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Leandro

O PAPA DA LATERAL

texto: Sergio Pugliese e André Mendonça | foto: Marcelo Tabach
vídeo: Rodrigo Cabral | charge: Marcus Vinicius Cabral

Quando nossa equipe pensou em entrevistar Leandro, o lendário lateral-direito do Flamengo, ninguém chegou a nos desaconselhar, mas foram logo avisando que ele era recluso, fechadão, caipira, bicho do mato, tímido, de poucas palavras, na dele e por aí vai. Meu Deus, num mundo repleto de pernas de pau fanfarrões, teria perfil melhor do que esse? Então, fomos ao encontro do astro rubro-negro!!! O chargista Marcos Vinícius Cabral fez a ponte e nos acompanhou ao “esconderijo do ermitão”, em Cabo Frio, onde o craque nasceu, cresceu e construiu a Pousada do Leandro, seu porto-seguro para curtir a aposentadoria. No caminho, eu, Marcos, o videomaker Daniel Perpetuo, o jornalista André Mendonça e o fotógrafo Marcelo Tabach relembramos passagens marcantes do jogador, como o golaço-aço-aço no último minuto de um Fla x Flu e a fuga da concentração da seleção brasileira, em 86.

– Sei lá, acho que ele não gosta de tocar nesse assunto – alertou Marcos Vinícius, que está ilustrando a biografia de Leandro, escrita por Gustavo Roman.

Na verdade, não sabíamos nada até estacionarmos na porta da pousada e sermos recepcionado por um tremendo sorrisão.

– Que demora, já estava desistindo de esperar – brincou.


Graças a Deus nunca precisei marcar o Uri Geller.

Não sou vidente, mas, naquele momento, tive a certeza de que daria liga. E como deu!!!! De cara, perguntou como poderia colaborar, mas alertou sobre sua timidez. Sinceramente, nunca vi um tímido tão descontraído, divertido e contador de histórias. Sobre sua vitoriosa carreira, assumiu-se sortudo por não ter enfrentado Júlio César Uri Geller, companheiro de equipe, ponta-esquerda entortador. E mesmo tendo marcado pontas espetaculares como João Paulo, do Santos, e Zé Sérgio, do São Paulo, divertiu-se ao lembrar de Lupercínio, pontinha do Paysandu, que o deixou de língua de fora, num jogo em Belém. No fim da partida agradeceu aos céus, afinal de contas não o enfrentaria tão cedo.

– Poucos dias depois li no jornal que o Botafogo o havia contratado, que inferno!!!! – divertiu-se, garantindo que não foi praga sua a sequência de contusões sofrida pelo algoz, o que evitou novo confronto.

Ao perceber que a entrevista rolava suave como a nave, o ousado Marcelo Tabach conseguiu quatro peroás na vizinhança e pediu ao pessoal da cozinha para fritá-los. Desconfiado, Leandro quis entender o motivo. Seria fome?

– Queria fazer uma brincadeira com o seu apelido, Peixe Frito – confessou, apreensivo.

A mãe, Dona Cleuza, sempre odiou esses apelidos. Também tem o “Mulinha” ou “Mula Manca”, criados por Paulo César Carpegiani, maestro do meio-campo, companheiro de incontáveis títulos, entre eles a Libertadores e o Mundial, em 81. O “Peixe Frito” é por um motivo simples. Leandro é viciado num peixinho frito e sempre comemorou seus títulos saboreando os petiscos. Em Cabo Frio, só o tratam assim.

– Minha mãe fica doida porque diz que eu tenho um nome muito bonito, mas me divirto – desdenhou.

O “Mula Manca” é por conta das artroses nos joelhos, as mesmas que o fizeram desistir de pular o muro da concentração, em 86, e entrar pela porta da frente do hotel, de madrugada.

– Mas, Leandro, como um cara tão disciplinado como você foi cair numa dessas – perguntei, tentando dar uma aliviada.


Nunca fui santo.

Primeiro veio a gargalhada, emendada com a resposta, para mim, surpreendente.

– Nunca fui santinho, adorava a noite e vivia na Boate Hippopotamus. Naquela noite fatídica, todos queriam vir embora e eu falei ’nem pensar, agora que tá ficando bom’. A rapaziada se mandou, mas ele e Renato Gaúcho esticaram até às duas da madrugada.

Leandro só não contava com a altura do muro e, assim como Renato Gaúcho, olhou para o alto e suspirou um “nem pensar”. Chutou o balde e entrou pela porta principal. Foram dedurados e na manhã seguinte, Telê o sacudiu na cama exigindo explicações.

– E eu lá lembrava de alguma coisa – gargalhou.

A decisão de cortá-los foi abortada após pedido dos jogadores, mas na convocação seguinte Renato Gaúcho não foi incluído e, em solidariedade, Leandro não se apresentou.

– Zico suplicou para que reavaliasse minha decisão, mas não voltei atrás.


Não me arrependo de ter sido solidário a Renato Gaúcho no corte da seleção, em 86.

Leandro não mostra-se arrependido e revela que apesar do gesto de fidelidade nem era tão amigo de Renato. Mas de festas sempre gostou e se esbaldava a cada título do Flamengo.

– Como foram muitos, imagina a quantidade… – brincou.

A verdade é que em campo a rapaziada resolvia. A relação de amizade era uma das receitas do sucesso daquele grupo, garante. Se hoje, os jogadores passam pouquíssimas horas dentro do clube, Leandro era um rato da Gávea. Só não atuou como goleiro, apesar de, na adolescência, fechar o gol atuando pelos Itajuru e Tamoyo. Nas folgas, aparecia no Flamengo para jogar cartas, porrinha, sinuca, ping-pong e totó. Conhecia todos os funcionários, afinal começou ali nas categorias de base e nunca vestiu outra camisa. Em 78, quarto reserva, foi emprestado ao Inter, mas reprovado nos exames médicos. Agradece até hoje por não ter interrompido sua história com o “mais querido”, iniciada por uma obra do destino e do 464 (Grajaú-Leblon). Veio ao Rio fazer pré-vestibular para Educação Física, estudava no Instituto Guanabara e morava na Praça da Bandeira. Um dia ele e o primo Nonato pegaram o ônibus, rumo à praia. O ponto final era em frente ao Flamengo. Na descida, Nonato, conhecendo a categoria do moleque, o incentivou a fazer um teste no seu time de coração. O pegou pelo braço e falou “vamos lá!”.


Minha camisa foi enterrada com o locutor Jorge Curi.

– Eram outros tempos. Na recepção nos pediram para voltar à tarde e procurar o Seu Orlando, responsável pela peneira. Estava sem chuteira, consegui um número maior, enchi os bicos com algodão, treinei, fiz gol e me pediram para voltar – recordou.              

No treino seguinte, marcou mais dois gols e não parou mais. Para os curiosos, como o saudoso roupeiro Bolinha, que perguntavam sobre experiências anteriores dizia ter vindo do Santos. O pessoal se impressionava. Claro que se alguém questionasse se era o Santos, de Pelé, ele abria o jogo e revelava ser o Santos, de Iguaba Grande, onde começou como lateral. E ria, ria e ria!!!! Leandro nos impressionou. Pureza é pouco! E emoção de inundar os olhos bastava lembrar da torcida, da Nação rubro-negra, apresentada a ele pelo pai Eliziário. Todas as noites quando se deita, fecha os olhos e imagina os gritos da maior do mundo enquanto sobe as escadas para o gramado. Como homenagem aos torcedores cantou o hino do Mengão….”uma vez Flamengo, sempre Flamengo…”. Mostrou o braço arrepiado e lembrou-se de Jorge Curi narrando o gol mais bonito de sua vida, de fora da área, contra o Fluminense, no estadual de 85.


– Pouco tempo depois ele morreu e sua família pediu minha camisa para ser enterrada com ele. É emoção demais! – disse, olhos cheios d´água.

Pedimos para que ele narrasse esse gol ao estilo Jorge Curi e ele espantou-se.

– Caraca, vocês não querem mais nada?

E Tabach emendou….

– Sim, que você pose segurando os peixes fritos.

Dinamite + PC Caju

RECEITA DE GOL

texto: Sergio Pugliese | vídeo: Guillermo Planel | foto: Guilherme Careca Meireles

Há tempos o Museu vinha tentando uma entrevista com Roberto Dinamite. Mas o maior ídolo da história andava recluso, acuado. Chegou a ficar um mês sem sair de casa, duelando contra a depressão. Com os rebaixamentos do Vasco para a Segunda Divisão a carreira política também desandou. Dinamite silenciou, sumiu, chorou. Mas a nossa intenção era apenas ouvi-lo, nunca colocá-lo contra a parede, assim como também não colocaríamos Eurico Miranda, seu inimigo declarado e também idolatrado por grande parte da torcida vascaína. Os dois viveram momentos de glórias, os dois mergulharam no caos. O Museu eterniza as glórias. 

– Topo falar hoje. Onde está?

Eu estava em casa, em São Conrado, e ele deixando a mulher no Leblon. Quando disse que viria a meu encontro, gelei. Sou vascaíno e ele, apenas ele, me ensinou a gritar aquele gol das entranhas do peito. No futebol, nunca tive outro ídolo como ele. “O Dinamite vem aí!!!”, berrei. Minha mulher, Sílvia, produtora do Museu, também vascaína, duvidou e ao mesmo tempo perguntou quem o fotografaria e gravaria a entrevista. Começamos a convocação!!!!

– Chego em duas horas – ligou Dinamite, para confirmar.

Meus filhos Rapha, tricolor, e Fred, vascaíno, acordaram e foram avisados sobre a visita. Ficaram eufóricos. Gêmeos de 12 anos não acompanharam a trajetória do craque vascaíno, mas expliquei que seria mais ou menos como se o Messi, aposentado, visitasse a casa de um torcedor do Barcelona. Liguei para o meu amigo PC Caju e perguntei se ele toparia papear com o Dinamite, parceiro de longa data.

– O Bombinha vai para aí? Estou indo!!!! – respondeu.

Ligamos desesperadamente para a equipe do Museu. A designer Izabel estava longe, num programa familiar inadiável. O fotógrafo Marcelo Tabach também, mas tentaria ir. Para conseguir atrair Guillermo Planel, vídeo, Guilherme Careca Meireles, foto, e André Teixeira, texto, apelei e disse que estava preparando um churrasquinho e havia estoque de cerveja gelada a espera deles. Em meia hora os três chegaram, poucos minutos antes de Caju e Dinamite. A partir daí foi só emoção. A maior delas quando os dois astros adaptaram copos, carteiras e isqueiros, sobre a mesa, para mostrar como faziam seus gols de faltas. Histórico!

– Fui feliz além da conta no Vasco! – resumiu.

E o papo rolou, divertido, nostálgico. Tabach chegou quando Dinamite se despedia, mas topou dar mais um tempinho e ser clicado. Peguei uma camisa do Vascão no armário. Uma camisa para o Dinamite, quem diria! Ah, Museu, assim você me mata!!!!

Leoni Nascimento

O rei da urca

texto: Sergio Pugliese | foto: Marcelo Tabach | vídeo: Guillermo Planel

Os amantes do futebol de praia, a mais carioca das modalidades esportivas, não hesitaram em citar Leoni Nascimento, o Leoni, como um dos maiores técnicos de todos os tempos. Aos 84 anos, o fundador do Guaíba, lendário time da Urca, até tentou desconversar, mas seus argumentos foram abafados pela legião de fãs, no encontro para homenageá-lo, no Belmonte, promovido pelo craque Alexandre Oliveira, o Xandoca.

— O Leoni merecia um busto, na entrada da Praia Vermelha! — afirmou o lateral Alcino, da geração campeã carioca de 1981 e 1983.


Da esquerda para a direita: Leoni, Delfim e o filho Bernardo. Fila da direita, da frente para o fundo: Alcino, Xandoca, Álvaro, Ivan Testa e Ivan Russo – Foto: Guilherme Careca Meireles

Líder incontestável, o velho Leoni levou seu precioso arquivo para o bar e espalhou fotos e recortes de jornais amarelados pelas mesas e, entre chopes e petiscos, a galera emocionou-se. Ao ler matérias sobre a conquista de 81 sobre o Juventus, o mais emocionante dos seis títulos, o goleiraço Álvaro chorou. Também pudera, que jogaço!!!! O Guaíba jogaria a decisão em casa, e pelo empate, mas com a Praia Vermelha vetada por conta da faixa de areia muito estreita, a final aconteceu em Botafogo, debaixo de um tremendo pé d´água. O Juventus era osso duro de roer e tinha Nena, irmão de Junior, do Flamengo, Renato e Pinduca. Mas o Guaíba, ah o Guaíba, dava gosto!!! Álvaro, Xandoca, Ivan Testa, Anderson, Delfim, Alcino, Mangueira, Betinho, Marquinho, Vavu, Pedrinho, Beto, Gerson e Russo.

— Mas havia um desfalque importantíssimo… — lembrou Ivan Testa.

Verdade, no dia da decisão, Leoni estava no Sul tentando levantar mais uma taça para o time de handebol do Flamengo. Como treinador da modalidade, conquistou seis títulos cariocas pelo Vasco, cinco pelo Flamengo e dois com o Guaíba. Filho de militar e nascido na Urca, bairro repleto de instituições militares, Leoni sempre zelou pela disciplina e quem saísse da linha ouvia o tradicional: “Paga 10!”. No caso, dez flexões. Muitos craques foram cortados do Guaíba por má conduta, mas os que passaram no teste viveram dias de glória.

— Ninguém o encarava porque além de tudo ele era mestre em jiu-jítsu — explicou o zagueiro Delfim, acompanhado do filho Bernardo e do amigo Ivan Russo.


João Havelange (de costas), Eurico Lyra Filho (Presidente da Liga Esportiva de Copacabana), Theodoro Sodré (Presidente da Liga Esportiva do Leblon), Leoni Nascimento (Presidente da Liga Esportiva da Urca) na época em que o futebol de praia era organizado em conjunto com a CBD (Confederação Brasileira de Desportes), presidida por João Havelange.

Mas a distância de Leoni não apagou o futebol do Guaíba. Garrincha, o treinador interino, até tentou dar algumas coordenadas, mas na preleção os craques estavam mais interessados nos “amassos” de um casal, que rolava pelas areias da Praia de Botafogo sem medo de ser feliz. Garrincha falou sozinho, mas a rapaziada era ensaiadinha, rolo-compressor. O temporal, naquela tarde de sábado, ameaçou o início do jogo, mas Túlio, o árbitro, falou que ali ninguém era de açúcar e trilou o apito. O Juventus partiu feroz para cima. Nena queria dar o título de presente ao irmão Junior, lateral do Flamengo, que naquela madrugada disputaria a final do campeonato mundial contra o Liverpool. Tanta pressão, virou gol. E olha, que passar pelas muralhas Ivan Testa e Delfim, e fazer gol em Álvaro, outra lenda da praia, não era tarefa das mais fáceis.

— O Álvaro agarrava firme bolas impossíveis, com uma das mãos, como fazia o goleiro Manga — afirmou o polivalente Xandoca.

Marquinho e Mangueira empurravam o time para frente! Anderson gritava e Pedrinho dava o sangue. O jogo caminhava para o fim. Escanteio!!! Alcino, lateral envolvente, pediu ajuda aos deuses e pensou “é tudo ou nada”. Nesse momento, um raio rasgou o céu e um trovão fez estremecer Botafogo. Alcino, pé direito, cruzou, Vavu disputou na cabeça com o gigante Pinduca e a bola sobrou para Betinho, o maestro, número sete. O chute não saiu forte e a bola, espirrada, entrou lentamente. Delírio!!!! Fim de jogo!!!!

— Aquele título tinha que ser nosso! — desabafou Álvaro.

De Botafogo, a galera “voou” para o Bar Canal 6, da TV Tupi, na Urca, apelidado pelos “guaibenses” de Vestiário Alegre. Do orelhão ao lado, fizeram fila para chorar com o técnico Leoni, o cara! E à noite, comemoraram o título do Mengão com o manto sagrado do Guaíba.

— Esses meninos me deram muitas alegrias — emocionou-se Leoni.

Em 83, ganharam novamente do Juventus e ainda teve 93. Leoni já havia papado o Carioca, de 60, e o Brasileiro de 71 e 72. As provas estavam na mesa do bar. Ah, tempo bom!!! Leoni lembrou dos pioneiros Ronald, Zeca, Rodrigo e Paulo Tovar, Walter, o capitão Mauro Laviola, Amaury Bitete, Sapo, sargento Lima, Acreano, Álvaro Santos, Parede, Canarinho, Raul Celso Lins e Silva e Horacinho, maior artilheiro do time, com 205 gols. Nosso fotógrafo, Guilherme Careca Meireles, figurinha carimbada das muretas da Urca, pediu para posarem. Família unida, o goleiro Álvaro puxou o samba oficial “aé, aé, no Guaíba só joga quem sabe dar olé”. O Guaíba acabou, mas nas resenhas continua vivendo dias de glória.


Time do Guaíba, campeão do Carioca de 1960.

 

OBS: Esse texto foi publicado na coluna A Pelada Como Ela É em março de 2015, e agora é reeditado após o convite do fotógrafo Marcelo Tabach para que Leoni voltasse a vestir o unifome do Guaíba no campo de tantas glórias.

Búfalo Gil

BÚFALO TRICOLOR

texto: Wilson Aquino | fotos: Marcelo Tabach

Era uma constelação! Rivellino, Paulo Cezar Caju, Carlos Alberto Pintinho, Carlos Alberto Torres, Dirceu, Manfrini, Doval e, entre tantos craques consagrados, um moleque atrevido de 24 anos: Gil. Búfalo Gil.

Eu não sei vocês, mas sempre que ia ver o Fluminense jogar, naqueles anos de 1975 e 76, tinha duas certezas: comer um Geneal e ver um gol do Gil. Eu e todo o Maracanã sabíamos que quando o Rivellino pegasse uma bola livre, na intermediária do Flu, soltaria um pombo sem asa que atravessaria mais de 50 metros de campo até pousar nos pés do Gil. Aí, amigo, sai da frente do Búfalo. O cara era forte pra Búfalo! O bruto jogava sem atadura, caneleira ou qualquer proteção. Era só meião e chuteira. Quando ele cortava pro meio, soltava uma bomba indefensável de canhota.

Todo mundo sabia disso. O que ninguém sabia era como evitar.

Mas, como nasceu a jogada fatal?

Quem chutar que foi meio sem querer, acertou.

Búfalo Gil, uma das principais peças da Máquina de jogar futebol, conta como foi. 

Prestes a completar 65 anos, ele hoje leva uma vida pacata, em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Mas, continua batendo duas peladinhas por semana. “Depois que o cara para de jogar, ele se torna peladeiro. ‘Da pelada viestes, à pelada voltarás’. Eu comecei na pelada, no campinho de terra batida”.

OS SEGREDOS DA MÁQUINA

Quando o Fluminense contratou Rivellino, em 1975, Gil estava no clube há quase dois anos. Ele veio do Vila Nova, de Minas Gerais, para ser centroavante. Nunca passou por sua cabeça que um dia viraria ponteiro. Gil sempre fez muitos gols, desde os tempos de juvenil no Cruzeiro. No Carioca de 1974, sua primeira temporada no Flu, terminou em quinto lugar na artilharia, com 11 gols. Perdeu para jogadores do naipe de Luisinho, do América (20 gols), Zico (19), Nilson Dias, craque do Botafogo (18) e Roberto Dinamite (17). 

“Inclusive, na estreia do Rivellino,  joguei de centroavante. Cafuringa era o ponta direita”, lembra. A estreia de Rivellino foi no sábado de Carnaval de 1975 e na quinta-feira, a equipe se reapresentou. “Fomos treinar no CEFAM (Centro de Educação Física da Marinha) porque o campo das Laranjeiras era um curral. Aquilo não era um campo, era um pasto”.

Gil é assim mesmo. Não tem papas na língua.

O trajeto entre o clube, em Laranjeiras, e o CEFAM, na Avenida Brasil, Penha, era feito de Kombi. Difícil acreditar, mas o valioso time tricolor atravessava a cidade de Kombi!!!! “Eram duas Kombis. Uma levava a rouparia e a outra nos levava. Era um divertimento total”.

O treinador era Paulo Emílio, técnico muito sério, disciplinador, que não dava espaço para brincadeiras.

Durante o treino, o primeiro de Rivellino no Flu, o meio campo era Cléber, Pintinho e Rivellino. O ataque: Cafuringa, Gil e Mário Sérgio (Paulo Cezar Caju chegaria cerca de um mês depois).

A chegada de Rivellino mexeu um pouco com o ambiente do time. Não era para menos. Ele era o melhor do mundo.

“O Cléber (1954-2009) pegava a bola e só dava no Rivellino. Eu, atacante, saía daqui, ia ‘prali’, me deslocava pra cá, pra lá e nada. Não recebia. Comecei a discutir com ele. ‘Ô Bequinha, não é só o Rivelino que joga, não, malandro! Tem que dar a bola pra gente também’. Aí, ele me mandou para aquele lugar. E eu, ignorante por natureza, bruto igual a uma porta, sem pensar, mandei uma porrada nele”. Gil sentiu-se desafiado. Como um jogador mais novo cresceria em cima dele?

“Aí o Paulo Emílio botou a gente pra fora do treino. Isso na quinta-feira. Tinha jogo no domingo contra o Madureira, estreia do Cariocão. Fomos para o vestiário tomar banho, esfriamos a cabeça e acabou, morreu ali”.

Mas, não para o treinador.

Paulo Emílio não relacionou Cléber e Gil nem para o banco no jogo de estreia. 

“No vestiário sempre tinha um quadro que anunciava a convocação da concentração. A gente concentrava no Hotel Nacional, em São Conrado. E todo mundo olhava, né? Tinha trinta e tantos jogadores. Quando fui lá, o meu nome não estava. Nem olhei se o Cléber estava, mas meu nome não aparecia”.

No time da Máquina, entre os jogadores, todo mundo tinha apelido. O Cléber era “Bequinha”. O Gil, “Cabeça” e o capitão Assis, o “Cabeção”.  O Rivellino, obviamente, era o Bigode.

Como não estava relacionado, Gil pegou suas coisas e foi embora. Na saída do clube, deu de cara com o zagueiro capitão Assis. “Cabeça, o que houve?”. “Meu nome não está na lista”. Assis pediu a Gil para esperar. Foi lá e conferiu. Nem Cléber, nem Gil constavam na convocação. Assis interveio e Paulo Emílio voltou atrás. “Não gostei porque era bruto igual a uma porta e aquilo foi uma imposição de um amigo”.

Gil e Cléber dividiram o quarto na concentração. Mas, no dia do jogo:

“Fomos para o Maracanã. Chegamos no vestiário e o Ximbica (saudoso roupeiro do Flu)  estava com a lista na mão e me olhando: ‘Tá fora, hein, Cabeça! Você e o Bequinha estão fora’. O Ximbica era quem arrumava o material. Ele que contou pra gente. Peguei minha bolsa e fui saindo. E o Assis: ‘onde é que você vai, Gil?’ Vou sair fora, não vou jogar, nem no banco eu estou. Fomos pras cadeiras assistir o jogo. Aí, ganharam de 1 a 0 apertado, gol de Erivelton”.

O outro jogo foi contra o América. Gil e Cléber sentaram no banco. Mais de 100 mil torcedores no Maracanã e Gil se mordendo de raiva. “Se fosse parte técnica, você tinha que ficar calado. Mas não foi. Eu pensando comigo: se fosse o Riva, que era o top de linha do nosso time, ele não ia fazer isso”.

Começou o jogo. Aos seis minutos, 1 a 0 América. No ano anterior, o Flu tinha perdido todas para o América. Perder mais uma não estava nos planos.

“O América era um timaço. Tinha o Ivo, Bráulio, Luisinho, Tadeu, Flecha, Pires, Orlando Lelé. Eles tinham sido campeões da Taça Guanabara, de 1974, em cima do Fluminense. Gol do Orlando Lelé, de falta. Eu estava naquele jogo”. 

Gil nem se deu ao trabalho de calçar as chuteiras. Continuou sentado no banco, sem querer pensar no seu futuro como jogador do Fluminense. No intervalo, todos os atletas desceram para o vestiário. Menos ele.

Começou o segundo tempo e o América dominando o jogo.

De repente, o preparador físico Carlos Alberto Parreira chama os dois, Cléber e Gil. Naquele tempo não podia aquecer no gramado. 

“A gente tinha que descer naquele corredor, que fedia à urina, porque todo mundo nervoso, antes do jogo, fazia o ‘xixi do medo’. Todos os times mijavam ali. O jogador só se tranquiliza quando está dentro do campo. Fora é aquela tensão!”.

Mas quis o destino que quando Gil começasse a subir a escada saísse o gol do Fluminense. Manfrini de cabeça, aproveitando cruzamento de Marco Antonio.

E agora? O disciplinador Paulo Emílio tiraria o centroavante que acabara de fazer o gol para colocar um jogador rebelde?

Gil estava aquecendo à beira do gramado quando surge a dúvida: quem vai sair?

Gil pensou em Manfrini, mas Paulo Emílio gritou: “Gil, Gil, peraí!”.

Se o Paulo Emílio suspende a alteração, aquele talvez fosse o último jogo de Gil pelo Fluminense. 

“Peraí, o quê?”, questionou um Gil aflito.

“Não vai sair o Manfrini… é o Cafuringa. Joga pelo lado direito com o Manfrini na frente. Você é veloz, muito rápido, muito forte”.

Gil não entendeu nada. “A gente nunca tinha treinado isso. Só que o Rivellino é muito inteligente. Quando entrei no jogo, ele falou pra mim: ‘não fica aberto, não! Não vai no papo do treinador. Você não é ponta. Deixa o Manfrini com o lado esquerdo e do meio da área e o da direita é seu’.

Gil entrou aos 16 minutos do segundo tempo. Era domingo. Nove de março de 1975.

Oito minutos depois, Marco Antonio arrancou pelo lado esquerdo do campo e jogou a bola na área. Ela pegou uma curva. 

“Eu estava entre o bico da grande área e a marca do pênalti. Daquela posição, o normal seria pegar de direita. Eu peguei de canhota. Isso foi incrível! Foi o gol mais bonito que eu fiz na minha vida. Fiz muito gol de perna esquerda, mas, esse gol, do jeito que a bola veio… Ganhamos o jogo. Fui eleito o melhor da partida. Ganhei moto-rádio… ganhei até terno da Moreira-Ducal”.

E a Máquina engrenou a partir dali.

“O Rivellino dizia: ‘Cabeça, quando eu estiver te olhando, a bola não vai chegar. Porque quando eu te olhar, os caras te marcam. Eu vou olhar pro outro lado, mas vou meter a bola em você’. Isso é troço de gênio! É coisa de cara que é de outro planeta! Eu, malandramente, ficava entre o lateral esquerdo e o quarto zagueiro. Um olho no Rivellino e o outro na direção do gol. Pensava, quando ele meter a bola, até esse zagueiro virar, eu já ganhei dois, três metros. Aí ele metia como ninguém. E me ensinou outra coisa: a bola dele vinha rodando. Pra tu dominar era uma desgraça, malandro! Vinha igual a um pião. Um dia ele disse pra mim: ‘olha só, bola rodando não se domina!’. Olhei pra ele: Tá me sacaneando, porque teve uma jogada em que a bola fugiu. ‘Porra, Gil, não domina a porra da bola!’. Vou fazer o que então? ‘Só chapa a bola pra frente que acaba a rosca’. 

“Não me incomoda as pessoas falarem que sem o Rivellino, o Gil não seria o Gil. Mas eu faço questão de lembrar que já tinha saído do Fluminense há dois anos quando fui para Copa do Mundo”.

Gilberto Alves, o Búfalo Gil, foi o maior artilheiro da Máquina. Fez 58 gols nos dois anos que aquele time maravilhoso existiu. No total, entre 1974 e 1976, jogou 172 partidas pelo Flu e marcou 74 gols.

No final de 1976, Gil, Paulo Cezar Caju e Rodrigues Neto foram envolvidos no troca-troca com o Botafogo. Eles foram e o lateral esquerdo Marinho veio para o Flu. 

Gil seguiu carreira. Foi titular na Copa do Mundo de 1978, na Argentina. Jogou no Corinthians, no Múrcia, da Espanha, no Farense, de Portugal, e no Coritiba.

Fez 569 gols em 20 anos de carreira. Marcou em todos os times que jogou.  Mas, nunca esqueceu o Fluminense, seu time de coração.



Gil e Wilson Aquino


Gil e Marcelo Tabach