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Lucio Branco

“PELÉ É UM MERDA”

por Lucio Branco


Destaquei, na minha última contribuição à “Futebol Arte”, um trecho da “Nota à 2ª edição” de “O negro no futebol brasileiro” escrito pelo próprio autor, Mario Filho: “Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto. Não para afrontar ninguém, mas para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória”. E emendei: “Complexo. Fica a promessa de uma crônica futura a respeito. Nesta não há espaço”.

Decidi não adiar a promessa.

Realmente complexo o que afirma Mario Filho, também autor de Viagem em torno de Pelé. Quando redigiu essa “Nota à 2ª edição”, corria o ano de 1964, o mesmo em que fora lançada a biografia da encarnação pública – e mítica – de Edson Arantes do Nascimento. Com certeza, o jornalista se sentia muito familiarizado com o biografado para pontificar sobre o que fosse a respeito da sua imagem e da sua carreira. Admito que não a li, por rara que é a sua presença em sebos. Ao que consta, após algumas poucas edições iniciais, ela nunca mais foi publicada. Esse desconhecimento pode comprometer, em parte, o meu parecer. Mas, pelo trecho da “Nota”, não é difícil concluir que o autor defende uma versão particular da negritude do Rei que, muito provavelmente, é a mesma do livro.

Eis um bom teste para os cronômetros: na velha polêmica sobre quem é o “maior jogador de todos os tempos”, medir a velocidade da aparição do veredicto final “Pelé é um merda”. Quase fatalmente ela comparece para castrar qualquer possibilidade de debate. Em seu próprio país de origem, prefere-se não falar por muito tempo sobre Pelé. Corre-se até o risco de acabarem o elogiando como jogador…

Cabe então perguntar: se Pelé é um “merda”, o que é a sociedade que o pariu?

O racismo de fundo encerrado nessa sentença, embora nunca declarado, é fruto de um ressentimento que serve como um desses raros resumos pertinentes do Brasil. Digo resumo, não redução. A imagem do país se tornou indissociável à imagem de Pelé desde que, em 1958, ele o ajudou a pô-lo definitivamente no mapa. Todas as gerações de torcedores que vieram após a sua consagração mundial na Suécia nunca puderam lhe ficar indiferentes. Teria sido ele um astro beneficiado pelo fato de ter coincidido o início da sua carreira com o advento da era da comunicação de massa? Afinal, há quem sustente que Leônidas da Silva e Zizinho, para citar dois craques nacionais de gerações anteriores, só não receberam o mesmo título de realeza porque a repercussão midiática de suas jogadas era inevitavelmente menor. Mal havia TV, o rádio tinha menor alcance, os cinejornais que cobriam o futebol eram mais escassos etc. Mas não foi apenas essa a vantagem de que tirou proveito a sua consagração. No caso do mais popular camisa 10 da história, ser um gênio que se destacava entre tantos outros no Brasil e no mundo contribuiu bastante para a conversão dos fatos em lenda. Ou vice-versa. O vídeo-tape, contrariando o irmão mais novo de Mario Filho, ignora a burrice ao reexibir a sua antologia de feitos que seriam pouco críveis caso não fosse o seu sempre solícito testemunho.

É mais que sabido que Pelé, ao longo da vida pública, cultivou uma persona à sombra do equívoco. Pouco tempo antes do seu recente afastamento dos flashes, ele renovou o seu repertório de ditos que se sairiam melhor se fossem não-ditos. A esquizofrênica polarização entre Pelé e Edson até pode fazer sentido pontualmente, mas também diz muito do seu malfadado senso de autopromoção. Sua condescendência com regimes autoritários e federações desportivas idem não tem como não desabonar a sua reputação. Um entranhado conservadorismo (que Mario Filho involuntariamente detecta na referida glorificação da sua família) é, sem sombra de dúvida, a bússola dos seus descaminhos pelo território da opinião livre. Agora, bater única e exclusivamente nessa tecla, como se faz quase sempre, é outra coisa. Parece mais um exercício bem-pensante isento de autocrítica. Um vício de classe média no seu presumido papel de formadora de opinião. Jogadores brancos com perfil ideológico semelhante, ou até mais sectário, não são tão execrados. O Brasil é o único país em que se odeia Pelé consciente ou inconscientemente em igual medida. Em outros, o seu nome inspira restrições mais refletidas. Até na Argentina se elabora melhor a crítica ao maior do mundo – apesar de, por motivos óbvios, não o reconhecerem nesse patamar.


Pelé e Medici

Pelé e Medici

Num período de maior lucidez, em 1978, Caetano Veloso, numa longa entrevista conjunta com Chico Buarque, Aldir Blanc, Edu Lobo e outros artistas para a Revista Homem, questionou os seus pares sobre a expectativa de genialidade de Pelé também fora das quatro linhas: “Pedir a ele mais que isso seria pedir energia demais a quem já dá energia em demasia” – disse ele. Realmente, esperar que o mundo esportivo gerasse um outro Muhammad Ali é até perverso. Tamanha sintonia nesse grau de potencialidade entre corpo e intelecto não é um fenômeno assim tão assíduo na espécie. Mais inimaginável ainda numa mesma geração. O campeão dos pesos pesados, que sempre fez questão de superlativar a própria excelência, também fez questão de se curvar à majestade de Pelé na sua despedida do Cosmos.


Pelé e Muhammad Ali

Pelé e Muhammad Ali

Não é desconhecido que há outras obras sobre a vida de Pelé além da biografia de Mario Filho. Entre os filmes, há Isto é Pelé, que repassa a sua carreira para apresentá-lo promocionalmente aos EUA, justamente quando da sua contratação pelo Cosmos. E, mais recentemente, Pelé eterno. Neste documentário, para corresponder ao que estava textualmente no script, Pelé ecoa tardiamente o Mario Filho da “Nota” de 1964: muito convicta e oportunamente, afirma ter orgulho de ser negro. O discurso teve que ser reescrito ao longo do tempo. Não poderia mais repetir aquele evasivamente conciliatório que adotara então no auge da forma e da decorrente e inesgotável conquista de títulos. Mas o tom é velho conhecido, revela-se na clara intenção de calar ou satisfazer a patrulha contra ele, apenas. Antes, declara ter orgulho de ser brasileiro, como se a primeira afirmação atenuasse (ou desculpasse) a segunda. Tudo isso é bem perceptível para quem é atento aos sinais. Anos depois, Pelé regressaria aos braços da “democracia racial” ao desaconselhar a denúncia aberta do goleiro Aranha contra o racismo criminoso da torcida gremista. Mas a tal “democracia racial” não é simples. Suas dimensões são continentais, como as do país que a abriga. Falei em patrulha, anteriormente. Tomo cuidado para não reproduzi-la, eu próprio. Afinal, cobrar orgulho racial de Pelé é como o futebol brasileiro no período amador pesquisado por Mario Filho: um esporte praticado principalmente por brancos.

O fato é que há um racismo autorizado no Brasil cuja senha é Pelé. E pior: além de não ferir a tão cara instituição da “democracia racial”, não é considerado racista quem o pratica. E vou além: a garantia de apoio é imediata, na maioria das vezes. É um incansável apedrejamento público. Nada mais culturalmente legitimado do que canalizar todo o ódio racial contido na nossa formação histórica sobre a sua imagem. Não há Rei cuja entronização pudesse ser mais indesejada por uma tão larga faixa de súditos. Por aqui, a sua deposição é um evento longamente esperado. Em favor da mais pura aversão, o fator local é, inclusive, deixado de lado. Se é Maradona o candidato mais cotado na linha sucessória, que o cetro vá logo parar em suas mãos. É esse o raciocínio que prevalece. A igualmente pusilânime rivalidade Brasil X Argentina passa a contar com a inesperada adesão da nação adversária: fazer o elogio de Maradona, mesmo não pondo muita fé no que se diz, é a melhor forma de desqualificar o Atleta do Século. 

Mais perto do fim da carreira, Diego Armando Maradona revelou ter a mesma habilidade de craque num outro domínio onde o seu concorrente brasileiro, apesar do esforço, é um rematado pereba: a autopropaganda. O argentino intuiu que ela é a alma do negócio. Negócio não no sentido do business, é certo, mas de angariar um capital político que Pelé nunca poderia ter – ou, como é notório, mesmo querer. O que é o engajamento à esquerda de Maradona senão o resultado da descoberta da fórmula de encarnar a antítese de um Pelé sempre servil aos interesses mercadológicos que cercam o esporte que o consagrou? Sua consciência contra os arbítrios da FIFA e outras instituições mafiosas é bem tardia. Antes dela, a alienação era a regra da sua condição de nouveau riche do futebol mundial. Sua passagem pelo Nápoles foi o auge do seu deslumbramento. Vamos condená-lo? Seria injusto. Antes de atirar a primeira pedra, seja um gênio precoce catapultado da plebe mais anônima para o mais súbito e cintilante estrelato. Quem está preparado para tanto em tão pouco tempo? Maradona não foi o primeiro e nem será o último. E, vejam: estou falando de Maradona. É humanamente compreensível sucumbir à combinação “juventude & contrato milionário” que agracia alguns raríssimos talentos da bola. Bravamente, ele conseguiu chegar onde muita gente não acreditava que conseguiria: sobreviver. Enfim, é possível haver quem ache que ser Don Diego é fácil?

A questão é que Maradona soube como erigir a sua imagem em oposição a de Pelé. Para melhor construí-la, era melhor, no mínimo, desconstruir a do rival –quando não tentar destruí-la. Os golpes, não raro, foram baixos. Sabedor de antemão da inegável simpatia que a manobra surtiria, procurou se colocar na contramão da trajetória de um jogador que ele próprio definiu como o único em condições de disputar com ele a posição de maior de todos. Os citados Leônidas e Zizinho, mais o seu conterrâneo Di Stefano, e Garrincha, Puskas, Cruyff, Beckenbauer, Zico e outros, automaticamente, foram rebaixados a um outro plano de importância.

Indiretamente, a culpa é de Pelé. Mais poderoso que o seu marketing é o seu anti-marketing. Especialmente quando manipulado pelo seu maior interessado. Muito embora involuntariamente Pelé o promova, invariavelmente alheio da impopularidade de alguns dos seus gestos e falas. Paradoxalmente, “Pelé émarketing” é outra sentença regularmente alardeada no Brasil. Quem a profere costuma exibir uma expressão mais convicta que a de qualquer herói pátrio numa cédula. Isso, como se Maradona também, de outro modo, não se pusesse “à venda” na sua auto-projeção de rebeldia. O craque argentino soube quando e como se postar ao lado de Hugo Chávez no palanque do IV Cumbre de Las Américas, em Mar del Plata, em 2005. Ou como agradecer a medicina cubana por tê-lo salvo da morte, tatuando Fidel e Che. De resto, há quem diga que um idoso Pelé não convence nem mesmo como garoto-propaganda de remédio contra a impotência.


Maradona travestido de Che Guevara

Maradona travestido de Che Guevara

A resistência política em campo e fora dele produziu exemplos de maior envergadura e que não dão margem à suspeita. Falo de jogadores que pagaram o seu respectivo preço pelas atitudes que tomaram conscientemente no auge das suas carreiras, quando tinham muito a perder. Cada um a seu modo, e fazendo jus à escalação no time da dissidência, souberam dar mais e melhor o seu recado: Afonsinho, Paulo Cézar Caju, Nei Conceição, Sócrates, Wladimir, Reinaldo, Nando Antunes, Carlos Caszely, Cristiano Lucarelli, Cantona e outros.

O filão anti-Pelé funciona com muita facilidade. É aí que vem a maior curiosidade: patrícios em nada inclinados ao pensamento progressista compram sem hesitar a versão do “argentino revolucionário que não nega as suas raízes” contra o “negro de alma branca que se vendeu ao sistema”. (Por sinal, o uso indiscriminado desta expressão pode ser bem mais racista que o racismo que pretensamente acusa.)

No Brasil, Maradona passa por branco. Quando se trata dele, nosso complexo colonizado é suspenso: – abre-se mão de condenar as suas origens étnicas não europeias para cair no mais raso julgamento moralista sobre o seu comportamento. Para a ideologia do senso comum que, por estas bandas, é uma profissão de fé, a natureza patológica do vício é voluntariamente descartada. Um preconceito é substituído por outro, assim como se saca um jogador que não se encaixa muito bem no esquema para a entrada de um reserva. Nada mais afeito às regras do jogo – em ambos os casos.

Pelé e Maradona encarnam toda sorte de paixões populares, representações coletivas, expectativas sociais. É uma carga imensa sobre dois homens que também têm a sua dimensão de mortalidade. Queiram ou não, são mitos em vida, condição também reservada a alguns poucos humanos, não se pode esquecer. Foram condenados por força da própria genialidade a ocupar a boca de cena desde antes de completar a maioridade. Trataram de corresponder ao papel que se esperava deles na encenação tragicômica que a indústria do espetáculo produz. É uma fatalidade. Sob todos os holofotes, nunca sairão do palco, território da sua glória e solidão.

Ainda no terreno da representação, há Pelé eterno e Maradona by Kusturica. Os dois filmes pecam pelo excesso de reverência. Evidente que obras desse naipe não poderiam fazer a crítica dos retratados quando são eles próprios os seus colaboradores mais interessados. E, fatalmente, seus valiosos garotos-propaganda de contrato assinado. Ambos os documentários os abraçam a ponto de tentar refletir exclusivamente a sua visão de mundo. Certamente, uma condição também previamente firmada por contrato. OK, a isenção, tanto no cinema como na vida, é uma ilusão. Mas seria necessário que os cineastas em questão (Aníbal Massaini Neto e Emir Kusturica) tomassem um pouco do seu próprio partido. Ou seja, assumissem uma maior liberdade criativa, engajamento primeiro do artista, ao que ainda me consta. Mas talvez seja ingênuo esperar esse mínimo de projetos dessa natureza. (Para não dizer que não falei das flores: o mérito do primeiro é a pesquisa documental e, do segundo, o seu – embora óbvio – senso crítico.)

Para concluir, reafirmo que entre um fazer publicidade de estimulante sexual e o outro posar ao lado de Chávez mandando a ALCA “ao carajo”, não há assim tanta diferença. Envolver-se a sério nessa discussão extra-futebolística acaba, ao final, reduzindo-se a usufruir da “liberdade” reservada ao consumidor diante de uma concorrida prateleira. Ou você compra uma fantasia empacotada de juventude eterna, ou uma militância pouco confiável numa causa nobre. Aos que insistem na polêmica, resta o critério de decidir qual a propaganda menos enganosa. Creio ser bem mais recomendável que suspendam a polêmica e se atenham à bola. Com ela nos pés, ambos só ludibriavam os adversários. Assim, como gênios criadores que foram, ressignificaram a palavra “mito”.

Escrevi o que vai acima com a mesma serenidade que me inspira o tema desde muito cedo na minha relação com o futebol e o mundo onde ele se situa. Já sei que, caso me leiam, serei contestado por muitos logo de saída. Insisto: na grande maioria dos casos, será ainda a decrépita “democracia racial” a ditar essa reação.

É curioso. Numa nação vocacionada para o Barroco como o Brasil, defender o retrógrado Pelé pode ser uma tarefa libertária.

Filhos de Mario Filho?

por Lucio Branco

Ao redigir o perfil dos protagonistas/narradores do documentário em longa-metragem “Barba, Cabelo & Bigode”, não pensei duas vezes em cravar, logo no parágrafo de abertura, o seguinte sobre o “Cabelo” (Afonsinho é o “Barba” e Nei Conceição é o “Bigode”):

“Quando Paulo Cezar Caju iniciou a carreira, os negros que atuavam no futebol brasileiro não eram exatamente conhecidos por manifestar consciência racial. É evidente a contribuição da cultura negra à reinvenção local dessa modalidade esportiva originalmente europeia. Não à toa foi um fenômeno dissecado por Mario Filho no clássico cujo título já estampa a relevância do tema: “O Negro no Futebol Brasileiro”. Mas nem mesmo no universo popular do futebol se consegue desmentir o decantado mito da ‘democracia racial’ que teima em querer definir a identidade do país. Desde os primórdios, as tensões raciais ali dentro refletiam as mesmas que vigoram do lado de fora. E não importava o quão craque pudesse – ou ainda possa – ser o jogador negro. Caju se deu conta disso muito cedo e reagiu à altura, não reconhecendo e recusando o lugar que lhe era reservado nesse universo. Não é exagero dizer que ele poderia ser um personagem de Mario Filho. E quem sabe o fosse, num capítulo exclusivo de uma provável versão estendida do livro, caso o autor não morresse em 1966, às vésperas da consagração do camisa 11 nos gramados”.


O discípulo e o mestre, segundo o próprio discípulo, o irmão Nelson Rodrigues.

O discípulo e o mestre, segundo o próprio discípulo, o irmão Nelson Rodrigues.

Este trecho do perfil do Caju, além de procurar dar uma justa medida dele, pretende o mesmo com o jornalista Mario Filho. Não poderia faltar a menção ao irmão mais velho de Nelson Rodrigues, ali. Inclusive, no mesmo tópico, o criador literário mais renomado da família poderia também ser citado. Nas suas crônicas, ele nunca se furtou a fazer a apologia do habilidoso atacante revelado pelo Botafogo de Futebol e Regatas.

Sem pudor algum do nepotismo, Nelson consagrou que, na era pré-Mario Filho, “a crônica esportiva estava na sua pré-história, roía pedras nas cavernas”. Não é segredo que a reformulação da linguagem jornalística promovida por seu irmão-mentor deixou um legado insuspeito. Não foi pequena a sua contribuição para popularizar ainda mais a modalidade através de uma abordagem que não abria mão da estilização literária. Através dela, os lances e jogadas ganharam nova cor. O chute, o drible, a matada de bola e a arrancada rumo ao gol passaram a ter uma dimensão mítica. Uma abordagem que veio a influir diretamente na ótica rodriguiana sobre o futebol e, quem sabe, até sobre outros domínios. Mas não é errado atribuir ao interesse especificamente por este, habitado pelos craques e a sua habilidade transcendental, uma das fontes da adesão radical de Nelson ao subjetivismo. Sua aversão não só à “burrice” do vídeo-tape, mas aos “idiotas da objetividade” em geral, poderia muito bem derivar daí.

A adoção da narrativa dramática para tratar dos jogadores, o seu talento, e, pela primeira vez, a sua vida pessoal, é obra de Mario assumidamente continuada por Nelson. Foi na condição de discípulo que abraçou a campanha para a renomeação de Estádio Municipal do Maracanã para Estádio Jornalista Mario Filho logo após a sua morte. Tamanha devoção familiar permitia que descuidasse do brilho verbal para, na recapitulação dos feitos do irmão, cometer algo como: “Mas eu não vou contar tudo o que ele fez, porque esse homem não parou nunca”.

Quase três décadas após, esse surto de popularização ganharia a adesão dos comentários radiofônicos de João Saldanha. Precisar quanto do seu carisma transitou pela trilha aberta pelo irmão do seu colega preferido da Grande Resenha Facit não é tarefa fácil. Outro mestre do coloquial, Plínio Marcos, radicalizaria ainda mais a tendência nas suas crônicas esportivas. A mesma imprecisão serve para ele. A questão é: seriam todos filhos de Mario Filho, como pretendia Nelson?

Mas vamos à parassociologia do futebol feita por Mario Filho à sombra de Gilberto Freyre…

O filho varão dos Rodrigues fez do seu célebre “O Negro no Futebol Brasileiro”, de 1947, uma obra que se convencionou batizar, como está estampado na capa de uma das suas inúmeras edições, de “O maior clássico do futebol brasileiro”. Trata-se de um recurso promocional que ajuda a gerar mais consenso que debate, é verdade. Mas há um mérito inegável nesse título: o pioneirismo na abordagem a fundo do papel de ponta desempenhado pelos negros na forma como o jogo passou a ser jogado por aqui. (Pelo que se levantou, Gilberto Freyre foi o primeiro a tratar do fenômeno, embora sem muita densidade, em “Foot-ball mulato”, um artigo publicado em 1938.)

Mario Filho já havia sido precursor em matéria de importância conferida ao próprio esporte como pauta jornalística. Para ele, o association era um universo que os colegas de redação deveriam levar mais a sério. Isso se refletia não só na cobertura das rodadas, mas na atenção em geral dada ao universo da bola. A gestação de “O Negro no Futebol Brasileiro” incluiu uma pesquisa mais meticulosa do que aquela realizada apenas como profissional da imprensa. Ele se lançou a uma pesquisa de campo que implicou o registro do depoimento dos mais diversos atletas, dirigentes, jornalistas etc. Esforço que Gilberto Freyre reconheceu como a aplicação do mais legítimo método sociológico.

Em “Casa-Grande & Senzala”, o mito da “democracia racial” comparece como um ideal a ser mais facilmente atingido pelo Brasil que por outras nações da comunidade mundial. Como se vê, uma tese para lá de questionável. Não seria propriamente um fenômeno estabelecido, a ser defendido a toda prova pelo seu teórico que, não por coincidência, é também o autor do prefácio à primeira edição de “O Negro no Futebol Brasileiro”. Seria algo como uma potencialidade que, de algum modo, não deixa de dialogar com o otimismo que gerou, por exemplo, um”Brasil, país do futuro”, de Stefan Zweig. Curiosamente, o escritor austríaco preferiu não esperar pelo estágio histórico anunciado no título da obra. Após calcular que o avanço nazista na Europa de 1942 o alcançaria no exílio em Petrópolis, decidiu se envenenar com a esposa, renunciando, assim, a qualquer otimismo.

Gilberto Freyre nunca renunciou à sua fé no povo brasileiro. Só não ajudou muito, apesar de tudo, a sua falta de empenho em aprofundar ainda mais o seu ponto de vista sobre o problema racial no país. Certa autocrítica seria elucidativa, no caso. Ao tropicalizar a tradição eurocêntrica do pensamento nacional a respeito dos trópicos de nomes como Oliveira Viana, Nina Rodrigues, Silvio Romero e outros racistas com pretensões à Ciência, Freyre optou por se opor ao distanciamento colonizado da nossa intelligentsia. No seu lugar, propôs a aclimatação intelectual à paisagem humana local com tudo o que julgava de espontaneamente seu. Mas deve ter se deixado entorpecer demais pelo sol que doura a nossa evidente – embora socialmente mal resolvida – miscigenação. Permitiu, assim, que se institucionalizasse o uso oportunista da expressão “democracia racial”, produto do seu desvario nacionalista. De tão disseminada, ela acabou a serviço de um projeto de utopia fake que é, em essência, a negação mesma de qualquer utopia – racial ou não. A reboque, a cinicamente celebrada ideia de “miscigenação” acabou se convertendo na melhor fórmula para diluir os conflitos étnicos numa sociedade ainda em dívida com o seu passado colonial.

De certo modo, Mario Filho se impregnou do mesmo ufanismo que inspirou Gilberto Freyre em suas prospecções para traçar a genealogia sociocultural brasileira. Fez com que ele migrasse para a esfera futebolística. Mas sem fazer coro com o discurso leviano que se apropriou do ingênuo ideal freyreano. Mario cavou mais fundo: acusou o racismo estrutural do país refletido em campo ao narrar a trajetória atribulada de ídolos consagrados como, por exemplo, Fausto dos Santos e Leônidas da Silva. Mesmo sob os holofotes, nunca deixaram de ser lembrados da condição de descendentes de escravos africanos, fosse nos clubes ou na seleção.

E o que se pode dizer a respeito do rigor das avaliações acadêmicas do conteúdo de “O Negro no Futebol Brasileiro”? Em primeira análise, que é excessivo. Talvez haja alguma procedência na acusação de certos estereótipos, paternalismos, caricaturas e folclorizações do pesquisador na tipificação do seu objeto de estudo. E alguma mistificação romântica, também. Certas passagens denotam mais pontualmente esta segunda tendência que a primeira, a meu ver. Do ponto de vista do problema racial, não é nada exatamente comprometedor. De resto, a obra é, no geral, bem menos condenável que o sectarismo de alguns dos nossos “autorizados” doutores e seus juízos críticos tão pouco familiarizados com a bola e o seu entorno.

Mas nada é simples. Principalmente quando se lê do próprio autor, na “Nota à 2ª edição” do livro, em 1964, isto: “Daí a importância de Pelé, o Rei do Futebol, que faz questão de ser preto. Não para afrontar ninguém, mas para exaltar a mãe, o pai, a avó, o tio, a família pobre de pretos que o preparou para a glória”. Complexo. Fica a promessa de uma crônica futura a respeito. Nesta não há espaço.

É louvável como Mario Filho, apesar de ecoar parte do impacto quase unânime de “Casa-Grande & Senzala”  na inteligência nacional do seu tempo, não repercute o atribuído mito fundador da “democracia racial”. Pode até ser que não contribua com a sua necessária crítica, mas certamente não o endossa. Daí minha licença em supor, na abertura do perfil do Caju, que ele poderia protagonizar um capítulo à parte de uma provável edição mais extensa do “maior clássico sobre o futebol brasileiro”. Dentre os profissionais da pelota, ninguém mais disposto a ultrajar essa pretensa instituição da nossa tão perseguida “identidade nacional”, sem a qual parecemos não conseguir nos encarar no espelho.

Provo o que digo…

Como cartão de visita, na ocasião da sua apresentação oficial no Fluminense para compor a geração da Máquina Tricolor, o craque fez sociologia mais densa que Gilberto Freyre. Por longos minutos, dissertou, com farto conhecimento de causa, sobre a hipocrisia do não assumido racismo brasileiro. Em pleno salão nobre das Laranjeiras, resumiu assim a tal “democracia racial” diante de uma incrédula plateia de conselheiros e beneméritos. Ela pôde comprovar, ao vivo, que não fora à toa a sua relutância diante da nova contratação, obra da insistência militante do presidente Francisco Horta. Certamente, Caju não negligenciou que estava prestes a envergar oficialmente a camisa do clube que ostenta com orgulho o título de “pó de arroz”. Tinha que mostrar a que vinha.

Nunca os aristocráticos vitrais da sede tremeram tanto. Nem mesmo a fúria da torcida pelas derrotas humilhantes poderia ser mais ameaçadora contra a sua secular integridade.

PS 1: O jornalista inventor da expressão “Fla X Flu” é documentado em “Mario Filho: o Criador de Multidões”, filme de Oscar Maron Filho, subitamente morto quando o divulgava na Índia. Em meados dos 1980, ele dirigiu “Fla x Flu à Sombra das Chuteiras Imortais”, curta-metragem com Paulo Villaça encarnando o Sobrenatural de Almeida no São João Batista, diante do busto sobre o túmulo do seu criador. Nele, a entidade da mitologia rodriguiana que influi no resultado das partidas recita várias das suas máximas a respeito do clássico que “surgiu 40 minutos antes do Nada” em alternância com imagens que pertencem ao acervo do Canal 100. Coincidentemente, estive com Maron em algumas circunstâncias. A provar que a vida também é desencontro, nunca tive a oportunidade de expressar pessoalmente a ele o quanto o filme me marcou. A primeira vez em que o assisti foi na abertura de uma sessão de um enlatado qualquer na década em que foi lançado. Em tempo, para quem não a viveu: a exibição de curtas antes dos longas era obrigatória por lei nos cinemas do país. O nome de Maron estará, entre outros igualmente grandes, na dedicatória in memoriam que abrirá “Barba, Cabelo & Bigode”.

PS 2: Finalizo estas linhas tendo sabido na véspera do estado de saúde delicado de Nelson Rodrigues Filho. Que as próximas notícias sobre ele, a quem filmei no bloco Barbas, no último carnaval, falem da sua recuperação.

Ignoram Almir

por Lucio Branco


Almir Pernambuquinho e Pelé

Almir Pernambuquinho e Pelé

O Brasil segue firme na tradição de recolher as suas melhores biografias ao quarto dos fundos e expor as piores sobre a mesa da sala. Se não as piores, aquelas que são reinventadas em nome de conveniências econômicas, políticas, ideológicas etc dominantes. A História é um livro escrito por quem tem mais tinta.

Nossas autoridades militares estão aí para ilustrar o tema. Seja batizando ruas, palácios e quartéis, ou manchando livros escolares, lá estão elas projetadas na memória coletiva da nação, montadas a cavalo, espadas em riste, comandando genocídios e outros hábitos do métier. Haver tantas estátuas ostentando a mesma pose heroica pelas cidades desmente o ditado de que “a praça é do povo”. A desmilitarização dos espaços públicos da nossa geografia urbana é bem mais que uma proposta de maquiagem terminológica, é uma urgência. Cumprir com isso seria um grande adianto em termos de justiça histórica.

Não se trata de uma tendência exclusivamente brasileira, é claro, mas essa vocação para louvar escroques (fardados ou não) poderia ser apontada como um traço adquirido muito nativo. Nosso “processo civilizatório” é tão opressivo que arraigou o exercício do mando como um dado que parece ter se integrado perfeitamente à “natureza” da nossa organização social. Ordem, disciplina e hierarquia, na sua inclinação mais verticalizada, estão sempre na ordem do dia por aqui. Alguma surpresa? Na contabilidade dos séculos, ainda somos mais colônia do que país independente. A tradicional relação entre muito poucos opressores e tantos outros oprimidos nos impôs o hábito de ver a vida por um ângulo deturpado. Talvez não seja exagero considerar que a história do Brasil é, em grande medida, a história do seu autoritarismo.

O conceito de “melhor” e “pior” da frase de abertura vai além do quesito moral. Refiro-me também ao aspecto dramático das biografias impostas e abraçadas pelo senso comum. Quanto à moral, só é aconselhável peneirar bem para ver quem sobra desde que Cabral aportou nas areias da Coroa Vermelha. Desde lá, os grupos indígenas sobreviventes tentaram indicar o caminho de como resistir a todas as invasões que vieram em sequência. Infelizmente, não houve muito sucesso ao longo desse processo interminável: aquela celebrada a todo 22 de abril dos últimos 515 anos foi só a primeira.

Esta introdução é necessária porque o personagem que intitula a crônica é de uma dimensão ainda não alcançada pelo seu próprio país de origem. Daí o seu relativo ostracismo. Nele, ao contrário do que se consagrou, as virtudes não eram poucas. A principal talvez seja a bravura, em geral, tão suspeitamente atribuída às tais estátuas e seus feitos bélicos. Estamos falando de Almir Morais Albuquerque, o Pernambuquinho, surgido no cenário nacional em 1957.

Não é novidade que o imaginário da nossa elite projeta nos anos JK a memória de um país que viveu o seu apogeu. A versão histórica oficial sustenta que uma onda de otimismo varria o país a partir do Rio de Janeiro nos seus últimos anos como capital da República. Epicentro de movimentos como a bossa nova e o cinema novo, a Guanabara contribuiria também para a idealização do período ao concentrar parte considerável da geração de jogadores mais brilhantes que o futebol brasileiro já conheceu. Não foi à toa que fomos campeões mundiais pela primeira vez, na Suécia, em 1958. (Está para ser melhor problematizado o atribuído “pacto democrático” que teria gerado tanto entusiasmo na rememoração daquela época, afinal, a sua ventilação é bem mais suposta que real: Nelson Rodrigues, por exemplo, tinha que apelar formalmente para não ter suas peças interditadas sob o governo que apoiava.)

Como uma nota destoante da era de ouro do futebol nacional (não pela sua qualidade técnica), temos a figura ambígua, sempre matizada de luz e sombra de Almir, o hábil ponta de lança que migrou do juvenil do Sport diretamente para o profissional do Vasco da Gama aos 19 anos. Com o seu repertório genial de dribles e arrancadas, ele também recorria a um outro, no qual não faltavam violência (física ou verbal), catimba, doping etc. Apenas ele? Essas práticas, apesar do maior controle atual, ainda são recorrentes. Almir foi um dos precursores (e, de longe, o mais contundente) na denúncia da venalidade da cartolagem, das confederações e da grande imprensa esportiva. O que sucedia no campo tinha origem, em alto grau, fora dele. É uma regra desde sempre no profissionalismo. A diferença é que ele interiorizava essa faceta mais sombria do seu meio numa entrega suicida que mais nenhum outro jogador ousou, antes ou depois. A ponto de converter isso no seu estilo de jogo. Cheio de nuances, o Pernambuquinho. Muito mais complexo que o estigma que lhe pregaram no nome.

Sobre ele há, impresso, Eu e o futebol, biografia originalmente publicada em capítulos pela Revista Placar do final de 1972 até o início de 1973. É o relato em primeira pessoa transcrito pelos jornalistas Fausto Neto e Mauricio Azedo que acabaram se vendo obrigados antes da hora a incluir, subitamente e quase em primeira mão, o seu ponto final: – não havia sido encerrada a publicação quando ele foi assassinado numa briga de bar em Copacabana. O motivo? A se confiar no testemunho de elevado teor etílico de Mario Prata, ocasionalmente presente à cena do crime, o ex-jogador tentava defender alguns membros do grupo Dzi Croquetes de uma agressão homofóbica. Essa versão casa com o que sempre esperavam dele os mais próximos: a valentia de Almir era motivada pela defesa daqueles que julgava em desvantagem, conhecidos ou não. Muito frequentemente, era provocado a promover o seu particular senso de justiça metendo a mão em oponentes sem avaliar estatura ou quantidade numérica. Um anti-herói trágico em estado permanente de catarse, digamos assim.

“Eu fui um marginal do futebol”, a confissão que abre as suas memórias, tem implicações que escapam ao moralismo de plantão da nossa crônica esportiva. Sua figura rompe com o lirismo vazio da mesma lógica cultural que insiste em reduzir a infinita humanidade de Garrincha a uma caricatura de bobo da corte.

A questão que me motivou a escrever estas linhas é a seguinte…

Almir é quase que totalmente ausente das telas de cinema. Causa angústia que uma persona tão imensa não tenha sido objeto da devida atenção da Sétima Arte. O fundamental Passe livre, de Oswaldo Caldeira, poderia ser citado por abordar, ao longo de alguns minutos, a trajetória do jogador. Mas aí já não vale tanto, afinal, o documentário, lançado em 1974, é sobre o craque Afonsinho, quando ainda atuava profissionalmente e lutava contra os dirigentes que procuravam sabotá-lo por ser ele dono do próprio passe. Almir comparece ali encarnando uma outra linhagem de jogador rebelde que também veio a enfrentar dificuldades na carreira. E, claro, o fato de ter morrido durante as filmagens acabou colaborado como o pretexto (que diria, necessário) para a sua aparição em cena.

A confirmar que o audiovisual não o ignorou completamente, houve um desses “Casos Especiais” no início dos 1980 sobre um personagem inspirado nele que não deu em muita coisa além de um processo movido pela família do jogador por uso indevido da sua imagem – mesmo que por sugestão – contra a emissora de TV que o exibiu. Quem assistiu garante que a associação era direta demais na caracterização do protagonista e na reconstituição dos episódios da sua vida.

De resto – se isso conta –, há um roteiro incompleto sobre ele escrito a quatro mãos por mim e meu irmão (que também assina o argumento). Incompleto porque a falta de horizonte acabou tomando conta da paisagem. As perspectivas nulas de uma produção mínima que viabilizasse o projeto comprometeram o nosso ânimo. Mas um dia o retomamos.

Por um tempo imaginei que uma coprodução anglo-brasileira poderia dar vida à cinebiografia do Pernambuquinho com um suposto atestado de maior conhecimento de causa. A Inglaterra, berço do não de graça intitulado “violento esporte bretão”, conta com uma torcida que cultiva abertamente o apreço pela violência campal. Não é exagero, é só uma questão cultural. Certa vez, num pub em Los Angeles, um amigo brasileiro pôde testemunhar as reações da colônia britânica local diante da transmissão de um jogo da Copa de 1998. Os gols que deram a vitória ao escrete da Rainha renderam bem menos brados e brindes que uma solada, em pleno ar, num rosto adversário. Mas tive que reavaliar a ideia. Se, entre nós, a desmemória é a constante, a dos europeus é, de um modo geral, o menosprezo pelo Terceiro Mundo. O mercado cinematográfico internacional reflete isso claramente. Mesmo com relação a uma potência como o futebol brasileiro que, apesar do 7 x 1, ainda é, pelo critério da contagem de títulos mundiais e de craques, mais “desenvolvido” que o das seleções do Velho Mundo. Quem o diz é a isenta perspectiva histórica, não eu.

Touro indomável, obra-prima de Martin Scorcese, narra a ascensão e a queda de Jake LaMotta, peso médio colecionador de títulos e problemas pessoais. Ao longo da vida profissional e particular, Almir também conheceu ascensões e quedas. E não foram poucas. Entrar e sair delas era a sua rotina. Sem ufanismo, considero que o craque brasileiro é, do ponto de vista dramático, e mesmo da ação esportiva, de maior apelo e interesse que o campeão norte-americano dos ringues. Almir transcende o realismo rasteiro com que costumam ser abordadas os maiores nomes do nosso futebol. Tanto pelo senso comum como pela nossa tradição cinebiográfica dentro do tema.

Entre tantos lances em campo protagonizados por seu destemor, há um que resume tudo. E é puro cinema…


O pênalti cavado por Almir e convertido por Dalmo é um momento ainda não reproduzido à altura pela verve humana

O pênalti cavado por Almir e convertido por Dalmo é um momento ainda não reproduzido à altura pela verve humana

Quem nunca jogou, mas pelo menos já assistiu a uma partida, conclui fácil que um dos chutes mais violentos é aquele cuja maior frequência é na “zona do agrião”, como cunhou Saldanha. Onde, sem pudor, o defensor desfere o bico para despachar a bola para o mais longe possível, afastando o perigo. Pelo Santos, trajando a mítica camisa 10 de um Pelé sem condições de jogo, Almir não hesitou em pôr à prova a sua integridade física, ou mesmo a própria vida, num gesto que foi o mais sublime holocausto. Algo impensável num jogador profissional. Em nome da vitória a qualquer custo na decisão que valeria o bicampeonato mundial interclubes contra o Milan, em 1963, ele decidiu interceptar, com a própria cabeça, o percurso percorrido entre a chuteira do zagueiro Maldini e a bola para garantir que a taça fosse em definitivo para a Vila Belmiro. Foi assim que um Maracanã lotado testemunhou a maior conquista do clube paulista em sua fase áurea. O pênalti cavado por Almir e convertido por Dalmo é um momento ainda não reproduzido à altura pela verve humana – apesar do flagrante fotográfico que ilustra este texto ser brilhante e bem mais eloquente do que qualquer frase dele. Mas não falo só de estética, o que já seria muito. Falo mesmo da impossibilidade de um gesto similar a esse se repetir em campo. É uma questão de verve também, não só de bravura.

Almir, o Pernambuquinho, é da estirpe dos que souberam como resistir ao referido “processo civilizatório” inaugurado pelo navegador comandante e a sua lusa gangue. O seu senso de sacrifício, sem pretensões messiânicas ou exemplares, nunca poderia ter sido negligenciado. Proponho uma campanha de reabilitação do seu nome, da sua imagem e da sua memória. Poderíamos lançá-la em conjunto com aquela outra, a da desmilitarização dos espaços públicos do país. Mil vezes mais o anti-heroísmo de Almir que o heroísmo de vitrine de um Duque de Caxias. Dar valor a quem tem valor de verdade é uma iniciativa igualmente valorosa.

Fica aqui a sugestão.

PS: O youtube retirou do ar o vídeo do primeiro tempo, na íntegra, da primeira partida decisiva entre Santos X Milan. Mas este aí já dá uma ideia do que o Almir fez naquelas duas noites de 1963. Os trompaços que ele aplica em Amarildo com menos de um minuto de jogo para vingar Pelé também pertencem ao Mito. (No vídeo, a saída de bola é aos 04:35.) Repito: Almir fez da vida real puro cinema.

FUTEBOL SÃO ONZE

por Lucio Branco


No muro, Barba, Cabelo e Bigode, personagens do documentário

No muro, Barba, Cabelo e Bigode, personagens do documentário

“No princípio era o Verbo”.

Meio pretensioso, e até desnecessário, admito, citar o Evangelho de S. João logo na abertura da minha primeira colaboração aqui no Museu da Pelada. Foi só para evitar a expressão “Pontapé inicial”, um clichê que soaria muito óbvio no primeiro parágrafo da estreia de uma coluna intitulada “Futebol Arte”. Em suma, preferi um clichê a outro.

Mas vamos lá…

Como é sabido, as vanguardas do início do século XX não escondiam a sua falta de apreço pelos museus. Os dadaístas, por exemplo, proclamavam a sua destruição imediata. É uma atitude que faz sentido no Velho Mundo. Aqui, ela parece bem menos recomendável. Cultivador da desmemória, o Brasil não fez a mais básica lição sugerida pela História: conhecê-la primeiro. E é justamente o que o Museu da Pelada faz, em tempos de progressiva mercantilização do jogo. O site resgata o seu passado e assume lugar na linha de frente da sua valorização como manifestação sociocultural de primeira grandeza. Realmente, os museus poderiam contribuir em ser, geralmente, bem mais do que depósitos de mofo a expor o já consagrado. Não é o caso deste Museu, o qual, antes de tudo, exercita a memória para compensar a atual aridez de novidades verdadeiramente relevantes no mundo profissional da bola.    

Curiosamente, no “país do futebol” o legado deixado por craques, times, clubes, etc mais antigos tem pouco espaço até mesmo na construção do imaginário popular. Faça o teste: pergunte a qualquer torcedor o que ele sabe sobre o seu time antes de ter começado a acompanhá-lo. Para não fugir ao tema, “Quem vive de passado é museu” é quase sempre a resposta automática. No caso, um ditado bem mais pretérito do que aquilo que ele acusa. E com o mesmo grau de legitimidade, por exemplo, que o ainda surpreendentemente vivo “Futebol é o ópio do povo”. Ou seja: nenhum. (Apesar do empenho em contrário das forças política e economicamente interessadas.)

Quando o Sergio Pugliese me convidou, há alguns dias, para colaborar com o site, não pude dar outra resposta senão “Agora!”. 

O primeiro contato entre nós partiu de mim, há mais de um ano, ao lhe apresentar o meu projeto de documentário em longa-metragem, Barba, Cabelo & Bigode, sobre a trajetória dos craques da bola e da consciência Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição. Os personagens/narradores do filme também já haviam marcado presença na sua coluna “A pelada como ela é”, por tanto tempo hospedada n’O Globo. Estava eu, então, em luta pelo financiamento coletivo (crowdfunding), para dar início às filmagens. Com certeza intuindo nossas afinidades no universo em questão (embora ele vascaíno e eu botafoguense), Pugliese foi monumental no incentivo. E, de lá pra cá, a coisa fluiu como deveria – escrevo logo após as últimas horas da segunda campanha formal de crowdfunding relacionada ao filme, agora destinada a sua finalização. A meta foi atingida e Barba, Cabelo & Bigode sai ano que vem. Confiem nisso.

Sem rodeios, o Pugliese fez a proposta: – “Relaciona aí futebol com cultura em geral: cinema, literatura, música etc, você sabe…”. A resposta veio no mesmo tom: – “Deixa comigo”.

Sustento que o association, ele próprio, é uma das inúmeras formas de expressão cultural que passou a trilhar um caminho próprio desde que aportou no Brasil. Acredito que isso é uma fatalidade sob o sol que nos ilumina: tudo se aclimata ao seu brilho. Garanto: determinismo zero na afirmação.

Mas não se trata de uma exclusividade nossa – cada país, região ou localidade no mapa-múndi responde pela espontaneidade e autonomia na importação de qualquer fenômeno cultural. A tão acionada antropofagia oswaldiana/tropicalista até poderia servir como chave de interpretação do que falamos aqui, caso o autor de O rei da vela e os posteriores baianos entendessem mais da modalidade que consagrou artistas bem mais populares que eles. (Uma ressalva: Gilberto Gil, autor do célebre verso “Prezado amigo Afonsinho”, demonstra saber do que fala no seu depoimento para Barba, Cabelo & Bigode.) As artes dialogam com o futebol porque têm com ele um nítido parentesco. Cinema, poesia, música e dança já estão ali desde o primeiro toque na pelota. Considerando a contribuição brasileira na renovação técnica, dinâmica e corporal do esporte, fica ainda mais evidente que é de estética que estamos tratando aqui.

Como este é um texto introdutório da minha colaboração com o site, adianto que escreverei sobre personagens e passagens da História do futebol que me parecem os de maior relevo, apesar de, na imensa maioria das vezes, a versão oficial desta não achar o mesmo. E, claro, sempre conforme a sua dimensão cultural, como o Pugliese pediu.

Para concluir, confesso: originalmente pensei em “Futebol são onze” para o nome da coluna. Depois, concluí que “Futebol Arte”, como me foi sugerido pelo Pugliese, era mais pertinente pela abordagem dela. Façamos justiça: o aforisma “Futebol são onze” é fruto da verve do Nei Conceição. Em meio às inúmeras perguntas do roteiro de Barba, Cabelo & Bigode, ele saiu-se com esse súbito insight. O Nei, um tímido que sabe falar muito com tão pouco, tem familiaridade com a transcendência. Essa sentença, creio, guarda um significado que vai muito além da sua circunscrição originalmente desportiva. Já a testei em mais de uma conversa alheia ao “violento esporte bretão” e não fui interpelado a respeito. Para mim, bastou como prova do seu inegável alcance metafísico.

Recomendo o uso.