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Marcelo Mendez

O BLUES DO RESERVA DA VÁRZEA

por Marcelo Mendez


(Foto: Rogério de Moura)

De todos os personagens que formam o maravilhoso universo do futebol de várzea, um dos que mais me chama atenção sem duvida é o do reserva:

O reserva de futebol de várzea.

Se no mundo glamoroso do futebol profissional ele já é secundário, imaginem, amigos leitores, como seria nos terrões. Que shakespearianos são os nossos amigos que sentam ao banco de nossos times varzeanos. Já começa a diferença por aí; O banco.

Nada de estofados, nada de coberturas de acrílico, nenhum conforto, nada do tipo. Na várzea, salvo raras exceções, o espaço é um coberto de concreto, uma típica “casinha”, com uma pedra dura para sentar. Algumas vezes com muita sorte, pode ter alguma sombra, mas, maioria das vezes, a dita casinha fica de frente para um sol absurdamente quente.

Quando as equipes adentram o campo, vem o blues da coisa. Enquanto os titulares, posudos, munidos de toda a sorte de caneleiras, chuteiras coloridas e outras mandingas do estrelato varzeano ocupam a cancha, aos reservas sobra o total anonimato. Poucos são os que observam.

De rosto colado no alambrado, o torcedor não se interessa muito em sequer olhar para aquele reservado rústico que os espera. A eles, quase se esquece de dar nomes.

– Ô 18, como você é ruim!  

– Fulano, onde você arrumou esse camisa 15 aí? Ta doido, que cara ruim! – e por aí vai.


(Foto: Reprodução)

Na várzea, o reserva é tão somente um número sem muito estilo, sem muita pompa, sem nada que sequer chegue perto de tirá-lo de todo secundarismo que lhe é imposto. Mas ao contrário de todo o entorno, eu, cronista ávido por vidas e sonhos, há muito os observo.

Em geral seus rostos são desprovidos de emoções frívolas, baratas, de falsidades que as conveniências acabam por nos condenar. O reserva do futebol de várzea é autêntico. Olha para o campo com desejo mordaz de estar ali.

Espera por sua vez, tal e qual um menino virgem espera pela primeira paixão, por seu primeiro beijo na boca. De sua maneira, escolhe um jeito de ajudar e cria a sua melhor forma de fazer parte do jogo.

Alguns viram auxiliares do técnico. Gritam, vociferam táticas, incentivam os titulares, lhes açoita de recomendações que ao seu juízo são perfeitas.

– Cicrano, fica esperto com esse lateral direito deles, fecha essa diagonal!

Outros são torcedores, fazem suas figas, fecham os olhos quando os adversários atacam, oram, clamam pela ajuda de um Deus o qual eles têm plena convicção de que, de fato está ali a observar toda aquela pantomima ludopédica. São plenos.

De forma alguma se entregam ao pouco charme do ar blasé de quem não está nem aí. Fazem parte do jogo por pura profissão de fé e encanto. E quando o treinador os chama para entrar, nossa… É a consagração!


(Foto: Reprodução)

Em meio aos outros companheiros de pedra dura, o escolhido então se levanta e vem em direção ao Professor todo imponente, impávido, realizado. Uma luz divina, talvez enviada pelo Deus que ele rezava há pouco, o qual ele tinha plena convicção de que o ouvia, vem até ele e o ilumina. Nessa hora ele galga os degraus da divindade do mundo maravilhoso dos titulares. Ouve as instruções com atenção e quando autorizado pelo árbitro corre, como correria os que soubessem que no final do pique, vem a alegria.

E ela vem.

No instante em que a bola encontra o pé do reserva varzeano pela primeira vez, toda a sagração possível acontece e todo sorriso é farto e pleno.

E assim a várzea segue. De titulares e principalmente, de reservas…

BALADA NÚMERO 7, O CANTO DO ENCANTO NA VÁRZEA

por Marcelo Mendez


(Foto: Reprodução)

A várzea sem dúvida é um berço santo de subversão de tudo que a razão tenta empurrar goela abaixo sem nenhum charme. Na várzea impera a transgressão dos sentidos. 

Pensando assim, o que pode então ser mais subversivo que a figura lendária do ponta, do ponta direita?

Em tempos de glória do futebol nacional, a posição do lado do campo, foi representada por nomes como Julinho Botelho, Tesourinha, Friaça e o maior de todos, Garrincha. Eram tempos em que se driblava em cima do lenço que ficava por sobre a linha lateral, tempos em que a magia se fazia pelo lado do campo. E agora, em 2017, aonde está esse ponta?

Sim, ele está com a camisa 7 do Santa Rosa de Mauá e atende pelo nome de Fernando.

Em um domingo de multi cores, aceitei o convite de meu amigo Marcelo Ferreira a acompanhá-lo no oficio de suas funções cobrindo o futebol da bola de marrom de Mauá. A cidade do ABC Paulista acorda com um sorriso na cara em dias de jogo na várzea…

Carrinhos de feira apostos, vira-latas de fronte às maquinas de frango e seus cheirosos galetos, meninos que comem pastéis, homens que carregam instrumentos de samba de olho no relógio a esperar pela hora adequada para a primeira latinha de cerveja.

É um domingo de várzea…

A beira do alambrado da Vila Mercedes começa a encher para a segunda partida das oitavas de final do principal campeonato da cidade. Mocidade x Santa Rosa jogariam e então alguém me diz:

– Presta atenção nesse camisa 7 do Santa Rosa…

Prestei…

A inexorável mística que há na camisa 7, se faz nos pés de Fernando. Na primeira bola que pega, ele olha na cara do seu marcador o desafiando para o duelo de pernas que o futebol faz. Para, balança a anca para um lado, sai para o outro e a galera vem junto:

“OOOOOOOOLÉÉÉÉÉÉÉÉÉ!!!!”

É o maior momento do futebol. O drible do menino no marcador bufão é o que salva pra além do futebol; Consagra a vida!

Quando a bola vinha aos pés de Fernando ele a colava junto ao seu pé direito e não deixava ninguém tirá-la dele. Com a ginga de um bailarino, driblava lindamente, driblava todos, driblava todo mundo! Ao redor de sua cintura, estava ali, toda a imortalidade de gingas e gafieiras lendárias, de seus pés, sambas e picardias a fazer todos sorrirem. 

Fernando driblava e sorria.

Seu time venceu, ele fez os dois gols e mesmo que não fizesse isso não importaria muito. No campo da Vila Mercedes, com a camisa do Santa Rosa, Fernando jogou por muito mais que um título. Jogou pela poesia. Driblou as caretices todas e ali naquele campo, perpetuou todo um sem-fim de odes épicas a craques imortais.

Nesse domingo, Fernando jogou por mim. A ele agradeço.

Profundamente, agradeço…

AS MARAVILHAS DE UM JOGO RUIM NA VÁRZEA

por Marcelo Mendez


(Foto: Reprodução)

Na várzea nem tudo é sempre assim, tão bom.

Vejamos o caso de que falaremos aqui hoje:

O jogo ruim.

Sim caro amigo leitor. Esqueça, portanto as pompas e grandiosidades todas contidas em uma partida clássica, recheada de craques e de jogadas lindas. Nada de genial, nada do que há de mais imponente nos ditos grandes jogos. Não!

Aqui vamos tratar, portanto, do jogo que ousou fugir do padrão comum do que se espera, e falar daquela partida dura, brigada, disputada aos bicões e suores suspeitos. Vamos falar do jogo ruim…

Não foram poucas às vezes em que me deparei com um desses. Até aí nada demais, afinal de contas, se pensarmos na quantidade de jogos de futebol que se tem por aí, fica muito mais fácil encontrar jogos feios, do que aquelas coisas homéricas, onerosas e gigantescas do ponto de vista técnico. Mas na várzea é diferente.

O jogo ruim na várzea tem a mesma proporção épica que há em Shakespeare, ou em Drummond.

No duelo travado por dois times ruins para se decidir quem dá mais pernadas, quem consegue os maiores chutões, o componente poético que surge pelos terrões vai aos píncaros do estado lúdico!

As jogadas mais pérfidas do ponto de vista técnico, os maiores absurdos ludopédicos e todo o desconcerto necessário para fazer do jogo em questão algo realmente ruim eleva o cidadão que lá está para vê-lo a um transe futeboleiro transcendental, único.

Às favas com a obviedade chata e rasteira da razão; O jogo ruim é uma privação de sentidos, um desbunde!

Os olhos de quem vê uma partida assim simplesmente vaga por entre sambas feitos à beira da cancha, espetinhos saborosos assados no bar ao lado e outros drinks improváveis. O torcedor se vira como pode.

Se não tem um passe de Gerson, tem um passe torto e, então, o sujeito dará risada disso. Se não tem um craque no meio campo, terá um perna de pau para que se façam as críticas das arquibancadas regadas a muita cerveja e conhecimentos técnicos e táticos de fazer inveja a um Telê Santana. De tudo se fala.

Enquanto o zagueiro isola a bola, alguém se lembra da prestação do carro, da conta no mercado, de como vai a vida e o mundo. Um outro, responsável de seu papel de marido que sai de casa para o lazer matinal, se recorda imediatamente de seus afazeres e comenta,

– Preciso passar no açougue, a mulher pediu para comprar uma carne de panela.

O interlocutor acena positivamente com a cabeça e assim a tradição dominical está mantida.

A bola volta e o jogo recomeça.

A afobação de nossos amigos de chuteiras coloridas e técnica duvidosa é tanta, que no afã de tocá-la de maneira atabalhoada, ela, a bola, recusa-se peremptoriamente a obedecer-lhe os comandos. Dana a quicar na canela, a fugir, a se rebelar, a querer de todas as formas, pregar uma peça no sujeito. A dureza de te-la é tanta, que a cada passe certo, mais do que uma alegria, tem-se um alivio.

Trocaram mais de três passes seguidos. Oh!

Pois bem. Lendo isso, o amigo leitor há de pensar: “Mas o que diabo pode haver de bom em ver um jogo desses, qual o sentido?”. Oras…

A várzea é honesta.

Não há nela, nenhum problema, nenhuma obrigação de não parecer aquilo que ela realmente é. Não precisa de maquiagem, de uma roupa outra para descaracterizá-la daquilo que faz dela um universo de sonhos; Ela é verdadeira.

Tal e qual a inexorável verdade, não tenhamos, portanto, vergonha em aqui dizer o que pode vir a ser a redenção da caretice e a libertação total do estado de nulidade de emoções que por vezes nos vitima e saudemos:

Viva o jogo ruim! Viva…

A BALADA DO CANELEIRO E O SOL DA VÁRZEA

por Marcelo Mendez


(Foto: Arquivo Pé de Meia)

Foram inúmeras as vezes em que saí de minha casa para cobrir jogos de futebol de várzea pelo ABCD pensando em clássicos filmes de western pelos mais variados motivos. Algumas vezes, devo concordar, que pelos mais previsíveis clichês. Afinal de contas essa é uma premissa que quase sempre persegue os cronistas ludopédicos e eu não fujo à regra nesse ínterim. Pelo contrário, até gosto.

O desafio consiste exatamente no fato de tornar essa coisa que aparentemente é óbvia, em outra, mais lúdica, mais interessante aos senhores caros leitores. Mas vamos lá…

Ao pegar chão para cobrir Americano x Família Bob Marley, pela rodada inicial da primeira divisão do Campeonato de Futebol Amador de Diadema, eu cheguei a pensar em algo assim como, “Era Uma Vez no Oeste”, do Sergio Leone, ou alguma coisa dirigida por Enrico Salermo, que ressalta-se a dureza do enfrentamento na Várzea, mas não…

Com 35 graus de temperatura à sombra, o que inevitavelmente me fulminava a mente era o classicão “Duelo Ao Sol” de King Vidor. E sem dó.

Os jogos do futebol amador são marcados para as manhãs de domingo, algo tradicional, bacana, eu entendo. Quando aconteciam às 10 da manhã até que dava para suportar tranquilamente, mas agora, com as partidas começando às 12 horas, fica beirando o insuportável.

Chegando ao Estádio do Serraria o que vi foram suores em bicas, garrafas de água em proporção, canseira extrema por parte das duas equipes e nada que me saltasse aos olhos em se tratando de “duelo”.

A partida era irritadamente óbvia. No entanto, quando eu já estava por lá a me preocupar com a eminência do nada absoluto que circundava a pauta naquele domingo de calor absurdo, houve uma parada técnica: enquanto o técnico do time da Família Bob Marley berrava arquétipos de uma tática necessária, infalível, rotunda e salvadora, eis que vejo um jogador o retrucando:

– Mas eu tô sozinho lá na frente, só chega bicão! Quero a bola no meu pé, pelo menos uma!

E o técnico responde:

– Mas você precisa se mexer…

E ele:

– Mais?? Você precisa colocar um meia perto de mim!

Olhei novamente. Vi que ao se afastar da resenha tática, o jogador camisa 9 saiu resoluto conversando com seus companheiros de time, explicando da necessidade de receber uma bola limpa. O jogo recomeça.

Na primeira chance que se tem, a bola então chega limpinha para ele. Ele corta o zagueiro, levanta a cabeça e bate… Nas nuvens! Sim, a bola chutada pelo atacante vai quase por cima das grades de contenção do estádio do Serraria.

– Valeu, Moacir! – grita o torcedor.

Moacir…

Com seu time perdendo por 1×0, Moacir lutava olimpicamente. Não é um craque. Não tem a finesse de um Careca, de um Van Basten. Mas precisa? De modo algum.

Na várzea, a insistência caneleira de Moacir dá ao sujeito comum da batalha do dia a dia, uma carga onírica, épica. Moacir corria pela grama sintética do campo do Serraria, com uma dignidade inexoravelmente bela! Correu, trombou, lutou por todas as querelas de bola que chegavam a seu ataque e como prêmio guardou duas!

Sim, fez dois gols, virou o jogo e foi consagrado o herói possível de ser na manhã/tarde de domingo. Dessa forma, Moacir foi um grande, embora talvez não tenha para si um imortal diretor de cinema a registrá-lo. Mas não sei se realmente precisa disso. Moacir é Grande para além do cinema:

É um grandioso na várzea e isso também o faz imortal…

ODE A MATHEUZINHO, O GANDULA DE MAUÁ

por Marcelo Mendez


Marcelo Mendez

Em um domingo de várzea que o sol não veio, saí da minha casa para a pauta em um dia cinza.

A espessa névoa gelada que acordava o meu Parque Novo Oratório era o prenúncio do que viria pela frente na manhã fria que se iniciava. Um dia que, se por um lado não tem toda a beleza plástica que vem com o sol, por outro, acaba me servindo para me arrefecer o juízo.

Por alguma estranha razão o frio me acalma. Me faz ouvir Thelonious Monk, me assopra bons sons de jazz na alma e assim vou em paz para a pauta. Paz…

Eu sangrei um milhão de Blues na pele crua e sofri o suficiente para hoje, ter direito adquirido a toda paz que vem através do azul dos olhos dela. Assim segui para Mauá…

O jogo que faria seria entre os times do Sol Nascente, time do bairro do Oratório e a Portuguesinha do Jardim Feital em match válido pela terceira divisão do Campeonato de Várzea de Mauá. A nomenclatura desprovida de glamour já valeria por si só a crônica:

Terceira divisão da Várzea…

Caros amigos, há um amor intrínseco nas relações dos homens com seus times de futebol de várzea. Porque nada explica a disposição que habita os corpos desses homens, que os acorda em um domingo frio, chuvoso e escuro para jogar uma partida de turno da terceira divisão da várzea de Mauá. Para tal obrigação, nada a favor.

O jogo foi marcado para o campo do Flor Do Morro, no Jardim Zaíra 2. Um lugar lindo, adornado por uma barreira verde, vizinha de uma arquitetura possível de casas que se equilibram em um barranco. Construções que me fazem lembrar de antigas e belas cidades medievais. Ao lado do campo, uma densa floresta de várias árvores que insistem em existir no mundo de concreto puro.


Campo do Flor do Morro, Zaíra, Mauá – SP (Foto: Rodrigo Pinto)

Seria tudo lindo se não fosse pelas condições do campo; Um horror!

Judiando de tantas batalhas e chuteiradas, o piso da cancha era irregular, um tanto esburacado, com tufos de mato aumentando de tamanho em suas laterais. Ao lado, as grades curtas criam o maior problema da coisa, as bolas que se perdem na floresta. E para tal solução do problema, a Portuguesinha de Mauá criou uma profilaxia sagaz. Entra aí nosso personagem do dia:

Matheuzinho…

O jogo comia feio, com uma pobreza técnica de dar dó. Não demorou muito e veio então o primeiro bicão para o matagal.

“Vai Matheuzinho!!” – ordenou o dirigente do time.

Lépido de juventude, tomado por uma responsabilidade enorme, sabedor de sua importância para a causa, Matheuzinho sai do campo e se embrenha pelo mato. O procurei e não mais o vi. Por alguns minutos, o menino some. Me preocupei; “Será que se perdeu?” Não.


Matheuzinho (Foto: Rodrigo Pinto)

Vindo com um sorriso largo, enfeitando seu rosto de menino de 14 anos, Matheuzinho feliz da vida pulava novamente a grade do campo, agora com a bola que conseguiu resgatar. Por mais três ou quatro vezes, repetiu o ato. Quantos mais fossem os bicões, mais Matheuzinho se esforçaria. Entendia que seu oficio de encontrar as bolas perdidas no matagal era vital para que o show não parasse.

E quantas vezes fosse preciso, o menino de chinelo de dedo enfrentaria o frio, a chuva, as cobras e o mato todo para voltar feliz da vida, com a bola debaixo dos braços. Assim o fez. No final de tudo, pouco me importava o resultado do jogo, a tabela de classificação e afins.

A estrela daquela manhã de domingo era um menino pobre, de comunidade simples de Mauá, que fez o seu serviço de gandula por nada que seja metal ou vil.

Fez por amor. Por você eu escrevo meus versos, Matheuzinho.

Te amo profundamente, menino…