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Mauro Ferreira

A PELADA COMO ELA É

por Mauro Ferreira


A pelada não tem sobrenome. Só permite apelidos, carinhos, abraços, sorrisos e resenhas. A pelada, hino da alegria, só se permite no terreno do improviso, usa a bola como pretexto e tem no encontro sem desencontro – salve Vinícius – sua sustentação.

E a pelada foi homenageada. Deveria ser, tinha que ser. Boleiros, artistas, cronistas, gente importante e outras gentes tão importantes pra ela, embora léguas distantes dos holofotes, se reuniram bem debaixo do Cristo Redentor para saudá-la em livro.

“A Pelada Como Ela É”, livro de Sérgio Pugliese, conta e transforma em história a raiz do futebol. Virou tatuagem na tarde de segunda, 20 de dezembro de 2021 – guardem essa data, meninos -, a sua estreia antes de ir pras prateleiras das livrarias. Mais de 700 peladeiros deram o ar da graça com muita graça, sorrisos, gargalhadas, resenhas, surpresas… era a energia suprema dos boleiros, presentes para levar seu quinhão de resenha em forma de autógrafo e dedicatória.

Era gente que não se via há tempos; alguns, um intervalo de quase 40 anos. Era pra começar às cinco da tarde; às duas já tinha gente atrás do livro. E o espaço do Pizza Park da Cobal do Humaitá, foi enchendo. Muitos em fila, outros em mesa dentro, personagens em mesas fora. Todos rendidos ao prazer da resenha, o melhor produto da pelada. E rendeu conversas até quase uma da manhã.

Presentes para o autor foram vários. De cachaça a chuvisco. O maior de todos, a presença de todos. Para a pelada, sem dúvida, o presente foi a resenha coletiva, a maior da história. E é por isso – só por isso – que A PELADA É COMO ELA É

PELÉ – RABISCOS

por Mauro Ferreira


Rabiscos. A majestade foi construída sobre rabiscos. Toda ela. Rabiscos escritos por duas pernas, cada qual equipadas com meiões e chuteiras. Desenharam a graça e deixaram sem graça os atrevidos, os tais beques. Mal sabiam, estavam ali para servir de guia; “por aqui, não; por aqui, sim”. E o desenho sempre desenhava um espetáculo. E foram muitos. Muitos e em variados quadros verdes, verdinhos e às vezes, nem tão verdes assim.

Até que alguém resolveu rabiscar sobre o rabiscado e contar com letras as obras de arte. E assim, foram espalhando aos quatro cantos e a todos os outros espaços que não cantos, as maravilhas, as proezas, todos aqueles rabiscos geniais. Primeiro, com letras; depois, vozes cantando letras. Até as imagens surgirem para mostrar o zigue-zague de um balé sem linóleo. Palcos abertos, plateias silentes substituídas por gentes. Gentios, gentalhas, qualquer um. O que importava? O que importava? Importava assistir aquelas pernas, aqueles pés rabiscando e rabiscando… e urrar de prazer, obra pronta, impressa na memória. Na arena-teatro, o artista fazia da ponta da chuteira, sua ponta de pincel.

Arte tamanha, tão grande a ponto de interromper uma guerra, a maior manifestação do ódio humano. Talvez, porque o artista nada tem de humano. O maior artista do século. Perdão. O maior artista dos séculos. Sua majestade, primeiro e único.

Humilde, engraçado, solicito, gaiato, PELÉ, o artista maior, o Rei Uno, soberano sobre todos, disse love, love, love. No dia do seu aniversário, majestade, a plebe encantada repete:

WE LOVE YOU,

PELÉ!

CHEIRO DE SAUDADE

texto: Mauro Ferreira | fotos: Marcelo Tabach

O velho Zarani foi jogar futsal em outras bandas. Peladeiro nato, daqueles que perde o casamento do irmão, mas não perde a pelada, o jornalista Newton Zarani, 39 anos de Jornal dos Sports e primeiro jogador federado de futebol de salão do mundo, foi chutar a bola pesada em bandas extraterrestres na madrugada fria desse 11 de maio de 2020. Quis o destino que esbanjasse  sua“catiguria” nas quadras terráqueas até os 82 anos e frequentasse a do Club Municipal diuturnamente, até os 93.

Cobriu quase todos os esportes ditos amadores, mas foi no basquete e no futsal que “sentou praça”. Era o colo de muito “foca” – e o esporro, também. Todos eram acolhidos com carinho; no primeiro vacilo, assanhamento, um chega pra lá sutil derrubava o aventureiro do seu pedestal recém construído. O melhor de Zarani, era o Zarani. Escrevendo, jogando, convivendo. Não à toa, uma legião de seguidores chora sua ausência, mal ergueu a mão esquerda num adeusinho unido ao seu indefectível sorriso de canto de boca. Como definiu um estagiário observador o sorriso mais não-sorriso do mundo.


É, velho, seu legado é muito mais extenso do que você e seus filhos imaginavam. Mais infinito que o próprio infinito. Se você pensou em  morrer, pensou errado. Taí uma coisa que sua teimosia não vai conseguir. Como Getúlio – sem a política e o desatino do Getúlio -, você saiu da vida pra entrar para a história. E foi além. Impregnou em todos com quem conviveu um cheiro peculiar:

O cheiro da saudade!

ARTISTAS DA RUA FUTEBOL E REGATAS

Contar, cantar, dizer, escrever, lutar, resistir, Aldir. Aldir Blanc era um verbo, sim senhor. Verbo do cotidiano. E no cotidiano do Rio de Janeiro, da sua Vila Isabel querida, da sua Rua dos Artistas (coincidências não existem), não haveria de faltar a pelada, não haveria de faltar o time da rua. A crônica a seguir é… é o que vocês quiserem que ela seja, assim como a pelada é o que se quer que ela seja.

Aldir era – era, vírgula – É CRAQUE!

 

Uma crônica de ALDIR BLANC


Foi num domingo desses em que a gente fica na porta do buteco encarnando no alheio, fazendo psiu pra mulher boa, soprando que ela era a nora que mamãe sonhou, se verde é assim que dirá madura, qual o telefone do au-au, lembrando samba na caixa de fósforos, disputando batida no palitinho… Foi num domingo assim.

– Rua sem time não é rua de respeito.

Pronto. Penteado falou, tá falado. No segundo seguinte, tinha gente escolhendo o nome da agremiação, bolando as cores da camisa, o desenho da bandeira, pensando nas coxas da futura madrinha “do onze“, e a Sede? Vamos correr a lista pela vizinhança, a maior atividade. Bom, despontou, de Vila Isabel para o mundo, o Artista da Rua Futebol e Regatas, ARFR, embora nego ali só remasse em dia de enchente ou porre total. Vai ver foi esse o motivo da Sede ficar no buteco mesmo. A camisa era rubro-negra-tricolor-anil-amarela, com uma cruz de malta roxa no peito, porque a maioria, modéstia à parte, era Vasco. Pramadrinha, Isolda, a da saia justa, musa pra Parnaso nenhum botar defeito. E, escolhidos a dedo os que levavam jeito, a ADEG informa: no gol, osso duro prointernacional Daniel da Ponte Nova, o Ceceu Rico, que não gostava de festa, atuando de boina basca, óculos raibam, suéter carinhosamente tricotado pela vovó Odete, bermudas cáqui, meias soquete e sapatos sociais, numa das mãos um programa de corridas de cavalo e na outra um taco de sinuca, esportes que, no sábio dizer do Ceceu, estão sempre presentes. Atrás da baliza, uma garrafa da famosa Não pode ser 1 x 1.

Passemos à zaga, estilo antigo: Esmeraldo Simpatia é Quase Amor e Pelópidas, a tranquilidade em pessoa, que a posição exige isso. No meio-campo, coisa de deixar o grande Danilo boquiaberto, atuavam Bimbas, Penteado de centeralfe – a mais ilustre posição que o futebol conheceu – e o Mudinho. Pra finalizar, o tenebroso ataque: WaldyrIapetec, Tuninho Sorvete, Laindauro, Ambrósio Gogó de Ouro e…

Pois é. Não tinha ponta-esquerda. Por incrível que pareça, ninguém na Rua dos Artistas pegava firme com a canhota. A discussão foi uma zona. Parecia a Câmara, o Senado, por aí. Até que lembraram de um cara da Gonzaga Bastos que calçava 44 e se intitulava Canhoteiro I, mistura de canhoto e canhão, cheio de banca.

– Canhoteiro I porque lá no São Paulo tem outro. É apenas o II.

Trouxemos a fera. Contrato fabuloso pra época: ele cumpria o dever na ponta, e a gente pagava a despesa de bar depois do jogo.

E assim, com uma senhora camisa de sete cores e uma bandeira onde se destacavam duas garrafas cruzadas sob o bonde 74 bordado à mão, estreamos, ARFR, em Cachambi. O time dos hôme tinha uma retranca bem armada: canivete, peixeira, garrucha… madeira de dar em doido. A menina-dos-olhos da torcida local era o Chanca, lateral-direito.


Um 0 x 0 desses de arrepiar. Com uns trinta minutos do segundo tempo, sem ainda ter encostado o pé na bola, Canhoteiro I gritou dá e foi lançado por nosso fabuloso centeralfe. O ponta e seu marcador lutaram pela bola – a socos e pontapés – mas nosso atleta conseguiu centrar.

Lindauro entrou de cabeça e faturou. Devido ao calor da luta, Chanca e Canhoteiro caíram num buraco, no meio de um capim alto tipo estupro e só regressaram dez minutos depois.

Chanca apareceu meio sem graça, cheio de marcas roxas no pescoço e, atrás, com um rebolado estranhíssimo e uma flor na boca, vinha o Canhoteiro I, que, ao entrar em campo, todo rasgado, deu vários passos de balé. Pra vergonha do Artistas da Rua Futebol e Regatas, nosso craque foi expulso em seguida por ter tacado um beijo de língua no goleiro adversário. Passando pelo bandeirinha, o tresloucado ciciou:

– Sai Canhoteiro I, nasce uma estrela.

Apesar do vexame, e com um homem a menos, CeceuRico e a caninha seguraram, com defesas milagrosas, a vitória. E, no finalzinho, quase que o Penteado enfia outro de patinete, jogada de sua criação que iludia totalmente os adversários, troço de circo.

A vitória foi muito comemorada na sede. Nada empanou o brilho da festa. Nem mesmo a chegada de Canhoteiro I de braço dado com o Chanca.

Ainda levamos bem uns cinco jogos com a boneca na ponta, antes dela viajar pra Europa com o espetáculo de travestis “Brazil Salvaguardas Follies”.

Não tínhamos adversários. Inacreditável o rendimento daquele ataque. Que, por exigência do próprio ex-Canhoteiro I, era anunciado assim: Waldyr Iapetec, Tuninho Sorvete, Lindauro, Ambrósio Gogó de Ouro e Viveca Lindfors. 

A natureza humana é um mistério

 

  

Crônica extraída originalmente do livro Rua dos Artistas e arredores, editado e lançado pela editora CODECRI em 1978

 

BEBETO: MUITO ALÉM DO SEU PRÓPRIO TEMPO

por Mauro Ferreira


Naquela noite, o time de vôlei do Municipal tremeu. Clube da zona norte do Rio de Janeiro, não era páreo para o Botafogo, com mais da metade de seu elenco inteiro convocado para a Seleção Brasileira. Mas, o destaque dos destaques era seu levantador. Sobrinho de João Saldanha, atrevido como o tio, Bebeto (ainda não havia incorporado o “de Freitas”) era um mágico. Era o tempo em que o vôlei tinha regras muito distintas das atuais. Naquela época, havia a vantagem e o ponto só acontecia após o saque ser confirmado. O set era de 15 pontos, embora muito mais longo. Mas o que consagrava Bebeto era o bloqueio valer como toque. O levantador precisava dominar os fundamentos manchete e toque com precisão. Precisava colocar a bola na pinta para os atacantes, sem cometer dois toques ou condução. E aí, Bebeto sobrava.


O jogo contra o Municipal naquela noite foi um passeio. Três sets a zero, parciais de 15/1, 15/1 e 15/0. Do massacre botafoguense ficou na memória um lance: o ataque explodiu no bloqueio, e a bola ia cair atrás dele, sem peso, mansa. Bebeto então surge, rola e se posiciona embaixo da bola que estava a menos de um metro de distância do chão. Com um toque preciso faz o levantamento para Paulão, ponta-atacante do Botafogo. Do outro lado da quadra, o levantador do Municipal estava estático. Não montou o bloqueio duplo para evitar o ataque de Paulão. Ainda olhava para Bebeto, admirando aquele ser do outro mundo.

O tempo passou. Enquanto Bebeto incorporava o “de Freitas” e assumia o cargo de treinador da Seleção Brasileira de Vôlei, o levantador do Municipal era agora jornalista esportivo. Assim como antes, Bebeto de Freitas inovava. Ao perceber que tinha jogadores mais baixos que seus principais adversários, apostou num jeito brasileiro de jogar, incorporando a velocidade asiática no ataque e o posicionamento mais dentro de quadra das escolas soviética e polonesa. Aliou a isso, a inventividade de seus jogadores. Foi com ele que Bernard trouxe da praia o saque Jornada nas Estrelas e William o Viagem ao Fundo do Mar. Foi também de Bebeto a ideia de bloquear o saque adversário. 


O Brasil, até então mediano no cenário mundial do Vôlei, passou a protagonista, conquistando a medalha de prata na Olimpíada de Los Angeles. Era ele o técnico na vitória sobre a até então imbatível União Soviética de Savin e Zaitsev, no Maracanãzinho, por três sets a dois (2/15, 15/13, 15/12, 13/15 e 15/7), partida que durou três horas e meia. Era a final do Mundialito realizado no Rio, dois anos antes dos Jogos Olímpicos. Ali, naquela quadra, naquele 25 de setembro de 1982, começava a hegemonia brasileira. Um ano depois, de novo contra a União Soviética, a histórica partida no Maracanã, debaixo de um público de mais de 90 mil pessoas e uma chuva torrencial. Mais uma vitória brasileira, dessa vez por três sets a um.


Bebeto formou uma gangue de exímios levantadores. William, Bernardinho, Maurício, Ricardinho (a quem classificava de genial), Marcelinho… todos têm no seu DNA cadeias genéticas transferidas pelo treinador. Bernardinho é o que mais se aproxima. Não pela qualidade técnica de jogador, mas pelo confessado aluno que foi. “Eu sentava ao lado dele no banco para aprender. Não era o titular da seleção e dei sorte. Suguei o que podia”, disse uma vez. Mas era o titular do time da Atlântica-Boavista, equipe profissional também dirigida por Bebeto e bancada pelo mecenas Antonio Carlos de Almeida Braga, o Braguinha, dono da gigante corretora de valores da época,. Saiu da seleção ao brigar com Carlos Arthur Nuzman, então presidente da CBV, e seu antigo companheiro de time, no Botafogo. Bebeto foi para a Itália provocar nova revolução e transferindo a hegemonia do leste europeu para o vôlei italiano. Por aqui, seus discípulos Radamés Lattari Filho, José Roberto Guimarães e Bernardinho tratavam de dar continuidade ao seu trabalho de fazer o Brasil liderar o vôlei mundial

Inquieto e apaixonado pelo Botafogo, Bebeto se meteu no que classificou de “a pior fria da minha vida”. Assumiu a presidência do clube e, com uma administração corajosa – e também controversa – imprimiu nova imagem, marcada, principalmente, pelo arrendamento do Estádio Nilton Santos. As constantes brigas internas no Botafogo – o gênio do tio Saldanha era uma de suas características de comportamento – fizeram com que se afastasse do clube. Um dia, chorando, disse: “eles não sabem o quanto eu amo o Botafogo. Eles não sabem”. 

Inquieto, inovador, brigão, carinhoso, exigente, amoroso e genial, Bebeto de Freitas morreu. Aos 68 anos, um ataque fez seu coração enorme parar de bater. Fazia o que mais gostava: inovar. Trazia para o Atlético Mineiro um time de futebol americano, um projeto pronto, sem custo e vencedor, como afirmou em entrevista coletiva, minutos antes cair ao chão no Hotel da Cidade do Galo. 


Bebeto não deixa vazios. Seu legado é imenso e sempre foi prazeroso para ele transferir conhecimento. Parafraseando Getúlio Vargas, Bebeto de Freitas saiu da vida e entrou para a história. O vôlei brasileiro é o que é, hoje, por sua culpa.

Em tempo: o levantador do Municipal que assistiu atônito aquela obra de arte produzida por Bebeto era eu.