A VARADA FATAL
O parceiro Marcelo Migliaccio publicou em seu bacanérrimo blog Rio Acima essa crônica sobre o triste fim de um goleiro guloso. Claro, pedimos para tirar uma casquinha no Museu e ele cedeu.
por Marcelo Migliaccio
Um amigo meu está sendo procurado por homicídio. Deu-se o seguinte:
A turma sempre se reunia para jogar peladas nesses campos do interior, esses que têm mais areia do que grama, balizas arqueadas e redes furadas. Porteiros, garçons, contínuos, motoristas, na maioria nordestinos, saíam da Zona Sul em ônibus furrecas alugados na base da vaquinha. Suas mulheres e namoradas iam junto, algumas levando crianças. O velho jogo de camisas tinha um cheiro insuportável de roupa suada, mal lavada e que não secou direito. Dizem até que era por isso que o time colecionava mais derrotas que vitórias: os jogadores corriam prendendo a respiração o que, segundo as leis da física e da biologia, é incompatível com um bom desempenho atlético. Mas o “time dos paraíbas”, como era conhecido pelos playboys do bairro, nunca deixava de se divertir.
O tal crime aconteceu em Friburgo, acho. O adversário dos “paraíbas” era o time de um cunhado do Chico Sola, zagueiro voluntarioso que ganhou o apelido porque, certa vez, atuando descalço, deu um chute em falso e a sola do seu pé literalmente se desprendeu, como acontece com um sapato velho. Mas o Chico nem assim abandonou o prélio, tingindo toda a sua grande área com o vermelho do próprio sangue. O time perdeu, claro, e o apelido ficou.
Depois de uma viagem com muita batucada, chegaram a Friburgo já triscados. Duas garrafas de pinga foram derrotadas no trajeto. Katinha, um baixinho que jogava de ponta direita, era o mais empolgado.
– Hoje vou arrebentar, tô sentindo.
Tinha esse apelido por causa de um ponta-direita baixinho que jogava no Vasco naquela época. Fora das quatro linhas, Katinha bebia que nem gente grande, só que não tinha muita resistência ao álcool e dava muita alteração. Era o tipo de bêbado chato. Na volta da excursão anterior, só parou de perturbar no ônibus quando foi nocauteado com um saco de chuteiras que devia pesar uns 50 quilos. Metido a galã com seu bigodinho bem cuidado, vivia mostrando a foto da mulher, que parecia ser uma gata. Nunca ninguém o viu com ela pessoalmente, desconfio que só tinha a foto na carteira…
Chegaram cedo, por volta das nove horas e o cunhado do Chico Sola deu as boas vindas à galera visitante. Lá pelas onze e meia, começou a ser servida uma farta feijoada. Daquelas completas… rabo, pé, orelha e o escambáu. E tome cerveja, e tome cachaça. Por volta das cinco, depois de alguns já terem dormido o sono dos justos, foram todos para o campo. O time da Zona Sul com o surrado e irrespirável uniforme vermelho e os donos da casa de verde.
O jogo foi meio ruim de ver, como aliás sempre acontecia. Era mais um programa humorístico que um espetáculo esportivo. Furadas, caneladas, choques de cabeça, muita reclamação e muita gargalhada, principalmente da torcida. A galera, aliás, não arredava pé, já que o isopor de cerveja fora estrategicamente colocado embaixo da pequena arquibancada. Tinha cunhada, avó, priminho e agregado torcendo a valer. Quando Katinha pegava na bola, era uma festa. Elétrico, ele tentava todo o seu repertório de jogadas, que incluía dribles esquisitos e um chute potente mas sem direção nenhuma.
O empate de 2 a 2 estava bom pra todo mundo quando o juiz, um coroa que usava óculos fundo de garrafa, cismou de apitar um pênalti para os visitantes. Depois de muita discussão e ameças de agressão física, a marcação foi confirmada. Katinha, cheio de autoridade, tomou a bola para si.
– Eu sofri a falta, eu vou bater!
No gol, estava um tal de Pedrão, que ostentava uma tremenda barriga, turbinada ainda mais naquele dia com quatro inacreditáveis pratos de feijoada. Mastigando um fiapo de grama, Katinha tomou distância. Firmou os lábios pra cima espremendo o bigode para dentro do nariz e respirou fundo. Então, correu e deu seu chute mais potente, que ele mesmo apelidara de “varada”. Mirou no canto mas acertou no meio do gol, onde Pedrão havia permanecido já que mal conseguia se mover de tão cheio de feijão e cerveja. A bomba explodiu bem na boca do estômago, e o goleiro tombou para trás. A torcida inicialmente caiu na risada mas, quando viram que era sério, fez-se um silêncio sepulcral no campo de várzea.
– Liga pro 190!
Vou poupar o leitor de descrições detalhadas, mas o fato é que Pedrão não se levantou mais.
No mesmo instante, a pequena torcida e os outros 21 jogadores saíram atrás do pobre Katinha como se ele tivesse feito aquilo de propósito.
– Você matou o cara, porra!
– Pega!
Katinha fugiu em disparada pelo matagal que circundava o campo e nunca mais foi visto. Nem em Friburgo, nem em seu emprego no Rio, nem em lugar nenhum. Até hoje é procurado por homicídio culposo. Pombas, Katinha era chato, mas daí a…
O pobre Pedrão foi enterrado com honras. Evitou a derrota com a própria vida.
E nunca mais serviram feijoada antes das peladas dos paraíbas, que agora procuram um novo ponta-direita.
JOGO DE ESTREIA
Por Ivonesyo Ramos
Benício posa com uma de suas obras mais famosas
Você dá uma bola para a criança e ela, feliz da vida, começa a brincar. Assim foi com José Luiz Benício da Fonseca, o Benício, e sua bola favorita: o desenho. Estamos em meados de 1960 e o nosso craque gremista, herança de família e tricolor a primeira vista, já encantava o público com suas pinceladas nas capas de pocketbooks e editoriais. A McCann Erickson, agência de propaganda onde trabalhava, pede duas pranchas para ilustrar a nova campanha para o banco do estado de Minas Gerais. A primeira, uma visão do Maracanã em clima de final de jogo, onde o texto homenageia o cliente numero 500.000 apaixonado por futebol. E a segunda, um mix de imagens onde Garrincha e Pelé disputam a bola. Olhando hoje, a imagem tem um certo tom profético já que Benício viria a ser o Pelé da ilustração.
Perguntei se ele sentiu o famoso frio na barriga da estreia em uma campanha nacional. Com um sorriso gostoso, respondeu que não e acrescentou:
– Já não lembro mais! (e gargalhou)
Sua produção tem uma quantidade e qualidade fenomenais. O artista revelou ainda que, quando vê trabalhos muito antigos de sua autoria, precisa de algum tempo para acessar a memória.
Observar o original ilustrado em “gouache” é uma grande felicidade. Admirar as pinceladas geniais compondo a cena é um privilégio. Ao seu redor, amigos de trabalho e de prancheta. Benício, no centro, veste camisa azul. Sim, a cena é de um tricolor saindo do Maracanã em seus áureos tempos!
Benício, de camisa azul, rodeado por amigos em uma de suas obras
Da esquerda para direita temos: Roberto, Melo Menezes, Flavio Colin, Joaquim pessego, Coutinho (jogador do Santos) e seu irmão. Além desses, o próprio Benício posou para as figuras na margem do campo à direita.
Mas e o futebol Benício?
– Retratei muito o tema em meus trabalhos é uma paixão nacional, mas confesso não ser meu forte.
No entanto, a rivalidade Fla x Flu é sempre tema de brincadeira com seu assistente, visto que Carlos Henrique não perde oportunidade de gabar-se do Flamengo a ponto de batizar de “Verde rubro negro” a cor verde da natureza carioca. Vale destacar que na ilustração tem duas bandeiras do Flamengo e nenhuma do Fluminense. E a brincadeira segue…
Cartaz do filme Pelé a Marcha
Por serem sempre trabalhadas por referências fotográficas, não havia a necessidade de ir ao Maracanã para fazer as ilustrações. Com treze anos, Renato, um dos quatro filhos de Benício, se encarrega de insistir com o pai, que finalmente o leva a um Flamengo e Vasco. Recheado de aventuras, com direito à falta de luz, o Flamengo ganhou de 1 a 0 e estava ali selado um novo flamenguista doente. Renato tem um filho, Arthur, e adivinhem? Já veio perguntando ao pai como entra para faculdade e se forma jogador do Flamengo. Em uma quarta-feira de cinzas, dia do seu aniversário de seis anos, Arthur pede ao avô Benicio para ir ao jogo do Flamengo com ele. Isso mesmo: Benicio sozinho no meio de rubro-negros!
Há mais de 50 anos na área, Benício já trabalhou com os mais variados temas e clientes, utilizando na maior parte de seu trabalho o “gouache” sobre papel. É reconhecido por colegas e público em geral como um dos ilustradores brasileiros de maior destaque.
Em sua carreira de ilustrador, Benicio mostra como o futebol despertou paixões. Tudo isso graças a sua capacidade de ilustrar multidões embaladas de alegria, como as torcidas às vésperas do apito inicial. Há quem pergunte qual o segredo, não há segredo. Ele pintou tudo com a alegria e o amor de criança revestido de todas as responsabilidades do mundo adulto. Alegria e amor dão vida a tudo, é o mesmo sentimento estampado no sorriso da criança ao ver uma bola!
Original e Obrahma
Original e obrahma
texto: Sergio Pugliese | vídeos: Guillermo Planel | fotos: Marcelo Tabach
Os dois Obamas nasceram no dia 4, o original em agosto e o genérico em junho, “um mês antes da Independência dos Estados Unidos”, como gosta de frisar o sósia Rinaldo Gaudêncio Américo (quase América!!!). Os dois Obamas tiveram pais negros e mães brancas. Os dois Obamas não são muito íntimos de uma bola de futebol, o original prefere basquete e o genérico, atletismo. Mas no Museu não existe concorrência e tudo acaba em cerveja. Se um é Original o outro é Obrahma e fica tudo em casa!!!
– Esse é último ano “nosso” no poder, mas ainda temos um futuro brilhante pela frente – afirmou Rinaldo, motorista da Rádio Globo.
Cria de Campo Grande, Rinaldo Barack, como assina no perfil do Facebook, é constantemente chamado para eventos e até desfilou de sunga na Parada Gay. É ultra profissional e acompanha a mudança de guarda-roupa do presidente. Sabe quando mudou a gravata, os cortes de terno e cabelo. Quando sua participação é mais profissional chega a pintar o cabelo de grisalho. Virou folclore na Geral do Maracanã quando ia aos jogos de seu Mengão, de terno e com dois guarda-costas, de óculos escuros e elegantemente vestidos.
– Se tivesse o poder de um presidente ordenava que trouxessem a Geral de volta. Não custava nada criarem um espaço para esses personagens que davam vida ao Maracanã.
VOA CANARINHO, VOA…
Por Mariza Pelegrineti
Quando eu era pequena, lá em Barra Mansa, o programa de domingo era ‘batata’: fim de tarde, a família reunida em volta da mesa de pedra no quintal da tia Déa para ouvir futebol pelo radinho de pilha! Meu pai, Ary, apaixonado pelo tricolor e sempre assoviando – talvez para acompanhar os canários que volta e meia trazia engaiolados para casa – deixou em mim e no meu irmão Fábio o amor pelo Flusão. Minha mãe, Ena, também era tricolor, mas virou casaca à época do Zico e passou a fazer parte da torcida rubro-negra da família, pulando pro lado dos meus irmãos Cláudio e Eloísa. Se não me falha a memória, a caçulinha Ângela sempre fez parte da turma do ‘deixa disso’, para separar as possíveis desavenças futebolísticas da família Fla x Flu, e nunca vestiu a camisa de time algum, muito pelo contrário…
O escrete canarinho
Mas o tempo passa, o tempo voa, e hoje a tia Déa, lá em Barra Mansa, que me perdoe, mas vou roubar o papel dela no remake desta história. Dez sobrinhos e três filhos mais tarde (dois tricolores e um flamenguista), hoje, 2 de outubro de 2011, eu sou a tia desta história. Como não tenho quintal, nem radinho de pilha, resolvi alçar vôos maiores e deixar registrado aqui neste blog: finalmente, a família resolveu torcer por um só time! Calma, ninguém mais virou a casaca! Isto só foi possível graças à ‘íncrível’ campanha dos meus sobrinhos flamenguistas Maurício – vulgo Batata, ou, Sr. Incrível – e seu irmão Luiz, ou Elefante, filhos do meu irmão tricolor Fábio (e minha mãe que sempre dizia ‘quem sai aos seus não degenera’…hehehehehe) e da Tininha, também da turma do deixa disso!
Bem, voltando ao futebol, que é a pauta do dia: Maurício e Luiz – que hoje completa 24 anos – vão carregar a família na tarde deste domingo para torcer pelo Canarinho FutebolSociety, time para o qual ambos suam a camisa em campo e que participa, pela primeira vez, da final da série Prata do Campeonato organizado pela Niteroi Futebol Sete, Liga de Futebol Society de Niterói, no Colégio Salesianos, em Santa Rosa. Claro que eu, como tia coruja, tenho certeza que o Canarinho deve muito esta classificação para a final ao desempenho dos dois!!!
A tia coruja e os sobrinhos peladeiros
Novamente voltando para o campo, o jogo, contra o Znit F.S., começa às 15h30. A expectativa dos organizadores é que mais de mil pessoas – entre equipes e público – compareçam às finais do campeonato. E no meio desta galera estaremos todos da família lá, tricolores, flamenguistas e a galera do ‘deixa disso’ para torcer pelo resultado que, esperamos, também seja ‘batata’: Voa Canarinho, voa …
QUEM SEGURA BETINHO?
por Sergio Pugliese
BRASÍLIA, da esquerda para a direita, em pé: Vanderlei (torcedor), Odamyl, Deda, Paraíba, Tarcis, Abílio, Alemão, Moeda, Lair (massagista) e Gama (presidente). Agachados: Alfredinho, Cascão, Bafora, Deca, Betinho Carqueija, Sergio e Pedrinho.
Brasília 4 x 0 Matias Barbosa (Juiz de Fora)
Com a elegância de sempre Betinho Carqueja, zagueiro ao estilo Mauro Galvão, se antecipou ao centroavante e saiu jogando de cabeça erguida. Nesse momento, a pelada foi interrompida por um baixinho gorducho, que invadiu o campo. Betinho custou a acreditar mas o homem em questão era seu médico particular tentando salvar sua vida. Não há dúvida, Betinho é um paciente-bomba! Carrega no peito três pontes de safena e há alguns anos enfrentou uma delicada cirurgia para desentupir uma artéria, que o deixou 12 dias internado. Betinho é assim, vive driblando o cruel momento de pendurar as chuteiras.
– Betinho, você está brincando com a verdade – gritou o doutor.
– Acordei bem disposto e achei que dava – desdenhou.
Betinho Carqueija, Tião Búfalo, o saudoso Zeca Diabo, Evaristo de Macedo e Marinho Picorelli (Foto: Guilherme Careca)
Os amigos pressionaram pelo reinicio do jogo. Sabiam que Betinho era tinhoso e não seria dobrado facilmente. Mas dessa vez ele cedeu e assistiu o resto da partida na beira do campo, emburrado como poucas vezes se viu. Betinho conhece seu corpo e seus limites como ninguém. Seu currículo médico se compara a um catálogo telefônico, mas ele continua amando a bola mesmo ela já tendo lhe causado alguns prejuízos. Com 13 anos, jogava bola debaixo de um temporal quando um galho caiu e rachou sua cabeça. Ao todo foram três cabeças quebradas. Dias depois, ainda enfaixado, pulou o muro do vizinho para pegar sua bola e foi atacado por um vira-latas. Doze pontos. Estiramentos, distensões e torções, não contabiliza. Mas dentro de campo já quebrou uma perna, um braço, o dedo mindinho, o nariz e a clavícula. Os dedões do pé não conhecem unha há tempos e tem astigmatismo por conta de uma bolada. Fora isso, sua respiração é falha, é diabético, tem hepatite crônica e a labirintite lhe faz perder o equilíbrio nos jogos. Ah, ainda teve duas pneumonias fortes.
Mas quem segura Betinho? Setenta quilos, 74 anos e um amor pela bola indomável!
– Ele quer morrer em campo. Deixa! – resume o filho Marcelo, zagueiro de responsa, que segue o caminho do pai, não pelo futebol, dez degraus abaixo, mas pelos problemas médicos: sofre com uma artrose no quadril e uma fratura de tornozelo. A neta Marcela, de 17 anos, não perde um jogo e a mulher Edite desistiu de dar conselhos até por já ter sentido na pele o poder da concorrência com a bola. Há alguns anos, no momento em que ela operava hérnia de disco, Betinho Carqueja corria atrás dos atacantes no campo do Curupaiti, um de seus palcos preferidos.
PALMEIRAS, da esquerda para a direita, em pé: Jorge (torcedor), Roberto, Betinho Carqueija, Jorginho, Delmo, Maurílio (Atlético MG), Jorge Luiz, Joaquim (presidente) e Nilo (técnico).
Agachados: Dequinha (ex-Desportiva ES), Joel e Paulinho (tricampeões pelo Flamengo 53/54/55 e 58), Paulinho (Fluminense) e Mauro.
Palmeiras 7 x 1 Frigorífico (Campo do Confiança), 1965.
– Para ele, a bola está em primeiro lugar. Em segundo e terceiro também – reconhece, resignada.
A fragilidade de Betinho é superada por sua teimosia.
– É isso que me deixa vivo – resume.
A pelada realmente exerce uma força maior sobre ele. Quando a bola começa a rolar suas articulações ganham vida própria, é como se bebesse da fonte da juventude, voltasse a ser criança. Na verdade, quando menino Betinho repetia as mesmas artes de agora. Não tinha sarampo, catapora ou coqueluche que o prendessem em casa. A bola guardada debaixo da cama era sua grande companheira e fugia com ele para onde fosse. Mesmo debilitado, ele marcava presença e voltava mais bem disposto para casa.
– Não morri por causa disso. A pelada me faz sentir vivo! Me deixem correr!!!!
Ninguém segura Betinho!
PALMEIRAS, da esquerda para a direita, em pé: Chocolate II, Otaziano (Bangu), Delmo, Joelson, Roberto, Jorginho e Dadinho (mascote).
Agachados: Fernando, Chocolate I, Joel (tricampeão pelo Flamengo 53/54/55 e 58), Betinho Carqueija e Mauro.
Palmeiras 1 x 0 Industrial (Paracambi)