídolo de sangue da torcida”. Palavras de Nelson Rodrigues sobre o “Deus da Raça”, e é apenas o preâmbulo de uma grande história!

por André Felipe de Lima


Não é pretensão o título ali de cima. Sim, foi o zagueiro Rondinelli o responsável pelo início da maior era da história do Flamengo. Com o seu gol nos últimos momentos da espetacular final do Campeonato Carioca de 1978, contra o Vasco, Rondinelli, que hoje comemora seu aniversário, tornou-se a “pedra fundamental” de um longo período marcado pelas maiores glórias do time mais popular do Brasil.

Talvez, se Rondinelli não tivesse assinalado aquele gol, a história seria outra. Mas o “talvez” não coube na trajetória do zagueiro, que, após aquela conquista sensacional, foi elevado ao posto de “Deus da Raça” pelos fiéis torcedores do Flamengo.

Rondinelli é inesquecível para eles e para mim, um vascaíno, que sofri amargamente com aquele córner magistralmente batido pelo Zico, com endereço certo: a cabeça do Rondinelli. A subida canhestra do zagueiro na bola foi impiedosa com Leão. Que, com o seu notório “golpe de vista”, jamais imaginou que a pelota invadiria a rede cruzmaltina. Mas invadiu. E assim começou a história…

Rondinelli nasceu em São José do Rio Pardo, interior paulista, em 26 de abril de 1955, mas parece ser mais carioca que muitos que nasceram em um dos dois lados do Sumaré. Aprendeu a ser campeão desde cedo, e, obviamente, com o Flamengo. Foi bicampeão carioca de juvenil em 1972 e 73 e levantou o primeiro título profissional em 1974, o Campeonato Carioca, a primeira conquista daquela geração assombrosa.


Daquele título em diante, ver o nome de Rondinelli nas seleções da rodada dos jornais de segunda-feira era mais comum que feijão com arroz. E não havia botafoguense, vascaíno ou tricolor que torcesse o nariz para ele. O cara era bom mesmo. Logo, não escalá-lo em times da rodada corresponderia a uma perversa inveja dos rivais. Mão, portanto, à palmatória de todos, que se renderam ao Rondinelli.

Um dos seus fãs foi o técnico Carlos Froner: “É corajoso, dono de grande habilidade, bastante veloz e técnico. Bate quando acha que é preciso bater e pede calma aos companheiros na hora certa”. O gaúcho Froner sabia das coisas…

Rondinelli sempre foi um cara na dele. Tímido e avesso a elogios rasgados. Ficava vermelho quando os ouvia. Chegava a baixar a cabeça, como escreveu o repórter Luiz Augusto Chabassus, em 1976. Quem o levou para a Gávea foi o sergipano Velal, que jogou no Flamengo. Certo dia Velau (vejam só) decidiu montar uma oficina mecânica na cidade de Rondinelli. “Velal já havia trazido o Zanata (conterrâneo de Rondinelli) para o Flamengo. Fiquei muito empolgado quando, em 1970, ele disse que eu também poderia fazer testes no Rio”. Foi recebido por Jouber, que o aprovou. A família estava ressabiada. Não queria que o menino morasse sozinho no Rio. O avô Silvio (sempre ele) é quem convenceu os pais a o deixarem seguir no Flamengo.

Deveria ter crescido mimado, afinal tem quatro irmãs, e ele o único homem. Era de classe média. Estudava, mas gostava mesmo é de jogar bola. Os pais, ao contrário de muitas biografias de outros craques, não se importavam muito se o menino trocava as matinês de cinema nas tardes do fim de semana por uma pelada na rua. “Eles não ligavam para o meu interesse pelo futebol. Achavam que ia continuar estudando. Em compensação, meu avô Silvio, que já morreu, sempre procurou me incentivar”, disse Rondinelli, em 1976.

O vovô Silvio era um italiano de Luca, cidade próxima a Roma. Torcia efusivamente pelo “vecchio” Palestra Itália, e fazia questão de “doutrinar” o neto com as maravilhas de que eram capazes os craques palestrinos, como Djalma Santos, Tupãzinho, Ademir da Guia, Dudu e Servílio. “Ele queria que eu fosse um craque como eles”. Haveria de ser, sem dúvida, mas precisaria percorrer um longo caminho na Gávea.

No Rio, Rondinelli morava na concentração do Morro da Viúva com todos os meninos de sua geração de ouro, entre eles Geraldo “assoviador”. O garoto promissor do Velau, do Jouber, do Modesto Bria e do Valter Miraglia tornou-se presente em 1974. E presente em todos os sentidos semânticos e saudáveis que a impoluta palavra sugere. Rondinelli foi presente para o Flamengo, em especial. “Foi aí, no início de 1974, que assinei meu contrato de profissional com o Flamengo. Passei a ganhar 4500 cruzeiros por mês. Aluguei com o Cantarele um apartamento na Praia do Flamengo e tudo ficou melhor”. Melhor ficou mesmo para o Flamengo, que passou a contar com o mais eficiente beque da cidade.

Todo rubro-negro que se preza idolatra Rondinelli. Tanto que em muitas escalações de “times dos sonhos” do Flamengo, ele aparece lá, na zaga, “brigando” com cobras como Domingos da Guia, Reyes, Pavão e Mozer.


Em novembro de 1979, o carioca Luiz Allan de Almeida, autor do livro “Rondinelli, o Deus da Raça”, da Editora Fusão, fez uma pesquisa entre as diversas torcidas do Flamengo na época para saber quem era o maior ídolo da moçada na ocasião. “Fiquei surpreso com o resultado: ele é mais ídolo do que o Zico. Por quê? Rondinelli dá a sensação de ser amador, de jogar por puro amor à camisa, coisa que você não encontra nos outros. É disso que a torcida gosta”, declarou o apaixonado rubro-negro Allan de Almeida.

O histórico de Rondinelli permite isso. Houve um Fla-Flu amistoso em 1977 (vejam bem, amistoso) em que Rivellino tentou dar um balãozinho no zagueiro, na entrada da área, mas a coragem do beque foi impressionante. Rondinelli mergulhou nos pés do tricolor, e de cabeça tomou-lhe a bola. No final, deu Flamengo, pelo placar de 3 a 0.

“Sou sempre assim: na área, não brinco. Dou bico pra cima, para os lados, quero ver a bola sempre longe do gol do Cantarele. Agora, se der para sair jogando, sem trazer qualquer perigo para o nosso goleiro, então saio. Numa bola dividida, por exemplo, vou para ganhar. Ou paro a jogada ou saio com a bola dominada. Um adversário dificilmente leva vantagem comigo. Pensa bem: sou um dos últimos jogadores pela frente de um atacante. Depois de mim, só tem o Cantarele ou, no máximo, um jogador do Flamengo que venha na minha cobertura. E, às vezes, esse meu companheiro já chega meio vendido no lance. Então, ou ganho, ou paro a jogada. Mas sem violência. Decisão é uma coisa, violência é outra”, ensinou o craque, em entrevista realizada em 1977, com o saudoso repórter Raul Quadros.

MEU ‘MALVADO’ VASCAÍNO FAVORITO

O maior adversário de Rondinelli não foi propriamente um time de futebol. Foi um centroavante. Foi Roberto Dinamite. Os dois estiveram frente a frente pela primeira vez numa ensolarada manhã de sábado, em dezembro de 1972, decisão do Campeonato Carioca de juvenil. A peleja aconteceu no velho estádio da Gávea. O Flamengo venceu de 2 a 0 e ficou com o título. “O jogo ainda estava uma zero e o Vasco pressionava. O time deles era muito bom. O Fumanchu era o ponta-direita, o Gaúcho jogava na frente ao lado do Roberto. Sei que houve um córner, nós dois pulamos e ele me deu uma cotovelada. Quando caímos, quase rolando no chão, ele me deu uma cusparada. Nem vacilei, pisei na perna dele”.


O lance desdobrou-se em uma onda do Dinamite, que rolou no gramado, “urrando” de dor. O objetivo, claro, era convencer o juiz a marcar o pênalti. Mas o árbitro comeu mosca, ou seja, não viu o lance. Quatro anos depois, a mesma cena se repetiria com os dois quase se engalfinhando na decisão do terceiro turno do Campeonato Carioca de 76. Dessa vez o juiz viu. Era a forra do vascaíno.

“Com um minuto de jogo, o Vasco deu um ataque, e acompanhei o Roberto até a linha de fundo, protegendo a bola. Ele chutou, pensei, o juiz deu tiro de meta. Só que caímos fora do campo e tivemos um início de briga ali mesmo. O Cantarele havia batido o tiro de meta, o Renê (zagueiro vascaíno) já havia dominado a bola no meio de campo e eu, sentindo que havia levado a pior na briga, parti pra cima do Roberto, dando-lhe uma cotovelada. O Agomar (juiz Agomar Martins, que passou a cantar bolero em Porto Alegre) estava em cima do lance e deu o pênalti”.

Roberto recordou a jogada, e descreveu o final: “Bom, assim que levei a cotovelada, me atirei no chão. Era o que tinha de fazer, pô!, já que estava na área do Flamengo e o pênalti beneficiaria o Vasco. O Rondinelli ficou mais bravo ainda e disse ao Agomar que ele teria de nos expulsar, não marcar o pênalti. Bom, acabei batendo o pênalti e fazendo o gol”.

O jogo terminou 1 a 1, com Geraldo descontando para o Flamengo. Na decisão por pênaltis, o Vasco derrotou o adversário. Consumou-se, portanto, a doce vingança do Dinamite.

Os jogos entre os dois sempre foram encarniçados. Dava gosto assistir Vasco e Flamengo no Maracanã; Roberto e Rondinelli se enfrentando era um colírio. Os dois hoje são bons amigos. A indispensável rinha dos gramados ficou no passado. Sem ela, afinal, o futebol fica insosso. Quando conseguem se encontrar para uma resenha, os dois riem de tudo. Inclusive das brigas e catimbas que fazem parte do dia a dia dos boleiros.

Sobre Rondinelli, Roberto sempre dizia: “É, sem dúvida, um dos maiores zagueiros que conheci. Provavelmente, o mais difícil de ser vencido”. Rondinelli costumava retribuir a gentileza do adversário e grande parceiro de histórias do Clássico dos Milhões: “Dificilmente ele vem com a bola dominada e, quando isso acontece, sai de baixo. Seu estilo é de jogar mais fixo, dentro da área. Qualquer vacilada, ele enfia a cabeça, mete a perna, o gol está feito. Por isso, eu procuro sempre me antecipar”.

Rondinelli foi sempre muito leal. Mostrava a sola dos pés, às vezes, claro. Mas qual zagueiro não bate às vezes? Zagueiro em campo abstrai qualquer laço afetivo, e parte para dentro de qualquer atacante metido a besta. Durante uma boa peleja não pode ser diferente. Futebol é arte, mas também tem lá sua dose de arrojo. Sem essa combinação, fica difícil sair do gramado com a vitória. Rondinelli dominava esse equilíbrio. Por isso, com ele na zaga, o Flamengo ficava mais tranquilo e as taças eram erguidas.

O sonho do velho Silvio se concretizou. Rondinelli foi mais que um craque. Um deus guerreiro dos rubro-negros. O “Deus da Raça”.

HÁ 40 ANOS, UM MENINO SENTIU-SE CAMPEÃO PELA PRIMEIRA VEZ

por André Felipe de Lima


(Foto: Sebastião Marinho)

Tinha apenas nove anos. Mas a memória é feliz. E vivaz! Detalhadamente, posso descrever aquela noite de 28 de setembro de 1977 em que, com ouvido de elefante, sem nada perder, permaneci imutavelmente colado ao rádio. Um tempo em que fazia dos saudosos locutores Jorge Cury e Waldir Amaral meus amigos inseparáveis nas tardes de domingo ou noites de quarta (como aquela) e quinta-feira. Televisão era artigo de luxo. Não pude assistir à final daquele inesquecível Campeonato Carioca de 77, entre Vasco e Flamengo. Não tinha TV. Aliás, tamanho é meu desapego por TV que sequer lembro se houve transmissão ao vivo daquela peleja. Acho que um replay da TVE, com narração do grande Zé Cunha, foi o que sobrou. Essa é, infelizmente, a única informação que não recordo com precisão daquela noite de quarta-feira. Tampouco meu pai tinha dinheiro para levar-me ao Maracanã. Tempos difíceis que (esses sim) não gosto de lembrar. Tirando o Vasco, 1977 não foi um ano bacana.

O Vasco, esse sim, já havia me comovido no ano anterior após perder a final para o Fluminense. Decidi ser vascaíno ali, na ferida derrota. Heroicamente, pensava com cabeça de menino. Senti-me tão bravo quanto os jogadores vítimas da cabeçada à meia boca do Doval. Superei o fato e o dissabor do que considerei uma das maiores “injustiças” na minha vida de menino. O Vasco era minha alegria com figurinhas e botões. Decidi, em meio à derrota de 76, seguir em frente com o meu universo lúdico… e vascaíno.


Em 77, decerto pensava, seria diferente de 76. E foi mesmo. Fui campeão. “Atenção, vai bater Roberto. Roberto correu… gooooooooooooooooooool! Vasco da Gama, campeão carioca de 1977”, narrara Jorge Cury — o dos incomparáveis “gols” que pareciam jamais acabar — o derradeiro lance daquela que foi a cobrança de penais mais emocionante da minha vida. Isso, há exatos 40 anos. Na próxima quinta-feira, dia 28, faz 40 anos que curti para valer a minha primeira festa de campeão. Aquele título significa uma redenção em um ano tão atribulado como foi 1977.

Revivi dias atrás essa memória linda. Foi muito emocionante, mesmo que por telefone, conversar com os dois melhores jogadores daquela noite memorável: o volante (e capitão vascaíno!) Zé Mário, eleito quase que unanimemente o melhor jogador da final e do campeonato, e Rondinelli, o “Deus da Raça” do Flamengo. Ambos foram decisivos para que o jogo no tempo normal e na prorrogação terminasse 0 a 0. “Nos últimos três jogos do Vasco, quem ganhou o Motoradio fui eu”, recolheu para si o Zé Mário a pecha de craque da final. O que inegavelmente aconteceu. Zé Mário foi estupendo, do início ao fim da campanha invicta do Gigante da Colina. Justiça seja feita, o maioral.

“Mengão x Vascão – Morou?”, estampava a primeira página do Jornal dos Sports na manhã do dia da decisão. Ao Vasco, bastava a vitória para conquistar o segundo turno e levar a taça do ano. Ao Flamengo, só a vitória interessava para conquistar o turno e provocar uma final arrebatadora, que envolveria também o Fluminense e a sua “Máquina”, com Rivelino e afins.


Os rubro-negros contavam, evidentemente, com a efusiva e loquaz torcida dos tricolores. O cartola Francisco Horta até ameaçou ir ao Maracanã com a camisa do clube da Gávea. Prudente, desistiu da ideia de jerico pouco antes de o jogo começar. Mais sensato foi o Nelson Rodrigues, outro incansável tricolor, que de uma janela, na véspera do jogo, reverenciou o crepúsculo na Lagoa Rodrigo de Freitas. “Não estava li como paisagista”, escreveu. “Naquele momento, eu pensava no Vasco x Flamengo”. Não poderia ser diferente. Toda a cidade só pensava nisso. Os tricolores ainda mantinham uma vã esperança de entrarem na briga pelo título em triangular final. Não passou de vã esperança mesmo. Irônico, o cartunista (e rubro-negro!) Otelo Caçador não poupou o Horta: “Se o Flamengo vencer, o Horta vai ganhar bicho?”. Não deu para o Fluminense. Não deu para o Flamengo. Não teve bicho para ninguém da dupla Fla-Flu.

Que dia. Que noite. Não há como esquecer as horas que antecederam ao duelo de gigantes em um Maracanã que comportaria bem mais de 150 mil pessoas. Zé Mário e Rondinelli contaram os detalhes do jogo. Ambos não conseguiram, contudo, recordar que, por exemplo, a concentração do Vasco foi aberta aos torcedores e sócios enquanto a do Flamengo seguiu a mão inversa. Certamente, a vitória vascaína começara ali, ou seja, na democrática abertura dos portões ao povo. Também não veio à memória de ambos que os dois times trocaram, inesperadamente, de vestiário. A sugestão partira, como noticiaram, do massagista Santana. Teria sido mais um “trabalho” de fé do “Pai” Santana para favorecer o Vasco? Assim especularam os jornais na ocasião, e parece que os “despachos” do velho pai de santo deram certo.


Aquele redentor Vasco e Flamengo definitivamente jamais sairá da minha cabeça. Da cabeça do menino que pela primeira vez na vida sentiu-se merecidamente campeão.

***

HÁ 40 ANOS: VEJA O QUE ZÉ MÁRIO E RONDINELLI RECORDARAM DAQUELE JOGÃO ENTRE VASCO E FLAMENGO

***


Zé Mário: “Tenho noção de quanto fui importante naquele jogo. Realmente fui o destaque”

ÍDOLOS — Além do prazer incomparável de levantar a taça de campeão de 77, que mais chamou sua atenção naquela noite, no Maracanã e por quê?
ZÉ MÁRIO – O Maracanã estava lotado. Realmente foi uma festa muito grande das torcidas. O Vasco mereceu o título por tudo que fez.

ÍDOLOS – Havia carros estacionados até nos arredores da Quinta Boa Vista. Uma verdadeira multidão. Como você compara os grandes jogos daquela época com os de hoje, no Maracanã?
ZÉ MÁRIO – A segunda coisa mais importante de uma partida de futebol é a torcida. A primeira, logicamente, é o jogador. Acho que futebol sem torcida perde o brilho. Antigamente os clubes viviam de bilheteria hoje vivem da TV. Em longo prazo, acho que haverá uma falta de motivação dos jogadores. A torcida empurra os jogadores. Eu ficava alegre quanto tinha muita gente assistindo o jogo na arquibancada.

ÍDOLOS – Um fato curioso naquela noite, nas arquibancadas: havia bandeiras do Botafogo na torcida do Vasco e do Fluminense na do Flamengo. Esse tipo de, digamos, “harmonia” e “parceria” nas arquibancadas não existe mais por que motivo?
ZÉ MÁRIO – Quando inventaram as Organizadas mudou a maneira de torcer. A arquibancada ficou violenta. Não dá para levar a família. O torcedor individual não briga. Só quando se organizam e saem fazendo baderna. É crime organizado infiltrado.

ÍDOLOS – O Jornal do Brasil assim destacou sua atuação naquela inesquecível noite: “Zé Mário: A eficiência costumeira. Protegeu a entrada da área e procurou deslocar-se sempre para receber a bola”. Já o jornal O Globo foi categórico: “Zé Mário, a perfeição no combate, mas uso e abusou das faltas. Mas todas necessárias e sem qualquer deslealdade. Fechou a entrada de sua área, cobriu os dois lados e chegou a fazer alguns lançamentos. Nota 10”. Você concorda com as análises?
ZÉ MÁRIO – Concordo. Tenho noção de quanto fui importante naquele jogo. Realmente eu fui o destaque. Não quer dizer com isso que levei o time nas costas. Todos foram excelentes, mas eu me destaquei um pouco mais.

ÍDOLOS – O mesmo jornal diz que Zanata estava fora de forma física e não esteve bem no dia. Helinho, que entrou no lugar dele, não alterou muito o panorama na posição. Você sentiu-se mais sobrecarregado para defender a cabeça de área e até mesmo poder distribuir o jogo na meia cancha? Afinal, já era suam missão ao longo da campanha cobrir os avanços do Orlando e do Marco Antônio, os dois laterais…
ZÉ MÁRIO – Não fiquei sobrecarregado porque se o Zanata estivesse realmente fora de forma ele fatalmente colocaria a experiência para fora. Era um grande jogador e companheiro. Sinto muitas saudades dele.

ÍDOLOS – Sua função era frear os avanços e armações do Zico e do Adílio. Foi essa a instrução do “Titio” Fantoni?
ZÉ MÁRIO – O Flamengo tinha um timaço. Estávamos preparados para frear qualquer jogada deles. É claro que o Zico e todos os outros eram perigosos e por isso dobramos a cautela e fomos mais felizes.

ÍDOLOS – Houve um lance, se não me engano aos 10 minutos da primeira etapa, você deu uma entrada no Zico, que definia você como um dos principais responsáveis pelo Vasco não tomar gols. A imprensa achou que você exagerou no lance. Você recorda a jogada? Poderia detalhá-la?
ZÉ MÁRIO – Eu nunca fui expulso de campo e deixei de jogar poucas vezes por cartão amarelo. Não me lembro da jogada em si, mas sempre entrei duro nos adversários, mas sempre com lealdade. Não tinha como querer machucar o Zico que é meu afilhado.

ÍDOLOS – Houve outro lance antes mesmo da dividida com o Zico. Foi aos quatro minutos. Você salvou o Vasco ao tirar uma bola em cima da linha, quando Mazaropi pegou uma bola chutada pelo Zico, mas largou-a praticamente nos pés do Osni (se não me engano), que, sem ângulo, centrou para área. Toninho, de bico, chutou com o gol vazio. Poderia falar mais sobre a jogada?
ZÉ MÁRIO – Me lembro também de ter salvado um gol desse tipo quando jogava pelo Flamengo num jogo contra o Vasco. Paguei com a mesma moeda dessa vez. (risos)

ÍDOLOS – Como o time reagiu ao desfalque de Ramon?
ZÉ MÁRIO – Ramon era a nossa válvula de escape pela esquerda enquanto o Wilsinho era pelo lado direito. Qualquer um que não jogasse, sentíamos falta. Só que também tínhamos reservas à altura que quando entravam davam conta do recado. Portanto sente-se a falta porque cada jogador tem a sua característica e é preciso entendermos isso para amenizar a troca.

ÍDOLOS – O que mais você lembra daquela noite, Zé Mário? E o dia seguinte?
ZÉ MÁRIO – Só felicidade. Comemoramos bastante. Não só pelo último jogo, mas pelo conjunto da obra. Foi um campeonato irrepreensível. O grupo todo comprometido por um objetivo.

***
RONDINELLI SOBRE DINAMITE: “ELE ERA UMA FIGURINHA CARIMBADA, COMO EU TAMBÉM ERA PARA ELE”


ÍDOLOS – Zé Mário e você foram os únicos jogadores elogiados pelos jornais como os melhores em campo. O jornal O Globo escreveu, por exemplo, que você “foi perfeito do início ao fim. Nota Dez”. O jornal exaltou a célebre jogada em que você pegou a bola na zaga do Flamengo e conduziu-a até bem próximo da área do Mazaropi, sendo parado somente com falta.
RONDINELLI – Foi entusiasmo. Tínhamos, inicialmente, o comportamento de se defender. Nunca fui jogador de alta técnica, mas era de jogadas de antecipações por baixo e por cima. Recentemente, emocionei-me assistindo a um vídeo de algumas dessas jogadas. Eram bem positivas. Só a vitória contra o Vasco interessava naquela noite. O empate não era nem um pouco favorável a nós, do Flamengo. As minhas arrancadas teriam de ser bem precisas. Tive de arrastar uns três ou quatro jogadores para criar a jogada. Isso, na vontade, no arranque para entusiasmar nossa equipe para criar uma chance concreta de gol.

ÍDOLOS – O que mais te emocionou naquela noite em que o Maracanã acomodou para lá de quase 200 mil pessoas? Não teria sido aquela derrota de 77 que mexeu com o brio da sua geração para que desse a volta por cima no ano seguinte, conquistando o título com um gol seu de cabeça?
RONDINELLI — Até o título de 78, foi uma sequência de derrotas para o nosso maior rival. O Vasco mantinha defesas sempre bem postas e excelentes goleiros, como o argentino Andrada e o próprio Mazaropi. Para a disputa de pênaltis de 77, o time do Vasco tinha excelentes jogadores. Eram jogadores da defesa que, igualmente aos do Flamengo, empurravam seu time. Era o caso do Orlando, do Abel, do Geraldo e do Marco Antônio. Aí tinha o Zé Mário, Zanata e…

ÍDOLOS – Dirceuzinho…
RONDINELLI – Ah, era o Dirceuzinho! Isso. Ponta-esquerda.

ÍDOLOS — Ele caía mais por ali mesmo naquele jogo por causa do Paulinho, que jogou no lugar do Ramon.
RONDINELLI — Isso mesmo. Tinha o Wilsinho na ponta-direita e aí a fera, o Roberto Dinamite. O técnico era o Orlando Fantoni. Tanto aquela geração do Vasco quanto aquela do Flamengo foi valorizada por ter jogado para duas grandes torcidas, que compareciam sempre. Era outra época. Hoje, as torcidas dos clubes saem na porrada. Antigamente eu saía do Maracanã, morava na Tijuca, saía no meio das duas torcidas. As duas torcidas saíam juntas. Sem problema nenhum. Os torcedores rivais entre si se elogiavam. Era muito mais a gozação e o bate-papo no boteco. Essa é a maior emoção: ter jogado para esses quase 200 mil torcedores.

ÍDOLOS – O Cláudio Coutinho estava nervoso naquele dia e na concentração? O que lemos nos jornais da época é que o treinador do Flamengo estava muito tenso. Havia o jogo em si e a seleção brasileira sob seus cuidados…
RONDINELLI – Com toda a sinceridade, o “Capitão” Cláudio Coutinho fazia preleção antes de qualquer partida de forma muito tranquila. Ele pode, sim, ter ficado um pouco mais acelerado em relação ao que ele estava assumindo na seleção. Nunca vi uma pessoa com postura tão tranquila como ele, que tinha como braço direito que acompanhava os jogos o Jairo dos Santos, uma pessoa maravilhosa que passava todo o mapeamento da equipe adversária para ele. Na parte psicológica, ele falava que no futebol você tem de ser primeiro boxeador. Ao dar uma porrada no adversário, não recua, não. Nunca o vi nervoso dentro ou fora do vestiário.

ÍDOLOS – Você marcou quem naquele jogo de 77?
RONDINELLI – O ponto forte do ataque do Vasco sempre foi o Roberto Dinamite. Falta perto da área era com Roberto; os cruzamentos do Dirceu, que Deus o tenha; as enfiadas de bola do Zanata, inteligente pra caramba… a minha preocupação sempre foi, e isso o “Capitão” alertava: ‘Rondinelli, não perca o olho do Roberto!”. Roberto, por quê? Ele sempre foi um pouco mais alto do que eu. Ele usava muito corpo e braço. A determinação que sempre me deram era a de que eu não poderia marcar bobeira com o Roberto. Se você, como zagueiro, impede um atacante de fazer gol, você já é um vitorioso. O jogo terminou 0 a 0. Tanto eu quanto o Dequinha [companheiro de zaga na final de 77] tínhamos essa preocupação com ele. Olhe, vou falar uma coisa para você: começava o jogo, vou defender o meu espaço. Não vou ficar convidando o Roberto Dinamite pra desfilar na Beija-Flor no carnaval e nem vou deixar ele me convidar porque sei que ele estaria tentando me desestabilizar psicologicamente.

ÍDOLOS – Rolou isso naquela final?
RONDINELLI — Ah, ele adorava fazer isso. O Roberto adorava tira a atenção da gente (Risos). Mas eu sabia: “Ô, Roberto, é outro papo, cara”. Não poderia entrar na pilha dele. Tanto que tem um registro comigo, de uma penalidade, no começo de um jogo, acho que aos dois ou três minutos do primeiro tempo e valia pelo campeonato nacional de 76 ou 77, com o Roberto já me perturbando. Ele conseguiu me tirar do sério. Verbalmente, ele te provocava. Conhecia Roberto desde 72 ou 73, das finais de juvenis que fizemos juntos. Ele era uma figurinha carimbada, como eu também era para ele.

ÍDOLOS – Vocês dois travaram duelos memoráveis na história do clássico Vasco e Flamengo.
RONDINELLI – Essa palavra que você usou é realmente a correta: memoráveis! Mas duelos com respeito de um com o outro. Ele saía de campo vitorioso, eu também, mas tudo na maior normalidade.