Escolha uma Página

Da várzea ao sonho. Para Tavito, com amor!

::: por Marcelo Mendez :::


Em um domingo de sol, para Truffaut renascer e filmar, acordei para mais um dia de futebol de várzea, no ABCD, com aquele bom sorriso de menino saudoso no rosto e um som do Tavito nos fones, a caminho do campo do Nacional, onde Guaraciaba e Marajoara se enfrentariam pela decisão do Campeonato de Santo André. Pelo caminho, vi rostos, vi instrumentos de samba, vi sonhos, vi alegrias…

Senti firmemente a possibilidade intrínseca do surgimento de um milhão de odes poéticas que o futebol de várzea é capaz de me dar. Entrei no campo do Nacional e, naquele momento, “Rua Ramalhete” era a música que tocava e o verso citado é a premissa inevitável que rege os momentos que antecedem uma final da várzea. Em mim é assim, não tem como ser diferente…

“Sem querer fui me lembrar…” – Lembrei de tudo. Do menino que fui, do garoto que jogou bola, que amou, que se entorpeceu de paixões e fugas, do homem que em meio a tempestades, decepado, segurou muito mais do que apenas a primavera dos dentes. Eu quis a vida. Hoje quero a várzea…

Pelas ruas do Parque Novo Oratório, em meio aos ramalhetes que me são possíveis, sigo fortemente pelo caminho que pode me levar a algum lugar que não seja apenas calmo. Quero mais, quero tudo. Busco nos rostos e nos corações dos homens pela centelha de alegria que os moveu um dia e que por alguma estranha razão se apagou. A renitência do poeta em fazer dessa mínima centelha uma labareda de paixões e versos é o que mantém viva a beleza. Escolhi o futebol de várzea porque na várzea eu encontro tudo isso.

Asseguro aos senhores que em uma final de várzea reside toda a carga poética de um milhão de Shakespeares em fúria. Nada, absolutamente nada do que se ouse imaginar como épico, chegará aos pés de uma final de futebol de várzea. Obra prima alguma passará da condição de reles chanchada mal feita, ante uma partida de futebol dessas.

Uma final de várzea começa dez segundos antes do encanto e termina vinte séculos após o beijo na boca. Vejam esse domingo último, no campo do Nacional. Havia por lá dois times de futebol. Guaraciaba, lendário, tradicional, com toda a pompa de décadas de grandeza, de conquistas e títulos que o elevaram a condição de grande no futebol de várzea da cidade; Marajoara, novo, recém fundado em 1992, encontra-se na fina flor da lira dos seus 20 anos. Ambos querem obviamente o título, mas, de maneiras distintas.

Guaraciaba quer afirmação, calmaria, regozijo, mais uma glória entre tantas em sua história; Marajoara quer a festa! Na fúria e ira santa de seus 20 e poucos anos, o time recém chegado às grandezas curte a busca pelo título da mesma forma que um adolescente virgem vive sua primeira paixão. Uma coisa forte, sanguínea, intensa. Assim foram ao jogo.

Duro, pegado. O 1 × 1 levou aos pênaltis, não por nada de tática ou coisa parecida, de forma alguma. A decisão da marca da cal serviu para que sons de silêncio fossem ouvidos. Para que o mundo parasse para ver o campeão da várzea de Santo André. Quando Jorge finalizou a quinta cobrança dando o título ao Guaraciaba a magia estava feita. Abraços foram dados, bocas se beijaram e os corações voltaram do tempo em que foram paralisados até a bola definir seu destino: as redes. Título para o Guaraciaba e ode feita ao mundo.

Quem esteve no campo do Nacional viu: a várzea novamente abençoou o domingo.

Hoje a cor oficial do luto é laranja.



Cansou de ver tanta canelada.

Ao saber da morte do amigo Johan Cruyff, a quem enfrentou e perdeu na Copa de 74, PC Caju mandou um direto no queixo: “Cansou de ver tanta canelada!”. E emendou: “Colocou muita gente na rodinha, revolucionou o futebol”.

A causa da morte foi câncer no pulmão, mas segundo Caju, se o craque holandês tivesse assistido alguns joguinhos dos estaduais brasileiros certamente a doença teria se agravado. Maestro do Carrossel Holandês e tricampeão europeu pelo Ajax, 71, 72 e 73, Cruyff foi um dos responsáveis pela criação do rolo-compressor Barcelona e idolatrava o futebol brasileiro, em especial o Baixinho Romário. Hoje a cor oficial do luto é laranja.

JOCA, O CRAQUE INFALÍVEL

Por Victor Kingma, de Minas Gerais

Finalíssima de campeonato no interior mineiro e o time da casa precisava desesperadamente da vitória. O empate daria o título ao arquirrival.

Para piorar as coisas, um problemão: Joca, o grande craque da região, o Pelé da época, muito gripado, não podia jogar. A pedido do técnico, fica no banco de reservas, apenas para intimidar o adversário.

Rola a bola e o jogo é tenso, fechado, nada de oportunidade de gol para nenhum dos times. Já no finalzinho, o técnico, em desespero, chama o Joca e pede:

– Vai pro sacrifício, meu craque! É tudo ou nada. Só você pode nos salvar!

E o nosso herói entra em campo, aos 41 minutos do segundo tempo. Aos 44, em um contra- ataque, o ponta direita Fumaça vai ao fundo e cruza: Joca mata a bola no peito, tira o beque da jogada e dispara…

A torcida se levanta, os locutores enchem os pulmões para gritar gooool!…

De repente, os refletores do estádio se apagam… Ninguém consegue ver a conclusão do lance… Pânico geral, somente cinco minutos depois as luzes começam a voltar… Em meio à confusão, a bola sumiu.

E, afinal, o que aconteceu?

Sereno e impassível, o juiz se dirige para o centro do gramado…

Os repórteres o cercam:

– O que foi, seu juiz?

E ele, com toda a segurança:

– GOL!

Mas ninguém viu a bola entrar após o chute do Joca, argumentam os repórteres atônitos e os adversários enfurecidos…


E o juiz, com a maior calma:

– Vocês que acompanham futebol sabem muito bem:

“DALI, O JOCA NÃO PERDE!”

O BLUES DO GOL NA VÁRZEA…

::: por Marcelo Mendez :::


Quero entender como se faz um gol na várzea…

Nesse universo onírico, lúdico, divino onde os seus artilheiros carregam nas costas a toda a responsabilidade de manter a poesia do mundo, as coisas nunca serão feitas pelo viés óbvio das resenhas e execuções burocráticas.

Na várzea, toda a premissa do ludopédio é épica. E o gol, a maior delas.

Daquela vez era um domingo cinza. O campo do Humaitá, em Santo André, era regido pelo mesmo céu dos filmes de Fritz Lang, por uma Metrópole, seu filme seminal, de 1929. Os homens do meu filme vagavam pela lama do terrão pesado como quem vaga por um Tango de Piazzolla, soltando suas cinturas malemolentes para os futuros dribles, como as cabrochas da Lapa dos anos 40 faziam para bailar sedutoramente as gafieiras imortais de Raul de Barros.

Não havia, no Humaitá, uma Orquestra Tabajara para comandar o baile. Mas como sempre há na várzea, os rebeldes e obstinados instrumentos de samba batucavam furiosamente o desejo dos bravos torcedores que colavam seus rostos junto ao alambrado gasto do campo.

Queriam mais, muito mais…

Nada dessa história de jogadas ensaiadas, de falácias de técnicos, de chutes desviados, de bolas perdidas, não… As redes dos campos de várzea são Olympus. Lugares sagrados de onde se fazem heróis, vilões, poetas, bufões, gênios de fato e burros impávidos. A poesia e as redes das traves da várzea mantém entre si uma relação de beleza atávica.

O jogo não era bom.

As chuteiras coloridas nada criavam e seus homens, pouco produziam.

O campo pesado, as chuteiras coloridas enlameadas, os sonhos que ficaram na noite anterior ou, na recente madrugada, não deixava com que tivéssemos uma partida de sonhos. Os chutões tinham a retumbância de um solo de Charles Mingus, em jam sessions de jazz furioso, movido por agulhas lindamente em êxtase.

Nada parecia acontecer, até que surgiu uma bola no canto do campo…


Foto: Rodrigo Pinto/Abcd Maior

Foto: Rodrigo Pinto/Abcd Maior

Ela quicou enquanto pode. Lutou para se manter viva na terra, até o instante em que uma poça de lama a matou. Ela, a bola, triste como uma amante que espera um afago nos cabelos em uma noite fria, ficou ali, quieta, resolutamente em silêncio até que uma chuteira a encontrasse. Encontrou…

Um lateral direito pesado, sem muita coisa de classe, chegou até ela, enfiou o pé por baixo, deu uma petecada e a jogou para a área. Num voo cego, ela, a bola, viu todas as possibilidades do que poderia acontecer:

“Vão me mandar para longe” ou, “Receberei outra bicuda”. “Mas também posso ter uma grande sorte”. E teve.

No meio da área, aquele menino de camisa 9 a olhou. Viu ela, a bola, chegando, deu um passo para trás, armou seu corpo tal e qual um Nureyev armaria um passo de dança no Balet Kirov, respirou fundo o ar de mil poemas, jogou as pernas para o alto e, então, o épico se fez. Com a elegância de um Dândi, o menino deu uma bicicleta. Com ares de grandeza plena, a rede amarelada do campo do Humaitá foi estufada oniricamente. Era o gol. O gol que salva, que emociona, que seduz, que glorifica, que tira do sujeito todo o peso de ser comum para ser absolutamente divino.

Corri para ver a bola no fundo das redes.

Ela não me disse nada. Não tinha nela nenhuma marca nem nada que me desse uma guia para terminar essa crônica. Mas com o olhar apurado do Poeta que a vida me fez, a olhei com atenção e, então, dela, a bola, vi um sorriso pleno, lindo, feliz.

Nesse momento, o céu cinza se abriu e o sol surgiu, no Campo do Humaitá.

Até ele, quis ver aquele gol…