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andré felipe de lima

FIGUEROA, O ‘PATRÃO’ DA ÁREA OU O MAIS BONITO DO VERISSIMO

por André Felipe de Lima


Falcão, quem diria, não foi unanimidade entre os torcedores do Internacional. O vaticínio soaria sacrilégio se a revista Placar, em uma edição especial de dezembro de 2005, não confirmasse o zagueiro Figueroa como o único a receber todos os votos de torcedores ilustres do Colorado reunidos para eleger o time dos sonhos do Internacional. “Não precisa explicar”, disse Mário Marcos de Souza, co-autor do livro História dos Grenais, para quem Figueroa não exigia elucubrações mais complexas. Era craque e ponto final. Ademais, como o próprio costumava alegar: “Vitórias não se merecem, se conquistam.”

Os 320 jogos e os 26 gols com a camisa rubra fizeram do grande zagueiro um dos maiores jogadores de todos os tempos do futebol gaúcho. Na defesa, mandava Figueroa. Era o “patrão da área”, o “capitão dos Andes”. Há quem defenda com ardor a tese de que a história do futebol dos pampas deva ser contada antes e depois da passagem de Figueroa pelo Inter. E quem discordaria do mago das letras Luis Fernando Verissimo, que durante um jantar oferecido ao ídolo em sua casa, em que compareceram Bráulio, Carpegiani e outras celebridades coloradas, constatou o imponderável? Além de craque, o “patrão da área” declamava Pablo Neruda como poucos: “E na saída do jantar, já na rua, olhando as estrelas, o Figueroa lascou o Neruda — Figueroa é fã de Pablo Neruda, especialmente do “Poema 20” — diante de uma platéia fascinada: “Puedo escribir los versos más tristes esta noche. Escribir, por ejemplo: la noche esta estrellada Y tiritan, azules, los astros, a lo lejos…”. O Ruy [Ruy Carlos Ostermann, jornalista e, obviamente, colorado em várias encarnações] descreveu a cena na sua coluna do jornal Correio do Povo, dias depois. Estava lançado o mito. O homem, além de tudo, era um intelectual!”. A verdade é que o escritor encontrou-se outras vezes com Figueroa. Esperava ouvir dele comentários revestidos de vigorosa erudição sobre a literatura latino-americana, mas os encontros nem foram tantos assim e tampouco o papo era intelectual. Na pauta das conversas, um único tema: futebol. “Ele e a Marcela [esposa do craque] eram pessoas inteligentes e agradáveis, mas depois daquela noite estrelada o Neruda nunca mais foi citado”, conformou-se Verissimo.


Elías Ricardo Figueroa Brander nasceu em Viña del Mar, no Chile, dia 25 de outubro de 1945. Defensor técnico e preciso nos desarmes, era vigoroso nas disputas de bola, porém leal. O “Xerifão” costumava se referir a grande área como uma propriedade: “A área é a minha casa, aqui só entra quem eu quero”. Mas havia os mais abusados que ousavam entrar em sua “casa” sem serem convidados. Ah, os incautos… e Figueroa usava os cotovelos “com alguma prodigalidade”, como escreveu Veríssimo, para “punir” os atacantes. Nada pessoal. Só não permitia invasão de domicílio. Isso, nunca.

Antes de brilhar com as camisas de Internacional e da seleção chilena, Don Elias Figueroa teve de travar uma batalha contra problemas de saúde na infância. Passou por uma operação para sanar um problema respiratório que não o permitia praticar esportes quando ainda tinha apenas seis anos de idade. Logo depois, aos dez, o adversário era a poliomielite [paralisia infantil] que o obrigou a um ano de tratamento, a maior parte do tempo deitado sobre uma cama. Porém, cercado de cuidados da família e, quem sabe, graças a uma mãozinha dos deuses do futebol, estaria de pé novamente. Saiu da infância e tão logo entrou na adolescência surgiu o casamento. Figueroa tinha apenas 16 anos e Marcela, o amor de infância, 15.


O primeiro clube da carreira foi o Santiago Wanderes, em 1963. No ano seguinte, teve uma rápida passagem pelo Unión La Calera. Depois, mais duas temporadas no Wanderes quando foi convocado para defender o Chile na Copa do Mundo de 1966*. Conseguiu destaque internacional e logo surgiu o interesse do Peñarol. Fez grande sucesso no aurinegro onde conquistou o bicampeonato uruguaio [1967 e 1968] e logo se tornou ídolo da torcida.

Em 1971, o Peñarol passava por dificuldades financeiras e teve que negociar o jogar. O Internacional disputou o passe do craque com o todo poderoso Real Madrid e no fim o Colorado levou a melhor. Para Figueroa a escolha foi mais do acertada: “Tive a oportunidade de sair para os dois lados. Escolhi o Inter e fico feliz pela escolha que fiz”. Desembarcou em Porto Alegre, no dia 11 de novembro de 71, ao seu lado o vice-presidente de futebol do Inter, Eraldo Hermann, que alegava ter sido Figueroa a contratação mais expressiva da história do futebol gaúcho. O marketing era nada mais que uma resposta ao rival, que contratara o melhor zagueiro da Copa de 1970, o uruguaio Ancheta, semanas antes. “O Internacional não podia ficar atrás. Toda a história moderna do futebol gaúcho está contida nesta frase: nem Inter nem Grêmio podem ficar atrás um do outro, sem o risco de crise e revolta da torcida”, escreveu Luis Fernando Verissimo, para quem Figueroa, além de mais craque que Ancheta, era “mais bonito”. E parece que o cartola Hermann compreendia bem a frase citada pelo escritor colorado. No ano seguinte, com Figueroa quase intransponível, o Inter conquistou o Campeonato Gaúcho e, em 1973, alcançou o “penta” estadual.

Entre os vários motivos que fizeram Figueroa optar pelo futebol brasileiro, um em especial nos leva a pensar sobre os rumos do esporte no País: “Eram muitos atletas de alto nível, por isso era melhor jogar aqui”. E ele tinha razão, quase todos os tricampeões mundiais jogavam no Brasil. Algo improvável nos tempos atuais é ver um grande craque atuar por um clube brasileiro.

Figueroa chegou ao Beira-Rio para dividir com Falcão a liderança do time na fase áurea do Internacional. Os números são impressionantes de 1971 a 1976, ganhou todos os campeonatos gaúchos. De quebra, o escolheram como o melhor zagueiro da América do Sul por três anos consecutivos [1974, 75 e 76] e participou das Copas de 1966, 1974 e 1982, na Inglaterra, na Alemanha e na Espanha, respectivamente. Na de 1974, foi considerado o melhor defensor.

Em 1975, o capitão fez o gol que garantiu o primeiro título brasileiro da história do Internacional. Na tensa final contra o Cruzeiro, em pleno Beira-Rio, marcou o “gol iluminado” ao cabecear a bola cruzada por Valdomiro para o fundo das redes de Raul Plasmann. O “gol iluminado” ficou conhecido desta maneira porque foi assinalado no único local do estádio onde batia a luz do sol naquela tarde.

No ano seguinte, a forte equipe gaúcha seria novamente a dona do Brasil ao conquistar o bicampeonato nacional. A final foi disputada mais uma vez no Beira-Rio, só que o adversário era o Corinthians. Após fechar a partida em 2 a 0, a taça novamente era erguida pelo inesquecível capitão colorado. Também em 1976, o Inter travou contra o Cruzeiro um dos jogos mais emocionantes dos anos de 1970. Palhinha, então ponta-de-lança cruzeirense, tinha o hábito de provocar os adversários. Fez troça logo com quem… “Palhinha vinha com aquele papo de ‘você não joga nada’ ou ‘vou te quebrar’. Isso me chateava. Ele jogava muito, não precisava desses recursos. Um dia, na Libertadores de 1976, rebentei a cara do Palhinha. Ele jogou sangrando. Na volta, em Belo Horizonte, tentou fazer o mesmo comigo e foi expulso. Eu dizia: ‘Me bate de frente, Palhinha’. Mas ele vinha por trás. Gosto de nego valente.”

Não era só dentro de campo que o zagueirão se destacava. O estilo galã e o porte físico do jogador atraíam a torcida feminina.


Em meados de 1973, um repórter resolveu fotografá-lo nu, de costas, após uma partida quando Figueroa ainda trocava de roupa no vestiário do Estádio dos Eucaliptos. A foto foi estampada em uma charge de Marco Aurélio, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. O escândalo transformou o jogador em um símbolo sexual, mas também despertou nos cartolas da Federação Gaúcha de Futebol um arroubo moralista [ou seria despeito?…]. O campeonato foi interrompido durante uma semana por causa da bunda do Figueroa: “Depois o fotógrafo disse que só queria mostrar que eu era de carne e osso. Pô, que me mostrasse no supermercado ou algo assim”. Aurélio premeditou tudo. Queria mesmo era espetáculo, polêmica. Ele mesmo reconheceu isso. “A Jacqueline Kennedy Onassis havia sido flagrada nua por paparazzi em uma ilha grega. O escândalo foi total. Eu resolvi tentar o mesmo estardalhaço por aqui”. O chargista combinou tudo com o fotógrafo do Zero Hora, Hipólito Pereira. Os dois seguiram para o estádio do Beira-Rio, mas os jogadores colorados estavam no Eucaliptos. Ambos mudaram o rumo e seguiram para o local onde poderiam flagrar Figueroa. Foram barrados pelo segurança e, pacientemente, aguardaram o final do treino. Diante do basculante do vestiário, promoveram o clique mais causticante daquele ano. “Eu dei o pé para o Hipólito subir. E ainda assim ele foi obrigado a erguer a máquina e disparar, nem viu direito o que estava acontecendo no vestiário”. Figueroa, garantiu o chargista, foi o que menos se sentiu incomodado com a história. O zagueiro recebeu a solidariedade de todo estado. Era gente da Igreja Católica, políticos, cartolas [inclusive do Grêmio] e torcedores mais sentidos com aquilo tudo. Aurélio é quem penou. Teve de conceder entrevistas para Deus e o mundo — até mesmo para o programa televisivo do apresentador Flávio Cavalcanti — e quase foi linchado em um restaurante por colorados mais exaltados. O principal executivo do Grupo RBS, proprietário do Zero Hora, Maurício Sirotsky, deu o caso por encerrado ao não passar as fotos para outros veículos e entregá-las a Figueroa. No final das contas, o campeonato foi paralisado pela foto da bunda do zagueiro chileno e o Inter conseguiu recuperar uma penca de craques contundidos. Tudo a tempo para o elenco levantar o pentacampeonato estadual. Restou ao treinador Dino Sani agradecer ao chargista, como descreveu o cronista Marcelo Xavier: “Você venceu o campeonato para nós.”

Polêmica e muitas glórias depois, Figueroa trocou o Inter pelo Palestino, do Chile, em 1977. O craque passou ainda pelo futebol dos Estados Unidos, onde defendeu o Fort Lauderdale Strikers. O último clube do eterno capitão chileno foi o chileno Colo-Colo, onde encerrou a carreira em 1980, aos 36 anos de idade. No time americano, Figueroa, após cotovelada de um adversário, quebrou o maxilar e teve de levar quarenta pontos no rosto. Queria voltar a campo, mesmo machucado, para bater no jogador. Contido, levaram-no para o hospital.


Enquanto vivia intensamente a paixão pelo esporte bretão, Figueroa foi se preparando para o momento em que deixaria os gramados. Iniciou a carreira de treinador no Palestino e, em seguida, retornou ao Inter, em 1995, para atuar como gerente de futebol. Neste período, chegou a assumir o cargo de treinador do Colorado.
O craque passou a fazer de tudo um pouco. Como empresário, assumiu uma distribuidora e importadora do vinho Dom Elias, em Porto Alegre.

Com consciência da importância do estudo, fez faculdade de jornalismo e permaneceu ligado ao esporte exercendo a profissão de comentarista e de diretor da Universidade do Esporte, no Chile. Ciente de sua posição de ídolo, o ex-atleta também dá exemplo de cidadania ao se dedicar ao programa Futebol pela Paz, da Organização das Nações Unidas. Figueroa preside um grupo de ex-jogadores que faz parte do projeto que luta contra a pobreza e auxilia crianças carentes pelo mundo.

Nas lembranças de colorados, nunca deixará de existir. Luis Fernando Verissimo guarda até hoje, como relíquia, a foto ao lado do ídolo, tirada em sua casa, durante um churrasco que marcou a despedida de Figueroa, em 1977, entre uma partida e outra de totó: “Nosso zagueiro ia embora, mas nos deixava a memória de uma fase incrível que hoje parece tão remota quanto nossas calças”.

***

#Ídolos #DicionáriodosCraques #EliasFIgueroa #SCInternacional

ANA MARIA PAULINO, A ‘LEILA DINIZ’ DAS PELADAS DO ATERRO

por André Felipe de Lima


Ana Maria Paulino

Mineira, natural de Belo Horizonte, onde nasceu no dia 7 de novembro de 1942, Ana Maria Paulino foi um dos principais nomes do ciclismo brasileiro na década de 1950, quando pedalava pelo antigo Ciclo Clube Monark do Rio de Janeiro presidido por José Bonifácio Paulino, seu pai, que foi ao lado do Mário Filho um dos maiores incentivadores dos populares Jogos da Primavera. Ana Maria foi também uma grande velocista do Vasco da Gama e do Fluminense. Defendeu-os em corridas e saltos e foi recordista nos 100 metros rasos, no arremesso de peso e no arco e flecha. Completa! Mas o que teria Ana Maria Paulino a ver com futebol? Por que, afinal, escrevemos sobre ela em uma página voltada para o futebol? Foi Ana, a grande atleta do passado, a primeira mulher a treinar no Brasil um time de futebol em uma conceituada competição de… pelada.

Sim, Ana Maria Paulino assumiu o comando dos times de peladeiros do Monark e, alguns anos depois, do Getúlio Futebol Clube, que competiram no famoso Campeonato Carioca de Pelada patrocinado pelo Jornal dos Sports e pelo Super Tênis Bamba 704 no final dos anos de 1960 e começo dos de 1970. Até que se prove o contrário, foi ela a primeira mulher a dirigir marmanjos peladeiros. Até 1971, quando comandava o “Getúlio”, jamais tinha ido ao estádio do Maracanã. “Mas não será por isso que não poderei dirigir um time”, rebatia, na lata, qualquer pergunta mal intencionada.

A primeira técnica de futebol era fã do Zagallo e afirmava categoricamente que o seu time jogava como Fluminense da época, campeão brasileiro de 1970. Com um ar professoral, mostrava a todos que a abordavam os caminhos táticos para vencer nas peladas do Aterro: “Nos campos do Parque do Flamengo, a armação da equipe é um dos fatores principais para se vencer o jogo. Primeiro, precisa-se ter um goleiro bem dotado fisicamente, pois não tendo impedimento, o goleiro precisa estar mais do que atento para sair em qualquer jogada. Três zagueiros plantados, dois jogadores que façam um vaivém constante no meio campo e mais três jogadores na frente. Dois deles, de preferência devem ser ponteiros, pois uma das grandes armas de um time é ter um jogador driblador que conduza a bola pelas laterais do campo e depois coloque o atacante na frente do gol”. Ana sabia das coisas.

A treinadora não era propriamente uma “Yustrich” de saias, mas não abria mão de um comportamento exemplar dos seus peladeiros no campo de barro: “Não admito palavrões, de espécie alguma. Uma vez entrei em campo para retirar meu time porque alguns jogadores cismaram de falar algumas ‘coisinhas’ para o juiz.”


A primeira vez que Ana Paulino deu pinta nas peladas do Aterro sofreu com o olhar enviesado dos machistas e sexistas infiltrados entre os peladeiros. Ela trazia a tiracolo uma mascote, um boneco do Bambi, personagem de Walt Disney. A moçada não levou muito a sério as pretensões da treinadora, mas, para a surpresa de todos, Ana dava um banho em muito “professor” de peladas do Parque do Flamengo. Com o tempo, a rapaziada acostumou-se com ela, que fazia do Monark e do Getúlio dois bons elencos peladeiros: “Um ou outro às vezes procura não me aceitar como sua orientadora, mas eu não perdoo. Tanto que três deles se afastaram e se organizaram para inscrever a sua equipe no Campeonato.”

Na época em que comandava os dois times, Ana estudava comunicação e trabalhava no Ministério da Saúde. “No Parque, eu já chorei, desmaiei, enfim, torci, dirigi e fiz tudo que qualquer outra pessoa poderia fazer”, afirmava.

Se no meio cultural a atriz Leila Diniz era exemplo de liberação feminina no final da década de 1960, nas peladas (ora, sim senhor), Ana Maria Paulino driblava com maestria o preconceito para se tornar a primeira mulher a treinar um time de peladeiros na história. Simplesmente épico! Mas fica a pergunta: por onde andará Ana? Quem souber, pode entrar em contato com esse repórter. Ana Maria Paulino faz parte da história da pelada brasileira.

‘SE EU PUDESSE, ME CHAMARIA ÉDSON ARANTES DO NASCIMENTO… BOLA’

por André Felipe de Lima


Um psicólogo disse um dia ao Pelé que ele tinha um elevado índice de agressividade, o que não condizia com o que se via do Pelé dentro e fora de campo. Intrigado com o laudo médico sobre o Rei, um repórter indagou se o inconfundível soco no ar após os milhares de gols que marcou era a prova cabal da explosão dessa contida e hipotética “agressividade”. O Rei respondeu o seguinte, como se mais uma vez, e poeticamente, driblasse um incauto marcador: “Perfeito. O gol, para mim, é um momento de explosão. E eu sinto isso desde garoto.”

O gol. O gol tem um irmão gêmeo, e se chama Pelé. Nasceram juntos, em Três Corações, de Minas Gerais. O que se compreendia como gol antes do Pelé, mudou completamente depois dele. O conceito é inexoravelmente outro. É aquela velha história do “A.C” e do “D.C”. Com Pelé e o gol funciona assim. Um sempre amou incondicionalmente o outro. Quantas vezes o gol “chorou” emocionado por Pelé? Quantas outras vezes foi Pelé quem chorou de felicidade pelo “irmão” que tanta alegria proporcionou mundo afora? “Não há nada mais alegre na vida do que uma bola quicando na área. Nem nada mais triste do que uma bola vazia”. Pelé está certo. Sem essa comunhão não há alegria.

Pelé sempre foi assim, como a nos ensinar que a vida é regida por Janus, um Deus bifronte greco-romano, que mostrava aos fiéis a bipolaridade essencial para tocarmos a vida, com erros e acertos. Pelé foi o “Janus” do futebol, mas, definitivamente, acertou muito mais do que errou. “Tudo o que tenho devo ao futebol. Se eu pudesse, me chamaria Édson Arantes do Nascimento… Bola. Seria a única maneira de agradecer o que ela fez por mim.”

Muita gente tem a ideia de que Pelé foi milionário. Informação relativamente correta, mas só que o Rei começou a ganhar muito dinheiro mesmo onze anos após o título da Copa do Mundo de 1958. Ele mesmo confirmou isso em entrevista à revista Veja, em 1974, preparando-se para abandonar a Seleção Brasileira: “Uma coisa é bom esclarecer: apesar de jogar no Santos desde 1956, só mesmo a partir de 1969 passei a fazer bons contratos. Em 1965, minha firma, a Sanitária Santista, faliu, e fiquei numa situação difícil. Se parasse de jogar, teria de vender propriedades e batalhar para manter meu padrão de vida. De 1969 em diante, comecei a ganhar muito dinheiro, inclusive com bons contratos de publicidade. Hoje tenho sítios, casas, apartamentos, ações, empresas e contratos publicitários com a Pepsi-Cola, Arcoflex, Sparta, Puma e Colorado RQ. Tudo isso me proporciona uma boa renda mensal de 300 mil cruzeiros [correspondente hoje a apenas 1,5 milhão de reais]. O suficiente para Pelé parar e Édson viver tranquilamente, sem medo de problemas financeiros.”

Pelé tem latente nele a humildade genial e incomparável dos ídolos de outrora. Dos verdadeiros gênios do futebol. “Quem segura a barra de Pelé e Dico é o Édson, que nasceu primeiro. Édson é um sujeito responsável, respeitável, por isso, teve condições de proteger o Dico como família e ajudar o Pelé a manter a humildade necessária para chegar ao sucesso sem se desviar no meio do caminho”. Palavras do próprio Pelé.

Ao contrário do que imaginavam há mais de 40 anos, o Rei não ficou rico como merecia. Em algum momento, o caminho lhe surpreendeu com uma estrada pedregosa e esburacada. O tempo em que reinou no futebol não era globalizado. O marketing em torno dele, constata-se hoje, era, por mais surreal que seja a afirmação, aquém do que a eloquente imagem dele exigia. Tudo o que vendiam sobre Pelé — insisto em afirmar — parece pouco ao comparamos com o que se vende hoje em virtude da velocidade da informação e da imperiosa multimídia.

Pelé, a figura mais popular do planeta. A mais pura verdade. Porém as fortunas que cercam as imagens de pernas de pau da atualidade mostram o retrato da injustiça que o impiedoso folhear dos calendários fez com o homem mais famoso do mundo.

Várias vezes lia-se nos jornais o título “Um nome que vale milhões”. Mais uma imaculada verdade. Como escrevera Nelson Rodrigues sobre Pelé, o que “chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado da alma”. A coroa do Pelé jamais lhe será tomada por déspotas cabeças de bagre e milionários que hoje pululam os meios de comunicação mais que as redes adversárias. “É um disparate pensar em arranjar um substituto para ele. Criem outros reis, mas o trono de Pelé é só dele”, disse sabiamente Nilton Santos, que por essa e outras era justamente chamado de “A enciclopédia”.

O pequeno Dico virou o prodigioso Pelé. Virou gigante. Virou imortal. Pelé e a sua doce “agressividade” ao dominar a bola, passar por um, dois, três… Pelé, lado a lado, sempre, com o seu querido e inseparável irmão, tão rei quanto ele: o Rei Gol.

POUCOS PERCEBIAM, MAS QUARENTINHA SORRIA

por André Felipe de Lima


A melhor dimensão do ser humano é a capacidade da alteridade. A capacidade de olhar para além de si, procurando no outro o complemento de uma identidade. Isso se chama: caridade. Faria 84 anos neste dia 15 o maior artilheiro da história do Botafogo. Faria anos Quarentinha, o que sorria pouco ou nunca. O que era amigo do Garrincha, que o chamava de “Cabeção”. Mas era a forma carinhosa que Mané encontrava para tratar aqueles que amava. Sim, Mané amava Quarentinha. Juntos, lá na área adversária, promoveram jogadas e gols memoráveis. Muitos falam de Pelé e Coutinho. Acho até justo. Porém Garrincha e Quarentinha também faziam das suas juntos. Faziam gols aos montes também. Quantas bolas do Mané foram parar adocicadas nos pés de Quarentinha? Invariavelmente muitas — para lá de 300 — pararam nas redes do infeliz goleiro que diante dele ousasse estar.

Na Seleção Brasileira, as estatísticas não mentem. Em 17 jogos marcou 17 gols. Média assim, nem Pelé. Ah, se Quarentinha tivesse mais oportunidades para jogar ao lado do Rei…


Vamos lá, resposta rápida: quantos gols teria marcado, afinal, o velho paraense Waldir Cardoso Lebrego, “amigo da Onça” dos goleiros caso os técnicos do escrete o percebessem? Não há como mensurar. Mas passaria — fácil, fácil — da centena. A canhota de Quarentinha tinha fogo, meus amigos. Por três vezes ela o fez artilheiro do Campeonato Carioca, em 1958, em 59 e em 60. Quarentinha, o infernal. Deveria sorrir, sim. Mas alegava que ao marcar gols cumpria a obrigação de um trabalhador. Muitos alegavam que a postura era antipática ou qualquer coisa assim. Nada disso. Quarentinha era na dele. Nada mais. Tinha orgulho de percorrer o mesmo caminho do pai, o famoso Quarenta do Paysandu. Só que o filho, de longe, superou o pai. Tornou-se o melhor centroavante da história do Botafogo.

Se desconhecia a pidedade com os goleiros, fora do gramado o Quarentinha era diferente. Uma alma das mais bacanas e generosas.

Em setembro de 1960, o zagueiro Hélio, do América — aquele mesmo, que teve a carreira tragicamente interrompida pela entrada criminosa do Almir Pernambuquinho —, encontrava-se em situação financeira lastimável. Longe dos gramados, pedia ajuda a todos, mas poucos estendiam a mão ao jogador.

A diretoria do América e ex-companheiros do time eram os únicos que ainda se preocupavam com seu ex-craque, com uma ajudinha ali outra acolá. Mas era pouco para que ele, Hélio, realizasse o sonho de ter uma casa própria, que oferecesse mais segurança a esposa e filhos. Bellini e um Almir que se dizia “repleto de remorso” ventilaram na imprensa a possibilidade de um jogo beneficente. Apenas farol.

“Não guardamos ódio dele (do Almir), pelo contrário, imploramos a Deus para que não aconteça o mesmo com ele. Só nos visitou dias após o acidente e depois nunca mais (…) Só pude comprar o terreno em Miguel Pereira, mas o acidente com Almir atrapalhou tudo, pois a casa que tinha sido iniciada está caindo aos pedaços. O dinheiro acabou. Confesso que esperava um pouco mais do futebol”, declarou Hélio.

Mas a surpreendente ajuda chegara afinal. Não partiu do rico e badalado Bellini e muito menos do intempestivo e irascível Almir.

Quarentinha, sim, o maior artilheiro da história do Botafogo, imortalizado pelos seus gols e jamais esquecido graças à preciosa pena do biógrafo Rafael Casé com a brilhante edição do Cesar Oliveira, foi quem financeiramente bancou a obra para que o pobre Hélio concluísse sua casinha em Miguel Pereira. Não houve muita publicidade sobre o fato, mas como me alertou o Casé houve menção do mesmo na biografia que escreveu sobre o Quarentinha. É louvável, acima de tudo, a postura do craque alvinegro. Ídolos do passado como Hélio e Quarentinha eram avessos a arroubos de vaidade. Havia uma preocupação entre pares futebolísticos. Mostrava-se solidariedade, na maioria dos casos, sem interesse ou com viés midiático. Como diz na Bíblia: “Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”.


Ídolo como Quarentinha, hoje em dia? Infelizmente, sem chance. Craque como ele, então… nem pensar. Resignados, contenhamo-nos com o que aí está. Enquanto isso, mais um gol da Alemanha.

O que nos conforta, contudo, é saber que um dia tivemos um Quarentinha entre nós, sorrindo igualmente a poesia com as quais sutilmente e para dentro nos debulhamos em lágrimas e em… amor.

 O AMOR MAIS QUE PERFEITO

por André Felipe de Lima


Apesar de ídolo do Flamengo, onde construiu uma grande carreira ao longo dos anos de 1940, a Era Maracanã conheceu um Zizinho craque banguense. Ele era o time. Tudo funcionava em função de suas jogadas magistrais, como escreveu o jornalista Armando Nogueira: “Eu lia Zizinho, todo domingo, no Maracanã.”

No dia 23 de julho de 1950, exatamente sete dias após o “maracanazzo” promovido pela seleção do Uruguai, Zizinho enfrentaria pela primeira vez o seu ex-clube. Parecia alheio ao jogo como se na mente ainda lhe povoassem as imagens da festa dos uruguaios, sobretudo de Obdúlio Varela. “Tive vontade de abandonar o futebol depois da Copa do Mundo. Passei quase uma semana sem poder dormir. Quando ia dormindo, tinha um pesadelo. Pensava que o jogo ainda não tinha começado. O Bangu quis me dar 15 dias de folga. Eu disse: ‘Não, não quero folga. Quero jogar. Se eu ficar parado vou enlouquecer, porque não consigo dormir. Preciso jogar pra não ficar maluco”, disse Mestre Ziza ao repórter Geneton Moraes Neto, para o livro “Dossiê 50”, documento imprescindível para a história do futebol.

A peleja entre Bangu e Flamengo fora apitada pelo lendário Mário Vianna. Vitória do rubro-negro (3 a 1). Os gols do Flamengo foram marcados por Aloisio, duas vezes, no primeiro tempo, e Lero, no segundo tempo. Djalma, de pênalti, descontou para o Bangu também na segunda etapa. Zizinho parecia ainda escondido, sem a alma do craque de outrora.
A situação não se repetiria três dias depois, quando os dois times voltaram a se enfrentar em outro jogo amistoso. O Bangu acordara e aplicara 4 a 2 no Flamengo. No apito, novamente Mário Vianna. Zizinho ainda não dera o ar da graça, mas seus companheiros Mirim, Djalma, Ismael e Moacir Bueno marcaram para o Bangu. Do lado do Flamengo, descontaram Arlindo e Gago.

Mas no dia 20 de agosto, o jogo era para valer. Zizinho, enfim, acordara. De súbito, renascera para bola e a bola para ele. Enfim, as pazes. E justamente o clube que o revelou, que o tornou uma das figuras mitológicas da história do futebol mundial, teve o privilégio de presenciar esse renascimento do craque. Mas será que Zizinho perdoaria o Flamengo?

Foi humilhante ver o time da Gávea perder de 6 a 0 para o Bangu. Aquele dia de agosto nunca saiu da memória de Zizinho. Moacir Bueno meteu dois gols, Sula fez de pênalti. 3 a 0 ainda no primeiro tempo. Na arquibancada, uma incrédula torcida do Flamengo. Alberto da Gama Malcher apita o começo do segundo tempo. Zizinho faz o dele. Era o que muitos acreditam ter sido a vingança. Joel, Sula e Simões ainda marcariam mais três. Estava consumada uma revanche que Zizinho nutria pelo seu ex-clube.

Vingava-se duas vezes num mesmo jogo. Talvez no lugar de homens vestidos de vermelho e preto enxergara jogadores de azul celeste… como o da blusa uruguaia. Mas também acreditava que aquela goleada foi a resposta aos cartolas da Gávea, que o venderam ao Bangu sem seu consentimento. “Estava magoado pela forma com que me dispensaram. Cheguei a jogar um campeonato inteiro pelo Flamengo com o tornozelo enfaixado. Eu tirava a bota de esparadrapo, depois das partidas, e meu tornozelo ficava enorme, completamente inchado. Passava a semana inteira sem treinar e no domingo jogava de novo. Até com a perna fraturada cheguei a jogar. Eu me sacrifiquei demais pelo Flamengo. Merecia mais consideração”, declarou Zizinho em depoimento reproduzido por Roberto Sander em seu “Os 10 mais do Flamengo”.

Os cartolas do Flamengo precisavam responder a Zizinho. Não podiam fazê-lo no campo, fizeram-no pelos jornais. Francisco de Abreu, vice-presidente do clube, defendeu o Flamengo em entrevista concedida ao Jornal dos Sports do dia 20 de janeiro de 1950. Alegara que o clube não queria vender Zizinho. É possível que Abreu estivesse blefando para não criar uma crise do clube com a torcida. Não havia outra hipótese.
Não é difícil entender, contudo, os motivos que indignaram Zizinho a ponto de ele guardar a mágoa com o Flamengo até o fim de sua vida.


Os rumores de que o Bangu queria Zizinho circulavam desde o começo do ano de 1950. O patrono do clube de Moça Bonita, Guilherme da Silveira, mais conhecido como Dr. Silveirinha, nunca escondeu o interesse pelo passe do craque. Freqüentador assíduo da tribuna social do Hipódromo da Gávea, Dr. Silveirinha encontrou em uma mesa do bar do Jóquei Clube o presidente do Flamengo, Dario de Melo Pinto. Ali começara a negociação pelo passe de Zizinho. 
Silveirinha ofereceu 400 mil cruzeiros. Melo Pinto disse que não haveria negócio naquelas condições. O clube suburbano subiu a oferta para 500 mil cruzeiros e parte da renda de dois amistosos entre os dois clubes. O presidente do Flamengo ironizou Silveirinha ao afirmar que o Bangu nunca teria dinheiro para contratar um jogador como o Zizinho. Guilherme da Silveira insistiu: “Se o Bangu tiver esse dinheiro, o Zizinho pode jogar no meu time?”.

O valor foi fechado na mesa do bar do Jóquei Clube, por surpreendentes 800 mil cruzeiros, que deveriam ser pagos à vista. O alvirrubro era naquela época um clube rico, o que não impediria o susto geral logo que a negociação fosse revelada à imprensa. Precisavam agora conversar com Zizinho.

Silveirinha, por intermédio do cunhado do craque, convocou Zizinho para uma conversa, como o craque revelou durante entrevista ao programa Bola da Vez, do canal ESPN, que foi ao ar no dia 16 de julho de 2000: “O presidente do Flamengo procurou o Dr. Silveirinha para pedir-lhe que interferisse junto ao pai dele, o Dr. Guilherme da Silveira, que era Ministro da Fazenda, para que a concessão da Loteria Federal, que era do Peixoto de Castro, também fosse para ele, Dario. E o Silveirinha disse: ‘Bem, Dario… eu faço isso, mas quero um favor seu também’. Dario respondeu: ‘Pois não, pede’. Veio o Dr. Silverinha e disse: ‘Só quero um jogador seu’. Dario disse: ‘Escolhe’. Silveirinha logo falou: ‘Só quero o Zizinho.’”

O assunto, mesmo após 50 anos, ainda desconcertava Zizinho. Isso ficou evidente durante a entrevista. Não eram lembranças saudáveis: a transferência traumática para o Bangu e, dias depois, a perda da Copa. A postura do Dr. Silveirinha intimidou Dario de Melo Pinto, que teria respondido ao cartola do Bangu que não poderia “dar” o Zizinho, mas que colocaria “um preço lá embaixo” para facilitar o negócio. Segundo Zizinho, o dirigente rubro-negro temia severas represálias dos outros cartolas da Gávea caso negociasse o passe do principal jogador do clube e ídolo máximo da torcida. “Um dia o Dr. Silverinha mandou me chamar lá na minha casa pra eu ir ao escritório dele. Ele me disse assim: ‘Mandei chamar o sr. aqui para saber se o sr. quer jogar no Bangu.’ Fiquei olhando para a cara dele. Fiquei espantado. Eu não sabia… aí ele disse: ‘O sr. está duvidando da minha palavra?’. Respondi: ‘Eu não tenho razão para duvidar ou não da sua palavra. Estou (sic) lhe conhecendo hoje’.

Para convencer o incrédulo Zizinho, Silveirinha foi sagaz. “Ele disse pra mim: ‘Então pega na extensão do telefone.’ Aí ele ligou para o Dario de Melo Pinto: ‘Como é Dario, o negócio do Zizinho está fechado?’. O presidente do Flamengo respondeu: ‘Claro que está! Fala com ele.’ Aí Silverinha disse: ‘E agora?!”. Respondi: ‘Bota o contrato aí, que assino agora. No Flamengo não jogo mais.’”

Zizinho sentiu-se desprezado. Com toda a razão. Dissera sempre aos cartolas da Gávea que não pretendia deixar o Flamengo. Aí, a grande decepção do craque.

A imprensa especulava de forma debochada a negociação entre os dois clubes. Publicou-se que Zizinho escrevera uma carta à diretoria do Flamengo, e que esta lhe ofereceu um emprego de zelador num edifício em Niterói, cidade onde morava Zizinho.
No páreo pelo futebol do craque, corria por fora o colombiano Mário Abello, disposto a levar Zizinho para a milionária liga pirata colombiana. Mas se a negociação se concretizasse, Ziza não jogaria a o Copa de 50 pelo Brasil. A Fifa não reconhecia o campeonato colombiano para o qual rumaram os principais nomes do futebol argentino, como Di Stéfano, Pedernera e Boyé, além de craques brasileiros, como um veterano Tim e um já débil Heleno de Freitas.

Indignado com o Flamengo, Zizinho pediu aos cartolas facilitassem a venda ao Bangu. E assim foi feito. O craque receberia luvas de 200 mil cruzeiros, um salário mensal de 7 mil cruzeiros e uma casa de retalhos em Niterói para a venda de tecidos da fábrica de Bangu. Zizinho tornara-se o jogador mais caro da América do Sul.

O jornalista Mario Filho defendia a tese de que Zizinho ficara mordido não pela venda em si, mas sim pelo valor que Dario Melo Pinto estipulara. Nunca lhe passara pela cabeça que o Flamengo fosse capaz de vendê-lo. “Um dos orgulhos dele era o resposta de Hilton Santos ao Corinthians: — Zizinho? Só com trinta milhões, para início de conversa”, escrevera Mario Filho, em “O negro no futebol brasileiro”.

Reportagem do Jornal dos Sports do dia 4 de março de 1950 antecipava o desapontamento de Zizinho com o Flamengo. O craque declarou estar definitivamente interessado em migrar para o Bangu. Na edição do dia 15, a primeira página estampa uma foto de Zizinho retirando a camisa do Bangu. Na manchete, o fim da novela: “Zizinho, afinal é do Bangu!”

Quem mais foi castigada com ida de Zizinho para o Bangu foi a enorme torcida do Flamengo, que não poderá lotar o Maracanã para deslumbra-se com seu grande ídolo. Felizes os banguenses e os torcedores dos outros times, como o botafoguense Armando Nogueira, que assim escrevera em crônica publicada no livro “Na grande área”: “Sempre imaginei Zizinho jogando futebol de sapato preto, traje rigo, tal a leveza se sua passada com a bola e sem a bola. Pois um dia Mestre Ziza mandou que o sapateiro Aristides, do Bangu, arrancasse todas as travas de suas chuteiras.”

O tricolor Nelson Rodrigues, dizem, comentava que quando Zizinho passava, uma bola dizia à outra: “Lá vai Ziza…”. 
De 1950 a 57, Zizinho defendeu — e com imenso prazer — o Bangu. Se não conquistou grandes títulos, inspirou Ataulfo Alves para compo o “Samba de Bangu”, cuja letra diz: “No velho esporte/ tua fama não desliza/ teve Domingos da Guia/ sem falar do Mestre Ziza”.

Nos tempos de Flamengo, de embates no campo da Gávea, nas Laranjeiras, em São Januário, ou em General Severiano e na rua Figueira de Melo, Zizinho construiu o melhor momento de sua extraordinária carreira nos gramados. “Era cérebro e pulmão de qualquer time”, reverencia Domingos da Guia, seu companheiro de time nos fim dos anos de 1930.


Um dos principais nomes da crônica esportiva daquela época, Geraldo Romualdo da Silva, retratava Zizinho de forma mais didática, objetiva, como convém ao olhar referencial comum ao jornalismo. “Quando os outros sucumbiam diante dos fortes e violentos beques, Zizinho ia mais à frente e, com fibra e coração, abria espaço, marcava os gols.”

Faltou a Zizinho um caneco mundial. Poderia ter uma segunda chance na Copa de 1954, na Suíça, mas o técnico Zezé Moreira seqüestrou-lhe esse direito. Aquele mundial seria um bálsamo para que Ziza esquecesse a tragédia de 50. “A gente não sabia nem o que era uma Copa do Mundo. A última tinha sido disputada em 1938, antes da guerra. Ouviu-se pelo rádio. Não tínhamos contato com países estrangeiros. Eu, por exemplo, nunca tinha visto a Iugoslávia ou a Suíça jogarem — dois dos nossos adversários em 50. De vez em quando víamos os ‘reis do futebol’, como os ingleses eram chamados, em filmes exibidos no Cineac. A gente ficava se perguntando: ‘Como é que eles conseguem jogar num campo cheio de lama? Aqueles campos pesado era de neve…”. Esse depoimento concedido ao jornalista Geneton Moares Neto mostra com exatidão que muito mais que futebol, precisava-se de maturidade para a seleção encampar (e conquistar!) um torneio que já não era disputado há mais de 10 anos. Faltou aos jogadores brasileiros desvencilharem-se de uma visão ainda provinciana sobre o futebol. Uma tese a ser debatida sobre as palavras ditas por Zizinho.

Decerto a Copa do Mundo de 50 representa uma espécie de “corte epistemológico” na história do futebol brasileiro. Zizinho é a prova mais cabal, mais contundente de que após o apito final daquele fatídico jogo contra os uruguaios, no dia 16 de julho, o futebol brasileiro seria reinventado. Que naquele momento, a reflexão sobre o tal complexo de vira latas mencionado por Nelson Rodrigues aconteceria bem antes de 1958, na Suécia. 
Deveriam lembrar de Zizinho para este debate. Do Zizinho que encantou o jornalista inglês Willy Meisl ao vê-lo em campo na Copa de 50 contra na vitória de 2 a 0 sobre o bom escrete iugoslavo: “Não se trata apenas de um craque, dos muitos que andam espalhados pelo mundo. Este é um gênio, um homem que possui todas as qualidades que podem ser idealizadas para um profissional chegar mais próximo da perfeição”.

Vencer a Iugoslávia era fundamental para o Brasil decidir a Copa. Zizinho era o missionário para missão tão eloqüente. Era o gênio do dejà vu futebolístico, como narra Eduardo Galeano para quem Zizinho inventou o gol “bis”: “Este senhor da graça do futebol tinha feito um gol legítimo, que o juiz anulou injustamente. Então, ele repetiu igualzinho, passo a passo. Zizinho entrou na área pelo mesmo lugar, esquivou-se do mesmo beque iugoslavo com a mesma delicadeza, escapando pela esquerda como tinha feito antes, e cravou a bola exatamente no mesmo ângulo. Depois chutou-a com fúria, várias vezes, contra a rede. O árbitro compreendeu que Zizinho era capaz de repetir aquele gol dez vezes mais, e não teve outro remédio senão aceitá-lo.”

O que talvez Meisl e Galeano não sabiam é que Zizinho jogara contra a Iugoslávia contundido e por pouco não entrara em campo: “Fui dormir quase de manhã. Não consegui dormir porque os massagistas não deixaram. Deram-me um remédio que, segundo Augusto, era de cavalo, um troço que botavam nos animais do jóquei. Não sei como os animais agüentavam. Queimava que não era brincadeira a pomada”, disse Zizinho à Geneton Moares Neto.

Dias depois do embate contra os iugoslavos, a confirmação da divindade “Zizinho”, após o massacre contra a Espanha, a “fúria”. 6 a 1 foi pouco. “O maestro da esquadra maravilhosa. O futebol de Zizinho me faz recordar Da Vinci pintando alguma coisa rara”, louvou Giordano Fattori, correspondente da Gazetta dello Sport, após assistir ao gênio Zizinho contra os espanhóis. O craque se auto-definia um “guerreiro da bola” que jamais a arranhou. “Ela era o amor da minha vida.”

Mas veio o dia 16 de julho. Já havíamos conquistado a Europa, mas faltava recuperarmos a província Cispaltina. Zizinho era o general da tropa. Mas falhamos. A única explicação para aquela derrota Zizinho encontrou-a no sobrenatural. Ao Geneton, ele confessou: “Pode ter acontecido uma onda negativa naquele dia no Maracanã. Numa partida de futebol, existe uma força maior que a gente não compreende, mas que existe, existe. Não sei como é, mas existe uma força maior que dirige a partida. Não sei de onde vem. Talvez venha da multidão que forma pensamentos positivos ou negativos. É uma força.”

Não havia “grito” de Obdúlio Varela que intimidasse a seleção brasileira. “Não havia menino ali”, dissera Zizinho. Obdúlio, que era amigo de Zizinho, confessou ao craque brasileiro que esperava o pior diante do Brasil naquele dia 16 de julho de 1950. “Não sei o que vocês pensavam, mas nosso receio era tomar uma goleada, como a Suécia e Espanha tinham levado.”
Geneton Moraes Neto extraiu um depoimento sensacional de Zizinho sobre a extensão metafísica que o craque mantinha com Obdúlio: “Ademir esteve uma vez na casa de Obdúlio Varela. A mulher de Obdúlio é que disse: ‘Há um jogador no Brasil em que Obdúlio pensa todo dia: Zizinho.’”

Zizinho dissera promover um suposto contato telepático com Obdúlio anos depois da Copa de 50. Uma surpreendente herança da tragédia de 1950: “Eu sei sempre como é que vai Obdúlio. E ele sabe sempre como é que estou”, garantia Zizinho. O episódio foi contado pelo próprio ídolo uruguaio à Ademir de Menezes e a Barbosa, que foram visitá-lo em Montevidéu muitos anos após a final da Copa de 50. Zizinho tem a resposta para o fenômeno. “Eu sou espírita. E ele também é”, disse Zizinho, que disse a Geneton nunca ter ido a uma missa a não ser quando um “amigo morre”.

Durante a comovente entrevista ao repórter Mauro Tagliaferri, para o Esporte Espetacular, da TV Globo, em 1999, quase 50 anos após a Copa, mostrou um Zizinho ainda emotivo diante de um passado que sempre insistiu-se presente. Tagliaferri pergunta o que significava a Copa de 50 para a vida dele. Zizinho coça o queixo, desvia o olhar e responde: “Perdi a Copa do Mundo, vim para casa e não conseguia dormir. Eu tinha pesadelos…” Naquele momento da entrevista, Zizinho balança os ombros, olha para o chão e começa a chorar. Volta-se para o Tagliaferri e faz, com as mãos, o tradicional sinal de pedido de tempo. Sorri, simpático, mas imerso em lágrimas, diz: “Tempo…” abaixa a cabeça novamente e permanece chorando até que, com as duas mãos novamente, enxuga as lágrimas e pergunta para o repórter: “Pode continuar?”. O repórter insiste: “Podemos mesmo continuar?”. Zizinho meneou a cabeça positivamente e respondeu: “Pedi ao seu Carlos Nascimento que não podia mais ficar em casa. Não dá. Assim eu vou ficar maluco. Foi tortura mesmo. As pessoas ainda brincam com isso até hoje (…) fora do Brasil não teríamos perdido esse campeonato.”
Depois da Copa, Zizinho, que nasceu em São Gonçalo, no dia 14 de setembro de 1921, teve poucas chances na seleção. Como já dissemos, Zezé Moreira vetou-o para a Copa de 1954. Zizinho, sempre conformado, foi batendo sua bola no Bangu. Ele era o time do Bangu, que apesar de sempre atrapalhar os grandes do Rio sequer conquistou um campeonato estadual no período em que contou com Zizinho no time.


De Moça Bonita, seguiu para o Morumbi, a contragosto da esposa e de suas filhas ainda pequenas. Uma delas, sabe-se lá o porquê, sugeriu ao pai que se continuasse a jogar, que fosse no futebol francês. O certo é que entre Bangu e São Paulo, Zizinho tinha dúvidas se continuaria ou não a jogar futebol. A possibilidade de jogar na França realmente aconteceu. 
Como confirmou o cronista paulista Adriano De Vaney, Ieso Amalfi, outrora ídolo do Boca Juniors e que fora do próprio São Paulo, propôs a Zizinho uma temporada em Paris. Mas a proposta da diretoria do São Paulo convenceu-o e o craque permaneceu no futebol brasileiro. E com o Tricolor do Morumbi conquistou o último título de sua carreira: o Campeonato Paulista de 1957.

Seja na seleção, no Flamengo ou no Bangu, isso pouco importa quando temos Zizinho, que nos deixou no dia 8 de fevereiro de 2002, como um marco do futebol mundial. Ele, nenhum outro, representa o começo da Era Maracanã.


Seu nome nunca será esquecido. Tampouco por Pelé, que fez do Mestre Ziza seu espelho. “Quando eu era garoto, procurava imitar dois jogadores: o Dondinho, meu pai, e o Zizinho. Quando comecei a minha carreira no Santos, o Zizinho estava encerrando a dele no São Paulo. E encerrando em grande estilo. Ele foi campeão e considerado o melhor jogador do Campeonato Paulista de 1957. Zizinho era um jogador completo. Atuava na meia, no ataque, marcava bem, era um ótimo cabeceador, driblava como poucos, sabia armar. Além de tudo, não tinha medo de cara feia. Jogava duro quando preciso.”

A ginga, os dribles, os passes milimetricamente perfeitos e os gols geniais de Zizinho foram o ditame para Pelé, que herdou de Zizinho a coroa de “Rei” do futebol.

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JOGO MEMORÁVEL

Jogo válido pelo campeonato estadual de 1950, dia 20 de agosto de 1950, Bangu 6×0 Flamengo.
Foi o terceiro jogo de Zizinho contra o seu ex-clube. Perdera o primeiro e ganhara o segundo, mas sem exibição de gala. Na terceira chance, já recuperado da perda da Copa de 50, impôs uma das mais vergonhosas derrotas da vida do Clube de Regatas do Flamengo, que aconteceu no Campeonato Carioca de 1950. Relatava a crônica da época: “Apresentando em campo um time verdadeiramente desconexo, incorrendo ainda no erro de uma aventura que foi o lançamento precipitado de Hermes, o Flamengo emudeceu os olhos de sua torcida, caindo por uma contagem que atinge tremendamente o prestígio do clube da Gávea. Está de parabéns o Bangu pela sua estupenda vitória. Vitória que veio como efeito natural do amplo domínio exercido pelo seu conjunto, cujas manobras táticas foram perfeitas e cujo padrão de jogo é o que se pode exigir de um grande esquadrão.” Zizinho deixou o dele, Moacir Bueno fez dois e Joel, Simões e Sula completaram o marcador.