OS PELADEIROS
por Serginho 5Bocas
Para o peladeiro fominha, não tem bola perdida (por Marcos Vinícius Cabral)
Hoje não vou falar de craques do passado, do presente nem tampouco do futuro, vou dar espaço aos quase jogadores, aos peladeiros. São espécies raras que não podem faltar na fauna futebolística dos mais longínquos grotões deste nosso Brasil.
Aqueles caras que vemos sair de casa com roupa de trabalho, mas por debaixo das calças ou dentro da mochila e em alguns casos, até mesmo na mala do carro, sempre carregam o short, o meião e outros aparatos que compõem a vestimenta dele.
Vou começar a homenagem pelo “café com leite”, aquele que de tão ruim, nem conta, chuta pra qualquer lado que vale, normalmente ele tem uma coordenação motora sofrível, tem idade muito abaixo ou acima da média da galera da pelada, ou então tem irmã gostosa e não deve ser contrariado.
Outro que não pode faltar, é o “bom de grupo”, um cara que não joga pôrra nenhuma, mas é maneiro pra cacete, nunca falha na intera para o tira gosto, limpa os coletes, guarda a bola e tem carro grande, que é muito útil quando tem jogo fora.
Tem também o “papagaio”, que é aquele cara mais chato da pelada, fala pra “karaiu”, só ele que sabe jogar, reclama de todos e de tudo, marca com os olhos, apita o jogo e quase sempre estraga a pelada com seu jeito sem noção, tem alma boa, mas é um mala.
Tem o “enganado”, que é aquele cara que já sai de casa nessa condição (me engana que eu gosto), ou seja, a mãe ou a mulher diz que ele tá lindo, pede um gol pra ele, e escuta das coitadas a pior de todas as frases: diz que ele joga bola, pronto! Formô.
O brigão costuma chegar mais forte nas divididas (por Marcos Vinícius Cabral)
Outro que sempre está presente é o “brigão”, aquele cara normalmente policial ou ex-policial, bombeiro, halterofilista, lutador de arte marcial ou somente um brigão de rua mesmo, da antiga, daquela época que ser bom de briga – até surgir a AR-15 – era sinônimo de ter um respeitozinho na rua. Esse quer arrumar problema com todo mundo que é amigo, só não costuma ser brabo contra estranhos em jogos fora, ai normalmente nem aparece, é um final de comédia, mas se não der muito papo, status, ele acaba sumindo, graças a deus.
O “caixa” é aquele cara que todo mundo vaza quando o fim do mês se aproxima, se ele puxa o caderninho, linha de impedimento nele, rala peito Mané, que fu…
Tem o “ruim de bola mesmo” que não serve nem pra “agarrá no gol”, sempre chega cedo e tenta tirar o par ou ímpar, pra garantir vaga, porque senão, um abraço meu camarada, senta no meio fio e chora.
Não pode faltar também o “cachaça”, esse nem quer jogo, senta no engradado mesmo e tá bom demais, está sempre com uma gelada ou um copo na mão, zoa todo mundo e está sempre de bem com a vida, a única contra indicação é que alguns deles quando passam da conta (quase sempre), choram, te abraçam, falam que te amam e por ai vai…é flórida!
O atacante Aloisio não esconde de ninguém sua admiração por cerveja
E não existe pelada sem o “bichado”, que é aquele cara que parece a múmia, porque ama ter preso ao corpo uma joelheira, uma atadura, uma tornozeleira ou uma cocheira e em alguns casos mais graves, carrega com muita honra essa pôrra toda que eu falei de uma só vez, mas quando a bola rola ele esquece tudo e joga, o dia seguinte é que é sinistro, dói até a vista, sempre dá ruim pra ele.
O bichado é aquele jogador que se machuca constantemente
O “cagão” é aquele cara que de tão ruim, só mesmo a bola batendo nele de raiva ou por pura piedade é que ele faz gol. Acontece que ele é aquele mais genuíno exemplo do raio que cai duas, digo, uma porrada de vezes no mesmo lugar, vai cagar assim lá no raio que o parta! Mas diga-se de passagem, que na maioria dos casos é bom ter um desses no seu time, vai que…
Quem nunca conheceu um “fominha”? Aquele que de tão esganado, até dorme com a redonda, mas seu forte mesmo é não passar a bola pra ninguém. Pode estar mal colocado que sempre tenta o chute ao invés de passar para um companheiro melhor colocado e tem sempre uma desculpa na ponta da língua para não dar a bola. É clichê dizer que deveria ter uma bola só pra ele…
E o “sem sangue”? Ah, esse irrita de verdade. É aquele cara que não corre de jeito nenhum, não ajuda quando ataca, muito menos quando o time se defende. O cara é preguiçoso de doer, parece um gato de armazém, mas geralmente fica pra segunda pelada, se o critério for par ou ímpar.
Já ia esquecendo do “fedorento”, que como a alcunha já entrega é um solitário, um verdadeiro Robson Crusoé das peladas, ninguém quer abraça-lo após um gol, pegar seu colete suado? Nem pensar. É que o cara não lava o meião, guarda o tênis abafado dentro da bolsa na mala do carro fechado e tem mal hálito e um cêcê da pôrra, dorme com esse barulho. É complicado ajuda-lo, mas é um boa praça, também se fosse antipático, apanharia ou levava um tiro.
O baixinho Romário fazia sucesso dentro e fora das quatro linhas
Outro que não pode faltar é o “pegador” de mulheres. O cara é um espetáculo, só anda cheiroso e é um exímio contador de histórias. Diz que sempre dá 3 antes do jogo, que se não comer ninguém não joga bem e o escambau, mas realmente ele sai com muitas mulheres ou seres humanos se assim for politicamente correto chamar as criaturas, porque se juntar todas elas e bater no liquidificador com neston e duas bananas para engrossar o caldo, fica faltando um olho, 2 joelhos e uma perna…fala sério matador!
E tem também o “dono da bola”, que em geral é assim desde moleque, pois nunca jogou porra nenhuma, então comprava a bola, o uniforme e tudo que for preciso para garantir uma vaga na pelada. Quando cresce, acostumado com este estilo de vida, costuma se dar muito bem na política, ou em alguma confederação de futebol, pois terá desenvolvido um enorme o “expertise” de corromper os colegas e ai fica fácil com os homens.
O dono da bola geralmente estraga as peladas
Não podemos esquecer da fera da pelada, o “boleiro”, que é o cara que joga muita bola, que quase jogou em clube, às vezes foi federado e na maioria dos casos, apenas peladeiro e todo mundo diz que era pra ter sido jogador, que com essa turma que joga hoje ele brincaria no meio de campo mole e o escambau. No fundo, no fundo, ele agradece, mas sabe que alguma coisa não saiu como deveria. Teve que ajudar nas despesas de casa, os estudos falaram mais alto entre outras infinitas possibilidades que nos mostra como é tênue a linha que sempre separa os homens dos meninos, pois o Jogo é bruto companheiro.
E pra fechar os trabalhos não poderia ficar sem falar do “ex-peladeiro”. Ele não consegue levantar a bola com os pés, ele não faz 3 embaixadinhas sem deixar a bola cair no chão e nem é bom pedir para dar um chute na bola, porque ou ele fura a bola com a unha grande e a falta de jeito ou pode furar o chute e ai, se ele cair no chão, não vai levantar mais. Mas vive contando causos que ninguém é capaz de achar algum contemporâneo para confirmar. Vive repetindo que jogou com Zizinho, Danilo Alvim e Dino Sani, que seu vizinho “zezinho” era o melhor deles todos na rua, mas não tem um recorte de jornal ou revista da época de glórias para ser lembrado. É uma grande figura dos campos de pelada e é um dos meus personagens favoritos, pois mantém acesa a chama da pelada de verdade.
Todos os peladeiros apresentam algumas características em comum, amam a bola do jogo, amam o futebol, amam ver futebol, amam jogar uma pelada, pagam por tudo que falei neste parágrafo e todos tem pelo menos uma historia de glória para contar, senão, nunca foram peladeiros de verdade.
Ah, e antes que eu me esqueça, não tem essa de “vim” pra brincar, esse papo é a mais genuína conversa fiada. Peladeiro fominha que se preza, pode perder o sono, a namorada, o cinema e até o parto do filho, mas de jeito nenhum ele tolera perder o jogo, nem mesmo o par ou ímpar. Brincadeira de tu é rola, valeu?
Honraria Futebol Arte 2016
Na noite da última segunda-feira, durante a sétima edição do CINEfoot, a equipe do Museu da Pelada recebeu com orgulho a “Honraria Futebol Arte 2016”!!!. Segundo Antonio Leal, diretor do festival, “foi a mais recente e brilhante iniciativa no campo cultural em defesa da identidade e promoção dos valores mais preciosos do futebol, genuinamente praticado nos campos e fora das quatro linhas”. Receber um prêmio tão significativo com apenas seis meses de trabalho é algo que nos deixa ainda mais motivados para continuar EM BUSCA DA POESIA PERDIDA!!! Obrigado a todos os peladeiros que enriquecem esse time!
ERA APENAS UM PINTO
por Zé Roberto Padilha
Desde os juvenis que jogadores de futebol tomam banhos juntos, após os treinos, em vestiários sem qualquer privacidade. Um zagueirão, que se tornou treinador, disse lá atrás para seus pupilos, em uma preleção, que “futebol é pra macho!”. Sendo assim, jamais foram construídos boxes para cada um preservar a sua intimidade. Diante deste “espetáculo” diário e ao vivo crescemos sem perceber nos banhos coletivos cores e tamanhos dos dotes de cada companheiro. Faziam parte da paisagem. Esqueci, tirem as crianças das bancas porque cenas fortes serão relatadas por aqui: era treinador do América FC-TR quando, aí sim, hierarquicamente, a Comissão Técnica esperava os atletas tomarem o seu banho quando, ao me dirigir aos chuveiros, uma sucuri, ou cascavel, foi tudo muito rápido, fez a curva pendurada no púbis de um atacante. Tomei, lógico, um susto, disfarcei, o máximo de pista que dei diante daquela cena de “Anaconda 4, a invasão do Tiezão”, foi passar a olhar com dó e compaixão a esposa do jogador. E acho que ela percebeu, ele era titular do time e deveria pensar: “Está com pena de mim porque este técnico ? Meu marido está jogando?”
Bem, eu jogava no Flamengo nesta época e havia um armário com escaninhos no vestiário onde guardávamos chinelos e toalhas para o banho. E bastou completar dois meses de trocas de roupas para um companheiro notar que o vizinho do escaninho ao lado só trocava a sunga escondidinho. Para isto, passou a observar que ele, o investigado, era o primeiro a chegar para o treino e o ultimo a sair dos treinamentos. Para a comissão técnica era um exemplo, mas para uma classe que não tem mais o que fazer, que lia na concentração obras clássicas da literatura como Contigo, Amiga e Tio Patinhas, era um prato cheio de intrigas. E começaram as investigações para saber o que ocorrera com aquele pinto escondido.
A CPI, formada por dois zagueiros, um meio campo e um relator, notou que o portador das asas dentro da sunga (a novela da Globo era Saramandaia e seres alados estavam na moda) descia do setor 4 das cadeiras do Maracanã para os vestiários antes de todo mundo. E combinamos com o roupeiro para trocar a sua sunga com a de numero 5 do Merica, cabeça de área baiano e encrencado. Descemos todos juntos com ele que na chegada gritou: “Quem está com a minha sunga devolva! Tenho que jogar com ela. está rezada pelo Senhor do Bonfim!”. Nosso personagem não trocou, alegou já estar no aquecimento e quase saiu briga. Merica acabou jogando mesmo com a de número…. Ganhamos o jogo, mas o mistério já ganhava proporções. Reuniões foram realizadas, estratégias montadas. Sobrou para mim a tarefa de dividir e investigar o quarto em uma partida em Campinas, contra o Guarani. As apostas se dividiam e ganhavam os bastidores da boca maldita da Gávea: seria enorme que mal caberia na sunga ou imperceptível aos olhos igualmente nus? Quando o suspeito soube que era eu o escalado para dividir o quarto, berrou junto ao supervisor: “Já tenho meu companheiro de quarto, estamos entrosados!”. O supervisor, já dentro do esquema e com apostas feitas e envolvido, disse que era para unir ainda mais o grupo. Nem eu acreditei.
À noite, deitado na cama do Hotel Vila Rica a cobrir os olhos com a coberta até o limite de uma brecha na visão, esperei que saísse do banho e… ele entrou com a toalha e tudo dentro da sua coberta e realizou a troca pelo pijama. Quando cheguei para o café da manhã, uma multidão aguardava o resultado da CPI. Ao relatar o fracasso da missão, fui vaiado e substituído no cargo.
Nosso contrato estava acabando e a última esperança era contratar mesmo uma Maria Chuteira, que ficavam nos esperando na saída, e escolhemos uma daquelas popuzadas. Tipo das preferidas do Adriano. Ela concordou em participar da trama, lhe pediu carona à saída do clube, ele foi gentil e a deixou em casa. Era fiel e ficamos todos sabendo pelo seu relatório no treino seguinte. Saí mais tarde do Flamengo e quando os membros da CPI se encontravam, em clássicos pelo país, a pergunta era a mesma com o passar dos anos e dos clubes: “E aí? Descobriram?”
Tempos depois ficamos sabendo que ele casou, teve filhos, nenhum deles chegou a voar, é feliz e nunca precisou de psicólogos. Enfim, que era normal, ao contrário da gente, jogadores de futebol que aprendemos uma outra lição. Que precisamos estudar, cuidar da própria vida e carreira no lugar de ficar tomando conta das intimidades alheias. Afinal, era apenas um outro pinto que passou nos vestiários de nossas tolas vidas e que a futilidade nos deixou levar.
Afonsinho – O maquinista
o maquinista
texto: Sergio Pugliese | fotos: Marcelo Tabach | vídeo e edição: Daniel Perpétuo
Sentado no sofá de seu apartamento, em Copacabana, o maquinista assistiu à partida entre Botafogo e Juareizense, pela Copa do Brasil. No fim do jogo, sozinho na sala, olhou para o quadro de Garrincha, grande ídolo, e sentiu uma pontada de nostalgia no peito. Começou a revirar as gavetas e estantes em busca de registros do final da década de 60 e início de 70 quando os Beatles fervilhavam, o Brasil penava com a ditadura militar e sua barba começava a brotar e incomodar.
Seu objetivo era achar fotos do Trem da Alegria, time de pelada itinerante criado por ele para manter em atividade jogadores sem contrato, ex-craques, novos talentos e simpatizantes em geral. Essa legião lotou os vagões da locomotiva e, numa época em que as baionetas davam as ordens, os craques viajaram o país de megafone em punho e de estação em estação, gol após gol, conquistaram a Lei do Passe Livre, um marco na carreira dos atletas.
No último feriado de 1 de maio, Dia do Trabalhador, o Trem da Alegria comemorou 40 anos com um rachão no Clube Municipal, em Paquetá. Foi casa cheia e a equipe do Museu da Pelada estava lá! As fotos resgatadas em sua busca foram expostas num mural. A galera matou a saudade e o maquinista, na verdade o médico e ex-jogador Afonsinho, filho de ferroviário e professora, sentiu a confortável sensação do dever cumprido ao lado de seu poderoso exército de rebeldes com causa, entre eles o inseparável Nei Conceição.
“Hoje cada jogador é uma empresa, não se pensa mais no coletivo e as prioridades são outras”
— Hoje cada jogador é uma empresa, não se pensa mais no coletivo e as prioridades são outras – opinou Afonsinho.
Nascido em São Paulo, sua vida sempre foi bola e aos 17 já chamava atenção como meia- direita do Infantil Náutico, de Jaú. Não demorou e foi indicado para Botafogo e Fluminense. Assinou contrato com o alvinegro e teve atuações exaltadas pelo jornalista Nelson Rodrigues, mas a incompatibilidade veio à tona quando Zagallo assumiu a comissão técnica.
Foi desligado e sem espaço para treinar, exercer a profissão, levou para a mesa do bar debates calorosos sobre a função das organizações trabalhistas responsáveis pelos interesses da classe. Nessa época ainda não havia a figura do grande empresário, o futebol era menos mercantilista e os militares estavam infiltrados nas diretorias dos clubes.
“A saída foi montar um time de pelada para abrigar jogadores na minha situação”
Foto: Arquivo
— A saída foi montar um time de pelada para abrigar jogadores na minha situação – lembrou.
A visibilidade foi impressionante, mas Afonsinho conseguiu conciliar o Trem da Alegria com a carreira profissional e a faculdade de Medicina, onde se especializou em Fisiatria. Longe do Botafogo, foi treinar no Olaria. Ao todo, passou quatro vezes pelo time da Rua Bariri, também quando saiu de Vasco, Flamengo e Santos.
No Olaria, deixou a barba e o cabelo crescerem e ficou a cara do guerrilheiro Che Guevara. No retorno a General Severiano, a direção do Botafogo tomou um baita susto com o novo visual e sugeriu uma aparada geral na cabeleira. Ele negou, claro. Desafiar o sistema estabelecido era com ele mesmo.
“Zagallo disse que eu parecia tudo, tocador de guitarra, cantor de iê iê iê, menos jogador”
— Zagallo disse que eu parecia tudo, tocador de guitarra, cantor de iê iê iê, menos jogador – disse, morrendo de rir.
Em pouco tempo vários jogadores imitaram seu estilo e o Trem da Alegria engrenou de vez. Campeões mundiais, como Garrincha, Nilton Santos, Paulo Cesar Caju, Jair Marinho e Altair rodaram o país se apresentando pelo time, assim como os cantores Fagner, Paulinho da Viola, Moraes Moreira e os Novos Baianos. Gilberto Gil na volta do exílio compôs Meio de Campo: “Prezado amigo, Afonsinho, eu continuo aqui mesmo aperfeiçoando o imperfeito….” e os saudosos João Nogueira e Roberto Ribeiro deram voz ao hino do time. O sonho atual de Afonsinho é ter o samba gravado por Diogo Nogueira.
Em Pé: Aílton Pelé, Marcio, Dedé, Fagner, Zorba Devagar, Marcolino (Goytacaz) e Cadô (XV de Jaú). Abaixados: Moraes Moreira, Abel Silva, Paulinho da Viola, Afonsinho, Gato Félix (Novos Baianos) e Cristiano Menezes (jornalista)
Em Paquetá, a festa foi completa. Difícil foi equilibrar os times. Me coloquei ao lado de Afonsinho e a pressão deu certo. Recebi a 14. Nei também caiu no mesmo time.
— Não vai me decepcionar, hein! – brincou Afonsinho, que me escalou na ponta-esquerda.
“Não vai me decepcionar, hein!”
Emoção demais ver Nei e Afonsinho juntos! Velhos amigos de guerra, jogam até hoje. Os olhos de Afonsinho brilhavam ao ver tantos amigos ao redor. Descem da barca e caminham um quilômetro até o campo, como missionários. A cultura da ostentação passou longe daquela turma. Carrões, mansões, cordões. Naquela época, atitude era contestar e usaram a pelada como um instrumento de reivindicação. O Trem da Alegria não foi um modismo como os tantos atuais, mas foi um posicionamento político ousado numa época de repressão.
No campo, ansiedade para o início do jogo contra o time de convidados. O maquinista Afonsinho bateu palmas, reclamou do sol forte e conferiu o posicionamento de seus jogadores. Nei Conceição o encarou com carinho. Tantos anos! Antes do apito inicial, o craque alisou a barba, orgulhosamente intacta e branquinha, carregada de história, e foi à luta.
Paulo Cezar Caju
LÍNGUA VORAZ
texto: Flávia Ribeiro | fotos: Nana Moraes | vídeo e edição: Guillermo Planel
O garoto Paulo Cezar Lima tinha 10 anos e jogava futebol de salão no Flamengo quando sua vida mudou graças a um coleguinha de time, da mesma idade. O menino, admirador do talento daquele moleque driblador, que anos mais tarde somaria o apelido Caju ao sobrenome, pediu ao pai, com a maior pureza do mundo: “Adota ele!”. Assim, Fred, que nos anos 70 se tornaria zagueiro do rubro-negro da Gávea e do Botafogo, ganharia um irmão. O pai era o treinador Marinho Oliveira, também ex-zagueiro das duas equipes. PC acredita que o desprendimento de Fred, disposto a aumentar a família, transformou para sempre o seu destino. “Tive a sorte de conquistá-los e a de a minha mãe entender que essa mudança seria o melhor para mim”, lembra ele, que até então era criado pela mãezona, Dona Esmeralda, na Favela do Tabajaras, em Botafogo, e da qual nunca se afastou.
“NÃO SOU MARRENTO. SOU AUTÊNTICO. ODEIO FALTA DE EDUCAÇÃO, GROSSERIA E PRECONCEITO”
Nesse momento, qualquer traço da conhecida marra do craque some de sua expressão e o jogador polêmico, de opiniões fortes, considerado arrogante por alguns, dá lugar a um homem extremamente agradecido ao irmão de criação, aos pais que o adotaram e à mãe biológica, para quem, aos 18 anos, já profissional do Botafogo, deu entrada num apartamento, na Gávea. Aos 66 anos, não esquece dos que o resgataram do fundo do poço, na fase mais tenebrosa da vida, quando mergulhou no álcool e na cocaína durante 15 anos, entre 1985 e 2000. O radialista Elso Venâncio, o dirigente Francisco Horta, o advogado Nélio Machado, o empresário João Alberto Barreto e o cantor Agnaldo Timóteo foram alguns dos anjos da guarda. “Nunca entrei numa clínica. Cláudio Adão e a mulher, Paula, me levaram para dentro da casa deles, onde morei por um ano para fugir do vício”, recorda. Sóbrio há 16 anos, sente-se tão seguro de sua recuperação que entrou de sócio numa distribuidora de champanhe. “Que ex dependente químico toparia se associar a uma distribuidora de champanhe? Topei porque me garanto”, diverte-se.
Pouca gente sabe, mas Caju só começou a usar drogas após pendurar as chuteiras. Durante os 20 anos como profissional, nem mesmo uma cervejinha descia, escaldado pelos conselhos do pai: “Ele nos dizia que o dinheiro ia embora com cigarro, farra e mulheres”. Assim que foi adotado por Marinho, Caju saiu da favela e começou a correr o mundo. Morou em Tegucigalpa, capital de Honduras, dos 10 aos 12 anos, quando o pai foi treinador da seleção do país. Lá, era treinado pelo próprio Marinho, no meio de adultos. Depois, seguiu para a Colômbia, onde ele e Fred chegaram a jogar na primeira divisão, aos 15 anos. “Em Honduras, queriam até me naturalizar. Mas não havia chance, eu queria ser campeão do mundo com a seleção brasileira”. E conseguiu, participando daquela que é considerada por muitos especialistas a melhor seleção de todos os tempos, campeã no México, em 1970. Em clubes, jogou pelos quatro grandes do Rio, além de Grêmio e Corinthians, no Brasil, Olympique de Marseille e As Aix, na França, e California Surf, nos Estados Unidos. Mas no Leblon, onde tem um apartamento, cravou sua marca! “Em 70, importei uma Fiat Spider 174, abóbora e preta, da Itália. Tirava onda pelas ruas do bairro. Também colecionava gravuras de Portinari, Picasso, Monet, Renoir, Van Gogh e Salvador Dali”.
Ao longo da carreira, PC também tirou onda: “Joguei na seleção do tri, no melhor Botafogo de todos os tempos, na Máquina Tricolor e fui bi pelo Flamengo. No Vasco, fui vice” , gargalha. No Olympique, em 75, também foi vice-campeão nacional, com 18 gols. Ídolo por onde passou, torce pelo Botafogo e orgulha-se em levar a estrela solitária do lado esquerdo do peito, mas não esconde a revolta com a situação atual do time – aliás, com a de todos no Brasil. “Faz anos que não torço para a seleção brasileira e nem pelo Botafogo. Vou torcer para esse futebol daqui? Não é que eu queira o Garrincha de volta. Eu quero é a essência de volta. Você vê que está tudo errado até pelos apelidos dos jogadores e dos times: He-Man, Guerrero, time de guerreiros, time de gladiadores, jogo pegado. Condiz com os novos estádios, que são chamados de arenas”, ironiza.
“VOCÊ VÊ QUE ESTÁ TUDO ERRADO ATÉ PELOS APELIDOS DOS JOGADORES E DOS TIMES: HE-MAN, GUERRERO, TIME DE GUERREIROS, TIME DE GLADIADORES, JOGO PEGADO. CONDIZ COM OS NOVOS ESTÁDIOS, QUE SÃO CHAMADOS DE ARENAS”
A culpa, para PC, é de um personagem inusitado, poucas vezes lembrado quando se fala da má fase do futebol brasileiro: o professor de Educação Física. “A gente errou na proliferação desses professores, que nunca jogaram bola, nunca estouraram a cabeça do dedão no paralelepípedo, nunca fizeram uma bola de meia. Eles preparam times de atletas, não de jogadores. Driblar é quase proibido, se o garoto dribla muito, eles tiram do time. Aí vem o comentarista que não entende nada também e só fala o óbvio. Não fala que o futebol do Rio está morto. É por isso que não me contratam para comentarista. Eu diria logo: “Troca de canal, vai ver Animal Planet”.
Apesar de morar com a mulher, a dentista Ana, irmã do ex-jogador Afonsinho, em São Paulo, PC vive no Rio. Durante a entrevista, num de seus points preferidos, no Leblon, o bar Chico e Alaíde, era abordado por quem passava pela rua e por clientes do boteco. Recebia também inúmeros telefonemas, inclusive de franceses. Todos elogiavam sua coluna no Globo, sua postura e impaciência com o futebol atual. “Você está certo, PC, chega desses gaúchos à frente da seleção!”, bradou um dos admiradores.
Paulo Cezar, definitivamente, não tem nenhum apreço pelo trabalho dos técnicos gaúchos. “De 90 para cá, quem treinou a seleção em Copas do Mundo? Lazaroni e Parreira, dois preparadores físicos, e Felipão e Dunga, dois gaúchos. E falam muito no Tite, outro filho dos pampas. E a escola gaúcha é a do futebol defensivo, do regulamento embaixo do braço, da eficiência. Odeio! Em 1994 e em 2002, só vencemos porque havia atacantes foras de série em cada uma daquelas seleções: primeiro, Romário e Bebeto; depois, Ronaldo e Rivaldo. Joguei contra o Felipão, beque raçudo, vigoroso. Faz os times à sua imagem”, critica, enquanto só salva a pele de dois técnicos brasileiros: Marcelo Oliveira e Cuca.
“QUE EX DEPENDENTE QUÍMICO TOPARIA SE ASSOCIAR A UMA DISTRIBUIDORA DE CHAMPANHE? TOPEI POEQUE ME GARANTO.”
Entre os jogadores da seleção, PC elogia Neymar e Philippe Coutinho. Mas logo lembra que este último nem sempre é convocado. “Adoro esse menino, mas está sempre fora da lista. Gosto do Neymar também. Só tem que corrigir o individualismo, mas já melhorou muito no segundo ano de Barcelona. Ele é muito bom, mas chega à seleção e tem que jogar com uma concessionária, cercado de volantes”, alfineta e também cospe marimbondos no tratamento dado a Jefferson, colocado no banco de reservas da seleção. “Colocaram um gaúcho como titular e certamente já irão negociá-lo para algum clube do exterior. Virou bagunça!”.
O jeito de falar parece justificar a fama de marrento, mas ele a rebate: “Não sou marrento. Sou autêntico. Odeio falta de educação, grosseria e preconceito”. E emenda: “Há algum tempo, num mesmo evento, Sérgio Cabral e Eduardo Paes me viram e nem me cumprimentaram. O Príncipe Albert, de Mônaco, chegou e me deu dois beijos no rosto”. Paulo Cezar também sempre fez questão de levantar a bandeira contra o racismo, especialmente no futebol. E não se conforma com companheiros que não contribuem com o fim do preconceito de forma mais incisiva. “Você já viu o Pelé defender a causa negra?”, pergunta. Caju foi um dos primeiros jogadores brasileiros a aderir à estética Black Power. Apelidado de “Craque da Moda” pelo radialista Waldir Amaral, ele garante que, nesse caso, não foi modismo. Leu sobre o movimento dos Panteras Negras, nos Estados Unidos, e achou importante marcar posição. Especialmente por já ter vivenciado o racismo na pele.
“Eu não era ‘negro sim senhor’. Era negro de bom gosto, barriga barra de chocolate, calça boca de sino, black power. Então, chegava em São Paulo e era vaiado. Em 68, quando o Botafogo foi jogar em Bagé, o vice do clube de lá quis nos fazer uma homenagem. Mas, ao chegar no restaurante, tinha uma placa proibindo a entrada de negros”, lembra. Mas Caju nunca curvou-se. Venceu no futebol, no Brasil e na França. Mágoa, só do Grêmio, que o dispensou depois da conquista do Mundial, de 1983. Virou modelo, desfilando para várias marcas nacionais e estrangeiras, inclusive a Maison Hechter, do estilista francês Daniel Hechter. Conviveu com famosos de várias áreas e todo ano joga pelo Black Star, com o tenista Yannick Noah e o craque Roger Milla. “Hoje os rebeldes são sem causas”, diz. O cantor de reggae Bob Marley era seu fã de carteirinha. “Ele veio ao Brasil e pediu para me conhecer. Eu nem entendia de reggae, meu negócio era Marvin Gaye e Stevie Wonder. Mas viramos amigos, jogamos juntos no Polytheama, time de pelada do Chico Buarque. Hoje, adoro a música dele”, conta.
Garante não ter arrependimentos. Não se orgulha dos 15 anos dedicados ao álcool e à cocaína, quando perdeu dois apartamentos e chegou a vender a medalha da FIFA de tricampeão do mundo, e uma miniatura em ouro da Taça Jules Rimet, tudo para sustentar o vício. Mas acredita que foi um aprendizado e torce para que sua história sirva como exemplo. Há alguns anos, chegou a conversar com Jobson, ex-atacante do Botafogo, atualmente suspenso pela FIFA por problemas relacionados às drogas. “A pessoa tem que querer sair dessa. Eu não sei se ele quer. Espero que sim”, comenta.
A guinada de PC foi em 2000, após uma amiga cardiologista alertá-lo sobre as grandes chances de morrer cedo, caso continuasse com aquela vida louca vida. Foi ajudado por amigos, teve uma recaída, mas voltou à sobriedade. Pouco depois, apaixonou-se pela dentista Ana, irmã de seu ex-companheiro de Botafogo, Afonsinho. Ela avisou: “Não quero alcoólatra nem drogado na minha vida”. O amor falou mais alto. Hoje, vive com saúde, cercado por um caminhão de amigos. Cita os mais queridos no meio do futebol, como Zagallo, Cláudio Adão, Gérson, Carlos Roberto, Piazza, Jair, Delei, Francisco Horta, o cunhado Afonsinho e o irmão, Fred. Preocupa-se em esquecer de alguns, afinal a lista é grande, e para de falar fugindo de alguma injustiça. “Aprendi com meu pai que o futebol te dá muita possibilidade de fazer amigos. E eu fiz”.