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Eternidades

“See me feel me touch me… Heal me”

por Daniel Lessa

Bom, você deve estar se perguntando o porquê de alguém começar um texto sobre um time de botão com uma letra do The Who. Hmmm, talvez você também esteja questionando que raios é The Who (um grupo inglês de rock, formado na década de 60) e o que é um time de botão. Mas calma, tudo vai fazer sentido. Ou não, mas é sobre sentidos que quero falar.


Tommy é personagem e nome da ópera-rock mais famosa do universo. Ele era era cego, surdo e mudo e, ainda assim, campeão mundial de pinball… O que é pinball? O Google ensina, avancemos. Ah, time de botão era o equivalente, até os anos 80, ao que são FIFA e PES no PlayStation… Um quadrado de madeira no gol, dez botões, um campo de compensado, duas balizas e uma bola (muitas vezes um pequeno dado, um cubo minúsculo).

Eu tinha uns dez anos… talvez 12. E meu pai era o Tommy do futebol de botão. Ele não era cego, surdo ou mudo… Mas como jogava. E parecia surdo-mudo, pois raramente falava durante a partida. Normalmente dizia apenas o “prepara” que antecedia o arremate, geralmente fatal. E como enxergava… Posicionava o goleiro de forma que me parecia impossível chegar às redes.

Sempre foi assim. Jamais venci o coroa no botão. Aliás, nem lembro de ter feito gols nele… Não havia tática que funcionasse. Eu sempre perdia. Eram 10 minutos de partida e a derrota garantida. Ele posicionava seu time sempre da melhor forma. E dificilmente errava uma jogada. E batia sempre colocado, irretocável…

Um dia, compreendi. Eram os botões. Meu pai tinha botões magníficos. Eram verdadeiras preciosidades – e ele conferia um tratamento especial a seus craques. Ele tinha uma flanela costurada com lugar para cada um deles. E com numeração na flanela… Ele passava talco em seus jogadores. 

Ele não falava, mas com certeza tinha nome para cada um… Certamente, ídolos do seu amado Fluminense. Havia um botão que, tenho certeza, cadenciava como o Didi. Acho que tinha também o Telê Santana, pau para toda obra… E Pintinho, Rivelino, Escurinho, Castilho, Waldo.

Era fato que ele tinha ciúme de seu time. Não nos emprestava – tenho mais dois irmãos, fregueses também do velho. Um dia, cheguei à conclusão de que, para encará-lo, precisava de jogadores tão bons quanto aqueles. Eram botões realmente especiais, da década de 60 – provavelmente a era de ouro dos botões, lindos exemplares de galalite.

O coroa teve compaixão e me emprestou alguns de seus reservas. “See me… feel me… Touch me”. Levei outra sova. E tinha isso. Meu pai era o maior gente boa. Mas era cego, surdo e mudo ao jogar botão: atuava com seriedade e sem dar margem a possíveis jogos de compadre – ou de pai para filho mesmo. E era campeão mundial também… Pelo menos lá na Visconde de Itamarati, no bairro do Maracanã. Invencível.

Os anos se passaram e a mesa, que achava enorme, foi ficando pequena. Meu time foi aposentado. Troquei a palheta dos botões por uma de baixo… Jamais aprendi a tocar direito o instrumento, provavelmente fui melhor jogando botão do que tocando contrabaixo… E olha que o coroa me incentivou a tocar.

Mas um dia, o velho, que na verdade era novo, ficou doente. Ele tinha 43 anos quando se foi. Eu sei lá o motivo, mas na partilha informal das coisas que nada valem, fiz o artilheiro. Oportunista, me antecipei e catei os botões dele. A razão eu mesmo nunca entendi… Jamais joguei botão nesses 19 anos sem ele. Não que eu me lembre.

Mas, por várias vezes, me peguei orgulhoso olhando sua coleção. As balizas sumiram, o campo foi pro lixo… Mas, agora, pensando cá com meus botões, é óbvio que quis guardar um pedaço da minha infância comigo… Quis guardar um pedaço do meu pai. E ainda que eu, assim como ele, não acredite em nada que não sejam os 90 minutos regulamentares que temos aqui nessa Terra, quem há de saber se ainda não terei mais uma chance naquele campeonato chamado eternidade… Mais prudente guardar os nossos times. Pois tudo que mais queria era poder ouvir pelo menos mais uma vez aquele “prepara…”

See Me
Feel Me
Touch Me
Heal Me
See Me
Feel Me
Touch Me
Heal Me
Listening to you, I get the music
Gazing at you, I get the heat
Following you, I climb the mountain
I get excitement at your feet
Right behind you, I see the millions
On you, I see the glory
From you, I get opinion
From you, I get the story
Listening to you, I get the music
Gazing at you, I get the heat
Following you, I climb the mountain
I get excitement at your feet
Right behind you, I see the millions
On you, I see the glory
From you, I get opinion
From you, I get the story

A CAMISA DO MEU PAI

por Sergio Pugliese



Sergio e o pai Raphael Pugliese, no portão onde era o gol

Sergio e o pai Raphael Pugliese, no portão onde era o gol

Certa vez jogava linha de passe com alguns amigos de Santa Teresa quando meu pai voltando do trabalho, de roupa social, parou no meio da Ladeira do Meireles, assoviou e, batendo no peito, pediu para cruzarem a Dente de Leite. “Dá na caixa, Gordo!”. 

Devia ter 12 anos e foi a primeira vez que vi meu pai se relacionar com uma bola. Era boêmio e morreu poucos anos depois de cirrose hepática, efeito de uma mistura fatal: uísque, Haloperidol e Amplictil, remédios para amenizar seus sintomas de esquizofrenia. Falava pouco, mas era divertido, encantador. Conversava sobre futebol, mas nunca o vi chegando de uma pelada, controlando uma redonda, se recuperando de contusões ou desfilando com camisas de times, mesmo sendo tricolor de coração. Por isso senti uma ponta de constrangimento quando o Gordo olhou para mim como se pedisse autorização para lançar a bola. O que resultaria dali? Meus amigos já haviam presenciado meu pai mergulhado em delírios, por isso o estranhamento, a dúvida. Autorizei, claro! Havia aprendido com Ciça, minha mãe, que sua única diferença era viver em dois mundos, mas lembro dela me garantindo: “Ele é feliz em ambos!”. 

E era a pura verdade. Meu pai, Raphael, ou Rapha, ou Velho, ou Raphinha ou Faelzinho, volta e meia saía de “nossa órbita” e se transportava para “outro mundo”. Lúcido, em tratamento, geralmente preferia os bares, os amigos, as noitadas. Claro que suas crises nos desgastavam. Tínhamos poucas e desencontradas informações e seu médico particular também morreu esquizofrênico. Eu e Bruno, meu irmão, crescemos assim. Minha mãe, rolo compressor, se desdobrava em três empregos. Mas em algum momento _ nunca entendemos o real motivo _ ela se desentendeu com a família de meu pai e houve um racha. Ainda garotos, nos afastamos de nossos tios e primos, e o tempo foi em frente. 


Sergio e o irmão Bruno na Ladeira do Meireles, em Santa Teresa

Sergio e o irmão Bruno na Ladeira do Meireles, em Santa Teresa

Há um mês estava saindo de uma reunião, no Centro, quando fui checar os emails no celular e achei essa mensagem arrasa quarteirão: “Caro colunista, há algum tempo venho pensando em escrever-lhe, mas alguns motivos me detiveram. O primeiro a habitual falta de tempo e o segundo, e principal, a abordagem. Serei mais claro. Por força da minha formação, e profissão, sou muito direto e o caso merecia um pouco mais de sensibilidade. Como não nos vemos há muitos anos, muitos mesmo, entendo e aceito que não se lembre de mim. Entretanto, soube por um amigo que você não lembra de ter um tio chamado Amaury. Fiquei surpreso, mais que isso, triste. Triste porque apesar desses anos eu não esqueci do seu pai, de você, de cabeleira preta, e do seu irmão Bruno cantando `Tomara que chova 100 dias sem parar´. Mas, tudo certo, eu sou seu primo mais velho e consegui fixar melhor na memória. Dizem que o futebol une pessoas e povos. Espero que seja o nosso caso. Já que você fala e escreve sobre pelada queria lhe perguntar uma coisa. Você sabia que seu pai, quando jovem, era peladeiro e jogava num time chamado Forró Social Clube? Pois jogava, e bem. Por uma dessas obras do destino guardei uma camisa do time, que a essa altura já deve ter 60 anos, e gostaria de dar de presente para vocês dois, num almoço. É uma lembrança muito bacana de nossos pais, que foram grandes amigos até o fim de seus dias. Amaury.” 

Quando terminei de ler não tive outra alternativa. Encostei numa banca de jornal e chorei. Foi uma emoção devastadora. Há 37 anos não tinha qualquer contato com meu primo Amaurizinho. Nessa coluna posso descrever um pouco do estranho e fascinante mundo dos peladeiros. Ela me diverte, emociona, ensina e agora resolveu vasculhar minha vida. Diariamente, recebo e-mails hilariantes, nostálgicos e carinhosos, e no meio deles surge essa bomba atômica. Vocês devem estar se perguntando como alguém pode esquecer de um tio. Claro, que isso foi um engano. Nunca esqueceria de meu tio Amaury ou de qualquer outra pessoa de minha família. Mas tudo foi esclarecido em nosso reencontro. E que reencontro! 

Aconteceu em Santa Teresa! Fui o primeiro a chegar. Depois, Bruno, Amaurizinho e, em seguida, seu irmão Mauro China. Não dava para negar que todos eram da mesma família. O escracho foi geral. Em minutos todos já eram os melhores amigos da garçonete, abraçavam o chef, criticavam o cardápio, achavam os pratos caros e firulentos e riam de tudo. Não teve choro. Foi como se não nos víssemos há semanas. Ninguém questionou o motivo de uma ausência tão longa. Todos só queriam estar ali, gargalhando o tempo perdido. Quando estávamos quase pedindo a conta, não resisti. 

– Mas, cadê a camisa do Forró Social Clube? 
 


Na foto, da esquerda para a direita, Mauro China, Bruno e Amaury

Na foto, da esquerda para a direita, Mauro China, Bruno e Amaury

Ela estava bem embrulhada num papel prateado, dentro de uma bolsa. Eu estava paralisado. China contou que durante todos esses anos a camisa foi protegida por um quadro de vidro. O pacote foi sendo aberto. Ela estava desbotada, mas linda! Parecia a descoberta de um tesouro perdido. Meu pai era peladeiro! Um boêmio como ele só poderia jogar no Forró Social Clube! Quando segurei aquela camisa guardada há 60 anos me senti realizado e ri sozinho lembrando da tensão desnecessária vivida por mim quando ele pediu a bola “na caixa” ao Gordo. Não fazia ideia de suas habilidades e quando o Gordo cruzou a bola acompanhei, sem piscar, todo o seu trajeto até ela pousar, mansa, em seu peito. Então, ele iniciou uma série de embaixadinhas enquanto subia a ladeira. Controlou a bola até se juntar a nós na linha de passe. O constrangimento virou orgulho! Aquilo era real! Foi a primeira vez que joguei com o meu pai! Foi um dia marcante, especial demais em minha vida. Nunca soube em qual mundo ele estava sintonizado naquele momento. Extasiado, foi para casa e quando cheguei já dormia como um anjo. Me deitei a seu lado e por toda a noite sonhei com aquele lance.

(publicada em novembro de 2010 na coluna A Pelada Como Ela É)