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andré felipe de lima

VELUDO QUERIA UM FILHO CENTROAVANTE. NÃO DEU TEMPO

por André Felipe de Lima


O bairro da Saúde, na zona portuária do Rio, presencia hoje merecida revitalização. Foi lá, nos tempos em que foi reduto da boemia e da malandragem carioca, em que nasceu no dia 7 de agosto de 1930 o cidadão Caetano Silva, que anos depois ficaria conhecido como Veludo, apelido que recebeu em 1947 do escritor e imortal da Academia Brasileira das Letras Otávio Faria. Foi com o mesmo apelido que se consagrou no futebol brasileiro, especialmente no Fluminense. Foi, sem dúvidas, mesmo sendo a “sombra” do magistral Castilho, um dos melhores goleiros da história do Tricolor. Tanto é verdade que o seu talento, mesmo sendo reserva de Castilho, garantiu-o na seleção brasileira que embarcou para a Suíça, sede da Copa do Mundo de 1954. “Não ganhei nada com o futebol, apenas injúrias”, lamentava-se no final da carreira. A amargura teve começo, meio e fim. Era, portanto, justificada por uma vida muito difícil antes mesmo de o futebol entrar em sua vida.

Veludo perdera o pai ainda bem pequeno e teve, ainda adolescente, de trabalhar na estiva para sustentar a mãe, dona Joana, e os irmãos Jerônimo, Paulo Roberto, Neusa e Júlia. Ora carregava sacos mais pesados que o próprio corpo, ora era o goleiro titular do Harmonia, time de peladeiros da Saúde. Na final do campeonato de peladas do bairro, contra o Atilia, um camarada conhecido como “Espanhol” insistiu para que Veludo fosse com ele às Laranjeiras para um teste. Veludo foi. Newton Cardoso, que era o técnico dos juvenis, gostou dele. Ficou por lá mesmo.

Orgulhava-se apenas do filho Anselmo Perdomo Silva. Jamais da carreira. Tinha verdadeira paixão pelo menino. “Quero ser jogador do Flamengo”, dizia o garoto para o pai. “Seja centroavante, meu filho. A posição de goleiro não é mole”, aconselhava sabiamente Veludo.

A vida sorriu marota para o grande goleiro. E isso é verdade. Viveu o céu e o inferno. Negro, sofreu com o preconceito. Superava isso com a bravura nos gramados. Um genuíno herói. Fora dele, era sempre muito mais difícil lidar com os graves e hipócritas desníveis sociais. Jamais soube lidar com esse injusto e imoral desafio, que representa o racismo.

Igualmente grande escritor como Otávio Faria, Luis Fernando Veríssimo esboçou uma digressão sobre o racismo de que fora vítima Veludo: “Cresci ouvindo dizer que o melhor goleiro do Brasil era Veludo. Reserva do Castilho no Fluminense e tão bom que era reserva do Castilho na seleção. Só não era o titular, diziam, porque era negro […] estereótipos racistas sobre agilidade e elasticidade até favoreciam uma tese inversa, a de que o negro mais confiável do que o branco no gol. Mas quando o Barbosa deixou passar aquela bola de Ghiggia, em 50, o preconceito, até então disfarçado, endureceu e virou superstição.”

Veludo sofreu talvez até mais que Barbosa com racismo tupiniquim. Mergulhou em profunda depressão no começo dos anos de 1960. Decidiu abandonar tudo em 1963, quando jogava no Renascença, de Belo Horizonte. Didi e João Saldanha chegaram a convidá-lo para treinar no Botafogo. Mas era tarde demais. Veludo fora engolido pela atormentada alma.

O amado filho jamais teve tempo de responder ao pai em que posição decidira efetivamente jogar. Veludo, vítima da diabetes, acentuada por conta do alcoolismo, não resistiu. Castilho, de quem foi grande amigo, presidia a Fundação Garantia do Atleta Profissional (Fugap). Ajudou-o com internações e o acompanhou até o fim, em outubro de 1970.

Partira Veludo para o andar de cima. Mas deixou uma história singular. Foi um ídolo, e como todos os grandes, merecidamente amado e injustamente odiado. Um gigante do futebol e uma personagem singular que nem mesmo o mais trágico dos poetas ousaria entortar a prosódia ao decantá-lo em prosa e verso. Veludo tem história.

SIRI, MOLECAGEM, PELADA E UM CAMISA 10 GENIAL!

por André Felipe de Lima


O Santos apenas se preparava para iniciar a disputa do Campeonato Paulista. Era agosto de 1978. O time era talentoso, porém uma incógnita. Na escalação, figuravam nomes relativamente desconhecidos. Todos muito jovens. Dentre os meninos, um se destacava e vestia justamente a camisa mais sagrada da história do futebol mundial: a de número 10, do Rei Pelé. Os torcedores alvinegros debruçavam-se com cara de sonho e olhar para o futuro. Sabiam que ali, na Vila Belmiro, não despontavam mais os ídolos de outrora. Não havia mais Zito, nem Mengálvio. Tampouco Dorval. Nem Coutinho ou Pelé. Pepe ou Gilmar? Iguais a todos eles, certamente nunca mais. Havia, contudo, esperança naqueles homens indefectivelmente vestidos de Santos empoleirados na grade que cercava o campo. Miravam aquele menino magrelo, convictos de que o futuro seria generoso com eles. O garoto tinha uma classe que mais lembrava outro camisa 10 famoso, mas o do rival Palmeiras. Sim, o meia-esquerda Edivaldo de Oliveira Chaves, que todos chamavam de Pita, sempre esteve mais para Ademir da Guia que para o Pelé.

Humilde, o mirrado Pita, que morava na concentração do clube, sabia, no entanto, que sobre seu ombro pesava uma missão, e que jamais deveria decepcionar o séquito que o acompanhava em todos os treinos, em todos os jogos daquele Santos que nascia para fazer do clube novamente um gigante. “Penso sim em me tornar ídolo, pois todo jogador pensa assim”. Personalidade não lhe foi negada pelo destino. Havia um ídolo santista que o apoiava, que apostava no garoto Pita. Clodoaldo não cansava de aconselhá-lo. “Não caia em farras, menino!” ou “Nada de cigarros. Vê lá, garoto!”, dizia sempre ao Pita. “Quando venho treinar de manhã, com os olhos fundos, ele fica falando: ‘Chega tarde em casa e agora não quer correr, né?’”. Clodoaldo sabia (e muito!) o que estava fazendo.

Pita não era bobo. Além dos conselhos do Clodoaldo, ouvia os do velho João Albuquerque Chaves, ou “João da Fazenda”, que jogara como volante no Náutico em 1946. O carinhoso pai alertava-o para que não tivesse medo de cara feia ou da fama dos adversários. Afinal, o coroa era o melhor pai do mundo que o Pita poderia ter. João tinha imenso orgulho do filho.


Foi assim que a camisa 10 do Pelé passou para Pita, quando tinha apenas 19 anos. E, quem diria, foi um cracaço argentino o primeiro perceber o talento inato no jovem menino, que nascera em Nilópolis, na Baixada Fluminense, no dia 4 de agosto de 1958. Ora, argentino, porém ídolo santista, igualmente ao severo protetor Clodoaldo. Estava tudo em casa. Com toda a manha milongueira, Ramos Delgado tinha olhos de ver para além do normal. Enxergava onde poucos viam. Foi assim com Pita. Ele o viu jogando e logo percebeu que ali, diante dele, encontrava-se um dos diamantes mais preciosos da Vila Belmiro após a Era Pelé.

O Santos embarcara para a terra do Ramos Delgado, que naquele instante era o técnico do time. Na agenda, alguns amistosos. Para o refinado menino Pita chegara a hora da verdade. Delgado acreditou nele e o mandou a campo contra um time de Salta e o Talleres de Córdoba. Deu tudo certo. Jogou demais. Voltou ao Brasil, pegou o Flamengo pela frente, no Pacaembu, e ganhou em definitivo a sagrada 10. O também canhoto Ailton Lira perdera, portanto, a vez no time do Santos.


Pita jamais teve vida fácil. Nasceu na Baixada Fluminense, mas foi morar ainda pequeno, com a família, no litoral paulista. No acostamento da Via Anchieta, trabalhava, ainda menino, como vendedor ambulante. Ele em pé, com um arame no qual havia pendurados siris. Vendia-os, escondido da mãe, para os desavisados turistas que pela estrada passavam rumo à praia ou que faziam a mão inversa, regressando para a Paulicéia. Pita era um menino levado. Vendia por farra. Queria apenas uns trocados para o guaraná e o cinema. Mostrava-se prestimoso. Oferecia-se aos clientes para colocar o siri no porta-malas. E quem disse que cumpria o combinado? Os trouxas motoristas voltavam para São Paulo sem siri e sem dinheiro. Ao contrário do Pita, que descia a estrada feliz da vida com a grana no bolso e os siris a tiracolo. Nenhum motorista jamais voltou para dar uma coça no garoto magrelo e malandro. Com 13 anos, acabara a fase aventureira com os crustáceos e a bola roubava Pita para si. Paixão à primeira vista, que se transformaria em amor eterno, com um correspondendo indistintamente ao carinho do outro. A bola e o Pita. Pita e a bola.

Nas areias de Santos, a pelada rolava solta e Pita era a estrela do Casqueiro, time do humilde bairro Jardim Casqueiro, em que morava, em Cubatão. Dali, a Portuguesa Santista o levou. Após dois anos, o juvenil do Santos passou a ser sua morada. O que poucos sabem é que trocou de clube não pelo fato de jogar futebol no time que foi um dia de Pelé, mas sim porque na Vila davam ao pobre menino Pita passes de ônibus de ida e de volta para casa. A necessidade era mãe da vontade. Se a primeira fosse correspondida, a segunda nasceria.

A vida de Pita não foi fácil. A família era muito humilde. O sustento vinha de um modesto botequim do pai. Mas Deus e o talento que ostentava reservaram ao moleque um destino exitoso. “A bola ficou com o Pita e eu fiquei com os cálculos”, dizia o velho João da Fazenda. Em 1977, já estava entre os profissionais. Brilhou para o treinador Formiga, em 1978/79, quando o introvertido Pita comandou os famosos “Meninos da Vila” e resgatou ao autoestima santista ao conquistar o Campeonato Paulista de 78, cuja decisão só aconteceu em junho do ano seguinte. “Hoje quem não é santista em Casqueiro, é ‘sampita’. O corintiano, o palmeirense, o são-paulino. Todos torcem pelo Pita”, asseverava o pai do craque.

Seus lançamentos eram impressionantes. Lembrava Gerson, o “Canhotinha de ouro”, nos momentos mais sublimes em campo, quando colocava até mesmo um bode cego na cara do gol. “Olha, eu sou sincero: não treino lançamentos. É uma coisa que eu trago comigo desde os tempos dos juvenis. Sempre gostei de lançar.”

O maestro Pita comandaria o Santos até meados da década de 80. Antes de trocar a Vila Belmiro pelo Morumbi, Pita levou o time da Baixada Santista ao vice-campeonato do Paulistão de 1980 e ao vice-campeonato brasileiro de 1983, quando time se descontrolou em campo e facilitou a vida do Flamengo. “Chegou a hora de sair do Santos. A proposta do São Paulo é excelente, significa a minha independência financeira”. Gostava do Santos. Estava há 11 anos no clube. A torcida, embora Pita pedisse compreensão, não tolerou perdê-lo. Nos muros da Vila Belmiro, pichavam que “Pita não faz igrejinha”.


Em 1984, Pita chegava ao Morumbi, numa negociação em que o São Paulo cedeu ao Santos o ponta-esquerda Zé Sérgio e o volante Humberto. Igualmente na Vila Belmiro, Pita tornou-se ídolo no Morumbi. O tricolor montou um timaço, que tinha como cérebro o grande Pita. O maestro. O melhor camisa 10 que o Santos teve… depois do Pelé, claro.

DINO DA COSTA, O PRIMEIRO BRASILEIRO ARTILHEIRO DO CALCIO

por André Felipe de Lima


Dino da Costa foi o primeiro brasileiro a se consagrar no “Calcio” (como chamam o futebol na Itália) ao se tornar artilheiro do Campeonato Italiano, quando marcou 22 gols com a camisa da Roma na temporada 1956/57. O centroavante nasceu no Rio de Janeiro em 1º de agosto de 1931. Das peladas nas ruas da Penha, na zona norte do Rio, em um clube do mesmo bairro em que morava, para os juvenis do Botafogo, em 1947, deu os seus primeiros passos no futebol.

Quem o levou a General Severiano foi seu tio Rogério. Quando chegou ao time de aspirantes, Dino teve sua primeira chance entre os profissionais graças ao técnico Pirillo, craque de bola em passado ainda mais remoto, vestindo as cores do Internacional, do Peñarol, do Flamengo e do próprio Botafogo. A estreia aconteceu durante a vitória de 3 a 0 sobre o Madureira, no dia 14 de abril de 1951. No jogo, Dino marcou dois gols. Ele e o ponta-direita Joel, que trocaria General Severiano pela Gávea numa das transações mais polêmicas do futebol carioca do início dos anos de 50, tinham acabado de sair do time de aspirantes.

Mais tarde, sob o comando do folclórico técnico Gentil Cardoso, garantiu a vaga de titular e, de quebra, foi renovando contratos vantajosos a ponto de conquistar um salário de onze mil cruzeiros mensais, em fevereiro de 1955. Estava a meses, portanto, de ter o passe negociado ao futebol italiano.


Dino partiu, mas deixou bons investimentos com o que ganhou no Botafogo. Comprou três terrenos no interior do Estado do Rio de Janeiro. Foi, contudo, no campo de futebol suas mais significativas conquistas. Dino da Costa consagrou-se como artilheiro do Campeonato Carioca de 1954, com 24 gols, jogando sempre pelo Botafogo, único clube que defendeu no Brasil antes de se transferir para o futebol italiano.

Embora desejasse ser artista de rádio, um anseio de muitos jovens de sua época, a vocação para o futebol era latente e a de goleador simplesmente espantosa. Que o digam os rivais do Botafogo. No tradicional clássico “Vovô”, contra o Fluminense, Dino da Costa marcou 11 gols, marca que o posiciona em segundo lugar, atrás apenas de Heleno de Freitas, na lista de artilheiros alvinegros contra o Tricolor. Frente ao Flamengo assinalou seis vezes e contra o Vasco, sete. Apesar da excelente performance diante dos rivais, Dino confessou ao repórter Isaac Cherman, em 1955, que o Botafogo era “clube mais azarado do Brasil”.

Após uma excursão à Europa em 1955, a diretoria do Fogão vendeu, além do próprio Dino da Costa, que passou a vestir a camisa da Roma, seus outro excelente atacante, o craque Luiz Vinícius de Menezes, conhecido como “Leão de General Severiano”, que seguiu para o Napoli. Com o passe de Dino e Vinícius, o Botafogo embolsou 10 milhões de cruzeiros, o equivalente a 50 mil dólares na época.


O último jogo de Dino da Costa pelo Alvinegro aconteceu no dia 9 de julho de 1955, em Praga, na vitória de 1 a 0 [com gol de Vinícius] sobre o Dínamo. Dino vestiu a camisa do Botafogo em 176 partidas e marcou 144 gols, sendo artilheiro também do torneio Rio-São Paulo de 54, com sete gols.

As negociações dos passes de Dino da Costa e Vinícius renderam uma fortuna ao clube, mas também uma grita incessante dos torcedores. No primeiro jogo, contra o Vicenza, no dia 18 de setembro de 1955, Dino da Costa marcou um gol na goleada de 4 a 1 da Roma sobre o Vicenza, clube em que seu ex-companheiro de Botafogo jogaria na década seguinte. A torcida Alvinegra ficou revoltada, e não era à toa, já que ao fim da temporada italiana de 1956/57 Vinícius foi o segundo artilheiro, com 18 gols, atrás apenas de Dino, que assinalou 82 gols pela Roma em 163 jogos, incluindo os da Série A, disputados entre 1955 e 1960.

Dino da Costa permaneceu no futebol italiano, onde também se destacou na Fiorentina, pela qual disputou 30 jogos e marcou oitos gols, e no Atalanta, com 52 jogos e 18 gols, de 1961 a 63. Rodou por vários clubes da “vecchia bota”, vestindo as camisas da Juventus, pela qual marcou 12 gols, Hellas Verona e Ascoli, último clube da carreira, na temporada 1967/68. De 1955 a 1968, o desempenho do jogador brasileiro na Série A do Campeonato Italiano foi extraordinário: marcou 108 gols em 282 jogos.

Cidadão brasileiro, porém oriundi, Dino da Costa obteve a dupla nacionalidade e chegou a entrar em campo uma vez pela Squadra Azzurra. O jogo aconteceu no dia 15 de janeiro de 1958 e a Itália perdeu de 2 a 1 para a Irlanda do Norte, com um gol dele, o implacável Dino da Costa. Mas o jogo valia muito. Era decisivo para ver quem iria à Copa do Mundo de 1958, a ser realizada na Suécia. Foi a última vez que a Itália ficou fora de uma Copa. Dino formou o ataque da Azzurra com outros dois grande nomes do futebol sul-americano, os uruguaios (e oriundi como ele) Alcides Ghiggia e Juan Alberto Schiaffino, que nos fizeram chorar na final da Copa de 50, no Maracanã.

Quando encerrou a carreira nos gramados, o ex-atacante do Botafogo ingressou imediatamente em outra profissão que não lhe afastasse do futebol: a de treinador.
Poucos ainda se recordam do craque Dino da Costa no Botafogo, mas o goleador é considerado um dos maiores artilheiros da história do Fogão e incontestável ídolo da história da Roma.

***

A biografia de Dino da Costa consta do quarto volume (de um total de 18), a Letra “D”, da enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, que será lançada no primeiro semestre de 2018, pela Livros de Futebol.com. Ainda este ano, disponíveis no mercado os dois primeiros volumes, as letras “A” e “B”. Aguardem!

 

AMARILDO NÃO FOI PELÉ, MAS ENCARNOU DOSTOIEVSKI… E GANHAMOS A COPA

por André Felipe de Lima


“Repito: — os profetas escorriam como a água das paredes infiltradas. Não se dava um passo sem tropeçar, sem esbarrar num profeta. E o que diziam eles? Diziam a vitória do Brasil e mais: — profetizavam o nascimento de um novo Pelé. Eu próprio escrevi, na minha crônica de anteontem: — o novo Pelé era moreno, e antecipei minúcias e fui mais longe. Dei o nome do novo Pelé: — Amarildo.”

Ao escrever estas palavras após a vitória de 2 a 0 do Brasil sobre a Espanha, pelas oitavas de final da Copa do Mundo no Chile, em 1962, Nelson Rodrigues anunciava, evidentemente em tom exagerado, que Amarildo, o “Possesso”, seria o “gênio” que ocupava a vaga de outro gênio, no caso Pelé. Amarildo, ora, foi realmente um jogador excepcional, mas compará-lo a Pelé foi um dos raríssimos equívocos do [esse sim] genial cronista e dramaturgo, que, na mesma crônica, insistia no deslumbramento: “‘O autor do Amarildo é o Dostoievski!’. E, realmente, nunca vi na vida real um sujeito tão possesso e, por carambola, dostoievskiano. […] E eu “vi”, no momento do gol, “vi” Amarildo, a cara, o peito, a loucura de Amarildo. De seu lábio pendia a baba elástica e bovina dos possessos. Nas páginas de Dostoievski é assim que os possessos babam profissionalmente.”


Embora Pelé seja intocável, compreende-se Nelson Rodrigues. Afinal, Amarildo, naquele dia contra os espanhóis, estava além do humano, demasiadamente humano. Mais que um “dostoievskiano” ostentava em campo uma alma “nietzschiana”, com os requintes dionisíaco e apolíneo comuns ao futebol brasileiro [Armando Nogueira adoraria isso…]. Quem assistiu ao jogo ficou inebriado. E com justíssima razão.

Nelson sabia das coisas. Vaticinara, em sua coluna, na edição de O Globo, do dia 2 de maio de 1962, ou seja, a um mês da Copa, que Amarildo se consagraria: “Amigos, vai acontecer com Amarildo o que aconteceu com Garrincha na Suécia. Em 1958, Feola não queria lançar ‘seu Mané’. Os jornais esbravejavam:, ‘O Brasil tem o maior reserva do mundo!’ Só contra a Rússia é que finalmente deu o estalo redentor. Feola escalou Garrincha. E, na primeira bola que recebeu, ‘seu’ Mané liquidou o inimigo. Pois bem: Amarildo irá para o Chile como o maior reserva do mundo, também. No terceiro jogo, ou quarto, sei lá, vai ser lançado como um cristão às feras. E, pela primeira vez, veremos um cristão a devorar leões.”

Amarildo, um fora de série. Um craque, demasiadamente craque. Isso, meus caros, não se discute.

***

Assim é o começo da biografia do aniversariante do dia 29 de julho, o craque Amarildo, que consta do primeiro volume (de 18), a Letra “A”, da enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, que será lançada ainda este semestre, pela Livros de Futebol.com.

A PELADA QUE FEZ DE TELÊ ÍDOLO OU OS SONHOS COM OS GOLS DO ADEMIR

por André Felipe de Lima


Houve um tempo em que a Vila da Penha, bairro do subúrbio carioca, tinha, pelo menos, uns oito campos para os peladeiros de plantão. Isso por volta dos anos de 1950 e 60. Dentre os craques dos pés descalços, um era famoso, notório fominha de peladas e ídolo. Sim, ídolo, e do Fluminense. O camarada em questão era o Telê Santana, que batia ponto (ou uma bolinha, como queiram) em praticamente todos eles. Jamais teve medo de macular o pé na terra batida, orgulho dos genuínos peladeiros, como o ex-craque vascaíno Ely do Amparo e o cidadão Antônio Ribeiro, o “Galego”. Os dois juntavam-se a Almir dos Santos, vizinho de Telê, e todos acompanhavam o craque das Laranjeiras ao campo disponível na Vila da Penha. Momento sublime em que ignoravam existir vida fora da pelada.

Telê morava na Praça do Carmo, lá mesmo na Vila da Penha. No edifício Mello, que fica (ou pelo menos ficava) na esquina da Avenida Vicente de Carvalho com Avenida Brás de Pina. “Morei ali por aproximadamente oito anos, entre os anos 50 e 60. Me dava bem com todos, mas tinha mais afinidade com o Ely do Amparo. Era uma grande figura. Quando queria encontrar os amigos, ia até o Bar do Gouveia, que ficava na Avenida Meriti, em Vila Kosmos. Quase nunca estava em casa nos fins de semana. Quando não estava jogando, aproveitava para levar meus filhos à praia, na Ilha (do Governador)”. declarou à repórter Alba Valéria Mendonça, em 1994, semanas após conquistar o segundo Mundial Interclubes no comando do São Paulo.

Pelada. Se algum jogador de futebol profissional, sobretudo os de hoje em dia, disser que jamais gostou dela, estará mentindo. Todos (invariavelmente todos) disputaram-nas avidamente. Hoje, por exemplo, é dia do Telê. Nada mais apropriado que lembrarmos dele falando da alma peladeira que ostentava. Verdadeira pedra preciosa e bruta da qual foi lapidada o ídolo. “Prefiro empatar jogando um bom futebol do que ganhar um jogo com uma atuação medíocre” ou “Se coibirem a violência, vão acabar esses técnicos de beira de estrada”, ensinava o Mestre Telê, que muito conquistou com o futebol, tanto como jogador quanto como treinador. Um rosário interminável.


Como jogador do Fluminense – onde iniciou a carreira na década de 1940 — foi campeão carioca duas vezes (1951 e 1959) e também duas vezes campeão do Torneio Rio-São Paulo (1957 e 1960). Mas a maior conquista de todas com a camisa tricolor aconteceu em 1952, a Copa Rio Internacional, uma espécie de Mundial de Clubes. Foi também nas Laranjeiras que Telê começou a carreira de treinador. Em 1967, com a equipe juvenil. Mas já em 1969 mostrou que seria um grande técnico ao conduzir o time na vitoriosa campanha do Campeonato Carioca. Foi o primeiro troféu na nova carreira. Veio depois o Campeonato Brasileiro com o Atlético Mineiro, a seleção brasileira nas Copas do Mundo de 1982 e 86 e o São Paulo, com o qual foi bicampeão mundial e da Taça Libertadores da América, em 1992 e 93.

Nenhuma destas conquistas o emocionou mais no futebol que um gol que sequer assistiu ao vivo. Naquela tarde, jamais imaginara que um dia se tornaria o “Fio de esperança” da torcida tricolor. “A minha grande emoção, senti como torcedor, quando, ainda jovem, em São João Del Rei, ouvi pelo rádio o gol de Ademir contra o Botafogo, que deu ao Fluminense o título do Super Campeonato Carioca de 1946”. Sim, Telê era Fluminense de quatro costados.

Foram 12 anos nas Laranjeiras, com 557 jogos disputados e 164 gols assinalados. Uma carreira praticamente toda dedicada ao clube que tanto amara. Se o corpo franzino era franzino, sobrava-lhe impetuosidade em campo e, sobretudo, gols decisivos nos finzinhos dos jogos. Vem daí o apelido “Fio de esperança”, mesmo nome do filme americano “The High and the Mighty” dirigido por William A. Wellman e estrelado por John Wayne, este coadjuvado por Claire Trevor, Laraine Day e Robert Stack. Bom filme.

Telê foi um grande campeão dentro e fora do campo. A fama de turrão como treinador nada mais era que um estilo preocupado em fazer o melhor. Errou, é verdade, muitas vezes. Mas acertou muitas outras, e em maior número. O respeito que conquistou incomodou incompetentes e invejosos. Muitos queriam ser um “Telê” ou estar no lugar em que ele estava, conquistando títulos e a idolatria das torcidas. O mestre protagonizou muitas histórias de alteridade e dignidade, como a que teria se recusado a ser o único autorizado a sair pelo portão social do Fluminense após um treino nas Laranjeiras. Os jogadores haviam sido barrados. “Ou saímos todos juntos por aqui, ou vou pular o muro com os jogadores”. Em Telê não cabia o preconceito. Mas o grande craque saiu muito magoado do Fluminense, no final da temporada de 1961. Seu filho Renê, ainda pequeno, não suportou a ideia de o pai romper com o clube de coração. O menino chorou. Telê também.

“Saí do Fluminense por causa de 30 mil cruzeiros. Quando assinei meu último contrato, um diretor do clube (o cartola em questão era o Wilson Xavier) me garantiu que o Fluminense estava me pagando o máximo, mas que se aumentasse o ordenado de outro jogador ou se contratasse algum em bases mais elevadas, eu seria equiparado. Faltavam quatro meses para terminar meu contrato quando o Fluminense contratou Humberto, Calazans e aumentou os ordenados de Pinheiro e Castilho. Mas não me aumentou sequer em um cruzeiro. Um outro diretor (Telê jamais revelara o nome) me disse que o Fluminense não me daria nem um centavo a mais. Eu não estava exigindo o atrasado, queria só o aumento dos meses seguintes, mas o clube mesmo assim negou. Foi depois disso que me deram passe-livre. Fui uma espécie de Tiradentes do Fluminense, com a coincidência de que o mártir da nossa Inconfidência também era mineiro. Nunca provoquei casos no Fluminense. Pelo contrário, sempre facilitei em tudo, sem exigir ordenados iguais a outros companheiros. Apesar de tantas injustiças de que fui vítima, continuo querendo bem ao Fluminense. Entendo que os maus diretores passam, mas a glória do clube fica.”

Com o passe sob seus cuidados, vendeu-o para o Guarani por um milhão de cruzeiros da época, recebendo 40 mil mensais de ordenado. Tinha mais seis meses de contrato a cumprir, mas os negócios da família forçaram o regresso imediato ao Rio. Teve uma saída difícil do clube de Campinas, que não queria liberá-lo de jeito algum. Após intervenção de cartolas do Madureira, que sensibilizaram os do Guarani, Telê conseguiu deixar Campinas e rumou para o tricolor suburbano, que pagou 500 mil cruzeiros de multa ao Guarani, além da realização de um jogo amistoso em Campinas, cuja renda seria destinada exclusivamente para o clube paulista.

A passagem pelo Madureira foi improdutiva. Decidiu parar com o futebol. Permaneceu um ano e meio longe das chuteiras, mas decidiu voltar aos gramados em outubro de 1965, pelo Vasco: “Eu estava no Maracanã, assistindo a um jogo ao lado do meu amigo Teixeira Heizer (jornalista, morto em maio de 2016), quando ele, em meio ao bate-papo, perguntou-me porque eu não voltava a jogar. Disse-lhe que já considerava encerrada minha carreira de profissional da bola e que somente concordaria em voltar se fosse para atender àquele a quem muito devo o que consegui no futebol: Zezé Moreira. O que disse chegou aos ouvidos de Zezé e ele me convidou a treinar no Vasco.”

Telê, quando deixou os gramados, virou sorveteiro. Abriu a Telê-Sorvetes, que ficava na rua Guaporé, número 599, em Brás de Pina, subúrbio carioca. Foi o primeiro a fazer sorvete de queijo no Rio. Primazia que sempre tomou para si. “Fui o primeiro. A receita é da minha sorveteria”, dizia. Ficava fulo da vida se o contrariavam em relação ao sorvete de queijo. Quem sugeriu a ideia do negócio foi Clodovê, irmão mais novo do Telê. Goitê, o outro irmão, ajudou no empreendimento.


A mesma competência que empregava com o sorvete, Telê a executava com a bola nos pés. “Enquanto Telê estivesse em campo, não havia jogo perdido para o Fluminense”, escreveu o cronista Nélson Rodrigues, fã declarado de Telê.

Mineiro, de Itabirito, Telê faria 86 anos hoje. A dedicada professora de sua infância, Olimpia Centra Mourão, de quem Telê jamais esquecera ao longo da vida, teve muito orgulho do aluno disciplinado. Nós também, dona Olimpia. Nós também.