O ONTEM, O HOJE, O SEMPRE
por Marcelo Rodrigues
Com as semifinais da Liga bombando, com os confrontos acirrados entre Carlos Barbosa e Sorocaba, e o de mais tarde, Orlândia x Corinthians, veremos a partir da segunda que vem, dia 23, e, depois, dia 30, os vencedores disputando as partidas da grande final. Por merecimento as quatro melhores equipes chegaram nas semifinais.
Agora é o detalhe do detalhe. Um bom goleiro, um lance de gênio, quebra de velocidade, velocidade extrema, pressão, quebra de pressão, lances individuais, boas mexidas e sacadas, arbitragem, lances polêmicos e fator quadra, tudo pode ser decisivo.
E na mão de quem ficar o título, estará bem guardado.
Sorte a todos e que o futsal saia ainda mais vencedor!!
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Adilson, Serginho, Celso e Aécio. O quarteto do Vila, um dos melhores de todos os tempos
O craque Adilson no lançamento de seu livro
O fim de semana nos trouxe ainda uma grande nostalgia.
No sábado, pela manhã, pelada no Clube Caça e Pesca, capitaneada por Mauro dos Santos (Mauro Bandit) e, em seguida, encontro no Vila Isabel com os craques de todas as épocas para prestigiar o lançamento de livro “Futebol de Salão, a origem”, do craque Adilson. Foi emocionante registrar o encontro entre Serginho, Adilson, Aécio e Celso, quarteto do Vila, um dos melhores de todos os tempos. À noite, encontro com os astros do máster do Corinthians e da seleção paulista de veteranos, numa deliciosa resenha, no bar Divino. Domingo, logo cedo, amistosos entre o máster do Botafogo e do Corinthians, e do super máster de Rio e São Paulo.
Boleiros de várias gerações, piadas, “pilhas”, histórias fantásticas e a certeza da felicidade ao ver vários ídolos.
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A magia está no ontem, a realidade está na telinha com a Liga e o futuro tem que ser a UNIÃO entre magia e profissionalismo.
O Lulu Santos disse:
“Nada do que foi será, de novo do jeito que já foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará!”.
A minha imagem desses caras não vai passar nunca, assim como o profissionalismo que hoje se torna fundamental, não pode ser esquecido.
Nossa filosofia de jogo sendo mantida, nossos gênios se adaptando e o profissionalismo invadindo, esse é o FUTURO e é nisso que aposto. Quem estiver fora desse pensamento, ou não respeita nossos ídolos, parou no tempo. Eu respeito muito as duas coisas.
Aqui é FUTSAL NA VEIA.
PS: volto semana que vem falando sobre as finais da Liga.
AS JOBETES
texto: Sergio Pugliese | foto e vídeo: Rodrigo Cabral
A escalação, da esquerda para a direita: Françoise Imbroise, Daniella Sholl, Mariucha Moneró e Fabiana Sobral. Abaixadas: Isabela Kassow, Marcia Penna Firme, Eliane Bardanachivili, Leila Youssef e Leila Magalhães.
A primeira a entrar “em campo” foi a técnica Mariucha Moneró, talvez para manter intacta a fama de disciplinadora. Pura impressão. De cara, chutou o balde e pediu chope e pizza. Em seguida, surgiu, elegantérrima, a goleira Isabela Kassow, de óculos, marca registrada que não dispensava nem durante as partidas incendiárias no campo chapiscado do Mimosão, apelido da quadra do Sindicato dos Metroviários, vizinho à Vila Mimosa, onde aconteciam os torneios de futebol entre os jornais cariocas. Foi o primeiro brinde da noite, na Fiorentina, no Leme, palco escolhido pelas ex jornalistas do JB para o reencontro, 23 anos depois, do timaço da redação.
– Só eu mesma para convocar uma goleira de óculos – divertiu-se Mariucha, que na época integrava a editoria de Esportes e dividia a função de técnica com o saudoso Oldemário Touguinhó.
Bastou um jogo para Oldemário perceber que o time das coleguinhas era, digamos, debilitado tecnicamente. Não perdeu tempo e marcou treinos noturnos, secretíssimos, no campo do América para aprimorar os chutes, trocas de passes e criar jogadas ensaiadas. A evolução foi visível!
– Chegou Daniella Sholl! – anunciou Mariucha.
Foi Daniella quem postou a foto do time no Facebook, o que gerou um caminhão de curtidas e a ideia do evento. Camisa 10, formava com Malu Fernandes um ataque devastador. A outra atacante era Eliane Bardanachivili, a quarta a chegar e emendar no chope. Ninguém tinha jogo no dia seguinte! Mariucha revelou que sofria uma pressão enorme para substituir Elaine porque ela insistia em chutar para o próprio gol. Bardana gargalhava! Aos poucos, a Fiorentina foi ficando pequena. Devido a histeria, por conta da chegada de cada estrela, teve muito cliente mudando de mesa. Também pudera, até embaixadinha Dani Sholl resolveu fazer dentro do restaurante!!!
– Cuidado com os pratos – suplicou um garçom.
Das atletas que estavam na foto apenas Françoise Imbroise, confundida com Kiki Ramalho, não pode ir porque estava em Minas. Mas as outras confirmaram: Dani Sholl, Mariucha, Celia Abend, que vendia empadas nos jogos e era a presidente da Liga das Senhoras Decentes do JB, a pontinha Fabiana Sobral, Isabela Kassow, Marcia Penna Firme, que jogava de meias Kendall, Eliane Bardanachivili e a talentosa dupla de Leilas, Youssef e Magalhães, a última a chegar por conta do temporal. Mas foi!!! A torcida também compareceu em peso! Paula Santa Maria, Elba Boechat, Isabela Abdala, Marcus Veras, Paulo Maurício, o massagista Octávio Guedes, Viviane Cohen, Dulce Jannoti e Cláudia Antunes.
– Chegou Stelinha!!! – berrou Fabiana.
A competitiva Dani Sholl ergueu a sobrancelha, franziu a testa, fez cara de poucos amigos. Tinha motivo. Stelinha era estrela de O Dia de quem as “jobetes” nunca venceram. A turma do deixa disso não precisou entrar em cena, mas Dani ficou bicuda. O time da Riachuelo era uma máquina, treinada pelo eterno Tim Lopes. Tinha Marluci Martins, Martha Esteves, Marta Mendonça, Renata Schmitt, Renata Fraga, Rachel Vita, Rosane Bekierman e a própria Stellinha Moraes.
– Não posso negar, mas elas não viam a cor da bola – arriscou-se a dizer, protegida por Fabiana Sobral e Isabela Kassow, que depois foram companheiras de redação.
O clima era de festa! Reencontros emocionam, ainda mais de jornalistas cheios de boas histórias para contar. Mariucha lembrou que foi a primeira mulher de jornais brasileiros a cobrir uma Copa do Mundo. Amava Esportes e odiava quando algum chefe a mandava cobrir bueiros explodindo. Naquela mesa barulhenta, podem ter certeza, a mulherada já fez de um tudo, de coberturas de carnaval e de eleições a tiroteios no morro, denúncias de escândalos, réveillon, manifestações. Era uma grande época! JB brigava cabeça a cabeça com o Globo e O Dia chegava a vender 1 milhão aos domingos. Rogério Reis era o editor de fotografia do JB!!! Olha o nível!!! Ainda tinha Flávio Pinheiro, Roberto Pompeu de Toledo, Marcos Sá Correa, Dácio Malta. As redações eram como o Maracanã e, hoje, encolheram como ele. Jornalistas são vaidosos, nostálgicos. Mas divertidos, muito divertidos!!!
– Sobrevivemos! – resumiu Isabela Kassow.
Na hora da foto oficial, a mulherada sentiu falta de Dani Sholl e Malu Fernandes, a coxa mais grossa do time. Quando ela se machucava surgiam massagistas de todos os cantos. Acreditem, as duas estavam na calçada do restaurante disputando campeonato de embaixadinhas!!!! Na chuva!!! Os clientes pararam para ver. Dani, de salto alto, xingava a bola quando a coitadinha escapava e Malu reclamava do tênis. Por uma embaixadinha, Dani venceu. Aproveitando que todas estavam ali, na torcida, a foto de 23 anos atrás foi reproduzida, sob temporal, com Malu no lugar de Françoise. Espírito intacto! Se o tempo passou, o fotógrafo não captou.
O reencontro das ex jornalistas do JB 23 anos depois, do timaço da redação.
Daniella Sholl
Malu Fernandes e Leila Magalhães
Fabiana Sobral e Stella de Moraes
Stella de Moraes
Mariucha Moneró e Marcia Penna
Eliana Bardanachivili e Isabela Kassow
23 anos depois… Malu Fernandes (substituindo Françoise Imbroise), Daniella Sholl, Mariucha Moneró e Fabiana Sobral. Abaixadas: Isabela Kassow, Marcia Penna Firme, Eliane Bardanachivili, Leila Youssef e Leila Magalhães.
O rei da cocada
:::: PÉ NA AREIA ::::
por Sergio Pugliese
Cocada reuniu uma legião de amigos, que vão de estrelas profissionais a peladeiros geniais, para os 60 anos de praia.
Olha que já rodei por aí, hein!!!! Olha que já conheci campinho escondido por aí, hein!!! Olha que já ouvi histórias que mais parecem de pescador, hein!!!! Olha que já participei de resenhas hilárias, hein!!! Olha que já conheci gente bacana, divertida e com o espírito boleiro que sempre buscamos, hein!!!! Mas, olha, o Cocada é demais!!! Demais porque consegue reunir uma legião de amigos, que vão das estrelas profissionais Jayme de Almeida, Fred, PC Caju e Junior Capacete aos peladeiros geniais, como Tonico, do Xavier, Wilson Itália e Sheinberg, do Caiçaras, e Luiz Fernando Pessoa, do Clube 17. Também tinha o Sylvinho Blau Blau e quem mais vocês imaginarem, no condomínio Novo Leblon, na Barra da Tijuca. Todos queriam pelo menos alguns segundos para abraçá-lo e falar algumas palavras, curtas que fossem, mas que transmitissem o respeito, a admiração e o carinho que sentiam por ele.
– O Cocada é um ícone, um exemplo para quem ama futebol e preza a amizade – resumiu Blau Blau, na festa de 60 anos do parceirão.
Cocada jogou com os amigos, mas estava aceleradíssimo. Abraçava um por um, mas circulou com mais frequência entre a churrasqueira e a chopeira.
Estava difícil fotografá-lo. De repente, alguém me segura pelo braço e faz um pedido especial.
– Você tem que falar sobre o time principal do Caiçaras, o que jogava das oito às dez, e fez história!!!
Era Wilson Itália, um desses craques diferenciados. Quem sou eu para negar. Pedi a escalação.
– Marcinho, Sheinberg, eu, claro, Luiz Landau, Ricardo Peixoto, Ricardo Hardman Roliço, Joaquim Hardman, Fernando Martinez, Sergio Reis, Hisan Mattos, Sérgio Landau, Demétrio Dimões, Mozó, Miguel, Hugo Celso e os saudosos Paulo Reco e Fábio Roliz – responde, na ponta da língua.
Adoro isso, afinal a saudável rivalidade não morre nunca. Isso porque Zé Brito, outro cracaço-aço-aço, também do Caiçaras, já apareceu várias vezes na coluna destacando o seu time, que jogava em outro horário. Enquanto esperava Cocada abraçar mais um amigo, ouvia ao lado uma deliciosa historinha do dia em que Joaquim, do Naval, foi expulso _ mais uma vez _ na decisão do Campeonato do Aterro, contra o Embalo do Catete, arrancou o apito da mão do árbitro e o pisoteou até esmigalhá-lo. Johnson, o organizador da pelada do Novo Leblon, circulava orgulhoso. Tudo estava dando certo no evento!
– Tudo será pouco para o Cocada – comentou Fred, irmão de PC Caju.
Na tevê, anunciaram o cancelamento de Brasil e Argentina por conta do temporal. Ninguém prestou atenção porque, naquele momento, nada, nada, mas nada, era mais especial do que prestigiar Cocada.
PS: A festa cocadense continua hoje à noite, no Novo Leblon!!! Às 21h, a Banana Banda, com Ivan Mundim, na batera, vai fazer os peladeiros suarem a camisa!!!! Parabéns, Cocada!!!!!
SERGIO PUGLIESE tem mestrado em chutes de trivela, doutorado em resenhas e é pós-graduado em gols no ângulo. Por quatro anos e meio assinou a coluna A Pelada Como Ela É nas páginas de O Globo, mas, agora, é o ponta arisco do Museu da Pelada.
FOTO E VÍDEO
DANIEL PERPÉTUO, jornalista, embrenhado na câmeras DSLR desde a Copa do Mundo de 2014, vive pescando uma imagem para contar uma história. Eterno camisa 1 das terras de Araribóia.
FUTEBOL SÃO ONZE
por Lucio Branco
No muro, Barba, Cabelo e Bigode, personagens do documentário
“No princípio era o Verbo”.
Meio pretensioso, e até desnecessário, admito, citar o Evangelho de S. João logo na abertura da minha primeira colaboração aqui no Museu da Pelada. Foi só para evitar a expressão “Pontapé inicial”, um clichê que soaria muito óbvio no primeiro parágrafo da estreia de uma coluna intitulada “Futebol Arte”. Em suma, preferi um clichê a outro.
Mas vamos lá…
Como é sabido, as vanguardas do início do século XX não escondiam a sua falta de apreço pelos museus. Os dadaístas, por exemplo, proclamavam a sua destruição imediata. É uma atitude que faz sentido no Velho Mundo. Aqui, ela parece bem menos recomendável. Cultivador da desmemória, o Brasil não fez a mais básica lição sugerida pela História: conhecê-la primeiro. E é justamente o que o Museu da Pelada faz, em tempos de progressiva mercantilização do jogo. O site resgata o seu passado e assume lugar na linha de frente da sua valorização como manifestação sociocultural de primeira grandeza. Realmente, os museus poderiam contribuir em ser, geralmente, bem mais do que depósitos de mofo a expor o já consagrado. Não é o caso deste Museu, o qual, antes de tudo, exercita a memória para compensar a atual aridez de novidades verdadeiramente relevantes no mundo profissional da bola.
Curiosamente, no “país do futebol” o legado deixado por craques, times, clubes, etc mais antigos tem pouco espaço até mesmo na construção do imaginário popular. Faça o teste: pergunte a qualquer torcedor o que ele sabe sobre o seu time antes de ter começado a acompanhá-lo. Para não fugir ao tema, “Quem vive de passado é museu” é quase sempre a resposta automática. No caso, um ditado bem mais pretérito do que aquilo que ele acusa. E com o mesmo grau de legitimidade, por exemplo, que o ainda surpreendentemente vivo “Futebol é o ópio do povo”. Ou seja: nenhum. (Apesar do empenho em contrário das forças política e economicamente interessadas.)
Quando o Sergio Pugliese me convidou, há alguns dias, para colaborar com o site, não pude dar outra resposta senão “Agora!”.
O primeiro contato entre nós partiu de mim, há mais de um ano, ao lhe apresentar o meu projeto de documentário em longa-metragem, Barba, Cabelo & Bigode, sobre a trajetória dos craques da bola e da consciência Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição. Os personagens/narradores do filme também já haviam marcado presença na sua coluna “A pelada como ela é”, por tanto tempo hospedada n’O Globo. Estava eu, então, em luta pelo financiamento coletivo (crowdfunding), para dar início às filmagens. Com certeza intuindo nossas afinidades no universo em questão (embora ele vascaíno e eu botafoguense), Pugliese foi monumental no incentivo. E, de lá pra cá, a coisa fluiu como deveria – escrevo logo após as últimas horas da segunda campanha formal de crowdfunding relacionada ao filme, agora destinada a sua finalização. A meta foi atingida e Barba, Cabelo & Bigode sai ano que vem. Confiem nisso.
Sem rodeios, o Pugliese fez a proposta: – “Relaciona aí futebol com cultura em geral: cinema, literatura, música etc, você sabe…”. A resposta veio no mesmo tom: – “Deixa comigo”.
Sustento que o association, ele próprio, é uma das inúmeras formas de expressão cultural que passou a trilhar um caminho próprio desde que aportou no Brasil. Acredito que isso é uma fatalidade sob o sol que nos ilumina: tudo se aclimata ao seu brilho. Garanto: determinismo zero na afirmação.
Mas não se trata de uma exclusividade nossa – cada país, região ou localidade no mapa-múndi responde pela espontaneidade e autonomia na importação de qualquer fenômeno cultural. A tão acionada antropofagia oswaldiana/tropicalista até poderia servir como chave de interpretação do que falamos aqui, caso o autor de O rei da vela e os posteriores baianos entendessem mais da modalidade que consagrou artistas bem mais populares que eles. (Uma ressalva: Gilberto Gil, autor do célebre verso “Prezado amigo Afonsinho”, demonstra saber do que fala no seu depoimento para Barba, Cabelo & Bigode.) As artes dialogam com o futebol porque têm com ele um nítido parentesco. Cinema, poesia, música e dança já estão ali desde o primeiro toque na pelota. Considerando a contribuição brasileira na renovação técnica, dinâmica e corporal do esporte, fica ainda mais evidente que é de estética que estamos tratando aqui.
Como este é um texto introdutório da minha colaboração com o site, adianto que escreverei sobre personagens e passagens da História do futebol que me parecem os de maior relevo, apesar de, na imensa maioria das vezes, a versão oficial desta não achar o mesmo. E, claro, sempre conforme a sua dimensão cultural, como o Pugliese pediu.
Para concluir, confesso: originalmente pensei em “Futebol são onze” para o nome da coluna. Depois, concluí que “Futebol Arte”, como me foi sugerido pelo Pugliese, era mais pertinente pela abordagem dela. Façamos justiça: o aforisma “Futebol são onze” é fruto da verve do Nei Conceição. Em meio às inúmeras perguntas do roteiro de Barba, Cabelo & Bigode, ele saiu-se com esse súbito insight. O Nei, um tímido que sabe falar muito com tão pouco, tem familiaridade com a transcendência. Essa sentença, creio, guarda um significado que vai muito além da sua circunscrição originalmente desportiva. Já a testei em mais de uma conversa alheia ao “violento esporte bretão” e não fui interpelado a respeito. Para mim, bastou como prova do seu inegável alcance metafísico.
Recomendo o uso.
A CAMISA DO MEU PAI
por Sergio Pugliese
Sergio e o pai Raphael Pugliese, no portão onde era o gol
Certa vez jogava linha de passe com alguns amigos de Santa Teresa quando meu pai voltando do trabalho, de roupa social, parou no meio da Ladeira do Meireles, assoviou e, batendo no peito, pediu para cruzarem a Dente de Leite. “Dá na caixa, Gordo!”.
Devia ter 12 anos e foi a primeira vez que vi meu pai se relacionar com uma bola. Era boêmio e morreu poucos anos depois de cirrose hepática, efeito de uma mistura fatal: uísque, Haloperidol e Amplictil, remédios para amenizar seus sintomas de esquizofrenia. Falava pouco, mas era divertido, encantador. Conversava sobre futebol, mas nunca o vi chegando de uma pelada, controlando uma redonda, se recuperando de contusões ou desfilando com camisas de times, mesmo sendo tricolor de coração. Por isso senti uma ponta de constrangimento quando o Gordo olhou para mim como se pedisse autorização para lançar a bola. O que resultaria dali? Meus amigos já haviam presenciado meu pai mergulhado em delírios, por isso o estranhamento, a dúvida. Autorizei, claro! Havia aprendido com Ciça, minha mãe, que sua única diferença era viver em dois mundos, mas lembro dela me garantindo: “Ele é feliz em ambos!”.
E era a pura verdade. Meu pai, Raphael, ou Rapha, ou Velho, ou Raphinha ou Faelzinho, volta e meia saía de “nossa órbita” e se transportava para “outro mundo”. Lúcido, em tratamento, geralmente preferia os bares, os amigos, as noitadas. Claro que suas crises nos desgastavam. Tínhamos poucas e desencontradas informações e seu médico particular também morreu esquizofrênico. Eu e Bruno, meu irmão, crescemos assim. Minha mãe, rolo compressor, se desdobrava em três empregos. Mas em algum momento _ nunca entendemos o real motivo _ ela se desentendeu com a família de meu pai e houve um racha. Ainda garotos, nos afastamos de nossos tios e primos, e o tempo foi em frente.
Sergio e o irmão Bruno na Ladeira do Meireles, em Santa Teresa
Há um mês estava saindo de uma reunião, no Centro, quando fui checar os emails no celular e achei essa mensagem arrasa quarteirão: “Caro colunista, há algum tempo venho pensando em escrever-lhe, mas alguns motivos me detiveram. O primeiro a habitual falta de tempo e o segundo, e principal, a abordagem. Serei mais claro. Por força da minha formação, e profissão, sou muito direto e o caso merecia um pouco mais de sensibilidade. Como não nos vemos há muitos anos, muitos mesmo, entendo e aceito que não se lembre de mim. Entretanto, soube por um amigo que você não lembra de ter um tio chamado Amaury. Fiquei surpreso, mais que isso, triste. Triste porque apesar desses anos eu não esqueci do seu pai, de você, de cabeleira preta, e do seu irmão Bruno cantando `Tomara que chova 100 dias sem parar´. Mas, tudo certo, eu sou seu primo mais velho e consegui fixar melhor na memória. Dizem que o futebol une pessoas e povos. Espero que seja o nosso caso. Já que você fala e escreve sobre pelada queria lhe perguntar uma coisa. Você sabia que seu pai, quando jovem, era peladeiro e jogava num time chamado Forró Social Clube? Pois jogava, e bem. Por uma dessas obras do destino guardei uma camisa do time, que a essa altura já deve ter 60 anos, e gostaria de dar de presente para vocês dois, num almoço. É uma lembrança muito bacana de nossos pais, que foram grandes amigos até o fim de seus dias. Amaury.”
Quando terminei de ler não tive outra alternativa. Encostei numa banca de jornal e chorei. Foi uma emoção devastadora. Há 37 anos não tinha qualquer contato com meu primo Amaurizinho. Nessa coluna posso descrever um pouco do estranho e fascinante mundo dos peladeiros. Ela me diverte, emociona, ensina e agora resolveu vasculhar minha vida. Diariamente, recebo e-mails hilariantes, nostálgicos e carinhosos, e no meio deles surge essa bomba atômica. Vocês devem estar se perguntando como alguém pode esquecer de um tio. Claro, que isso foi um engano. Nunca esqueceria de meu tio Amaury ou de qualquer outra pessoa de minha família. Mas tudo foi esclarecido em nosso reencontro. E que reencontro!
Aconteceu em Santa Teresa! Fui o primeiro a chegar. Depois, Bruno, Amaurizinho e, em seguida, seu irmão Mauro China. Não dava para negar que todos eram da mesma família. O escracho foi geral. Em minutos todos já eram os melhores amigos da garçonete, abraçavam o chef, criticavam o cardápio, achavam os pratos caros e firulentos e riam de tudo. Não teve choro. Foi como se não nos víssemos há semanas. Ninguém questionou o motivo de uma ausência tão longa. Todos só queriam estar ali, gargalhando o tempo perdido. Quando estávamos quase pedindo a conta, não resisti.
– Mas, cadê a camisa do Forró Social Clube?
Na foto, da esquerda para a direita, Mauro China, Bruno e Amaury
Ela estava bem embrulhada num papel prateado, dentro de uma bolsa. Eu estava paralisado. China contou que durante todos esses anos a camisa foi protegida por um quadro de vidro. O pacote foi sendo aberto. Ela estava desbotada, mas linda! Parecia a descoberta de um tesouro perdido. Meu pai era peladeiro! Um boêmio como ele só poderia jogar no Forró Social Clube! Quando segurei aquela camisa guardada há 60 anos me senti realizado e ri sozinho lembrando da tensão desnecessária vivida por mim quando ele pediu a bola “na caixa” ao Gordo. Não fazia ideia de suas habilidades e quando o Gordo cruzou a bola acompanhei, sem piscar, todo o seu trajeto até ela pousar, mansa, em seu peito. Então, ele iniciou uma série de embaixadinhas enquanto subia a ladeira. Controlou a bola até se juntar a nós na linha de passe. O constrangimento virou orgulho! Aquilo era real! Foi a primeira vez que joguei com o meu pai! Foi um dia marcante, especial demais em minha vida. Nunca soube em qual mundo ele estava sintonizado naquele momento. Extasiado, foi para casa e quando cheguei já dormia como um anjo. Me deitei a seu lado e por toda a noite sonhei com aquele lance.
(publicada em novembro de 2010 na coluna A Pelada Como Ela É)