DESCULPE-NOS, COLÔMBIA
por Zé Roberto Padilha
Infelizmente a visão que tenho do mundo foram passadas, e reprisadas, pela telinha que meu pai comprou em 1956. E perduravam até hoje. Era uma inédita televisão Emerson bege, e a Rua Barão de Entre-Rios vinha toda noite assistir aquela novidade com a gente. Se os americanos foram colonizados pelos ingleses, e perderam a oportunidade de nos descobrir, trataram de aperfeiçoar sua tecnologia e cismaram de colonizar a nossa mente. E, em cada canto do nosso país, minha geração, dos anos 50, foi dominada pelos seus filmes e a cultura que nos passavam em preto e branco
Nossos heróis não foram Zumbi, o Rei dos Palmares, muito menos Tiradentes, o primeiro a ir para as ruas protestar contra o aumento dos impostos e os abusos do governo. Eles foram Tarzan, Capitão Marvel, Lassie e Rin-tin-tin. Seus nativos originais, os indígenas americanos, foram exterminados em seu habitat pelos vírus, canhões ingleses, e acabaram expulsos do seu território. Mas a versão produzida pelos estúdios da MGM e Paramount era o contrário: John Wayne, Clint Eastwood e o Trinity eram os mocinhos que defendiam as aldeias atacadas por “sanguinários” peles vermelhas. Pobres bandidos do bem fazendo cara feia no cinema para a gente. Quando entramos na universidade e tivemos acesso aos relatos dos vencidos, era tarde: já tínhamos colecionados todos os discos do Elvis. E meu pai comprado toda a coleção do Franck Sinatra e meus filhos dançaram no colégio a coreografia de Thriller.
Quando John Kennedy morreu, choramos mais lá em casa do que por Getúlio Vargas. Quando Jango foi para o Uruguai retirado do seu cargo pela ditadura militar, não era com o futuro da nossa bela primeira dama, a Maria Tereza, que estávamos preocupados: era com a Jacqueline Kennedy que se casava com Onassis. Gatos, então, coitados, esta criatura adorável, trataram de retirar do nosso cotidiano pois nos desenhos animados o Tom não parava de perseguir o Jerry. Era o bandido da história e quando aparecia nos filmes de Hitchcock, pelo regime de cotas, era preto, sinistro, símbolo do azar e de atrair coisa ruim. E todos os brasileiros passaram a ter um cão e desprezar os gatos dentro de suas casas.
E com vocês, povo colombiano, não foi diferente. A versão da telinha produzida por Hollywood não teve exaltação a Simon Bolívar, a Francisco Santander, seus libertadores das garras do domínio espanhol. Seu herói por aqui sempre foi Pablo Escobar. E seus produtos de exportação não passavam de maconha e cocaína. Quantas vezes Arnold Schwarzenegger foi até suas selvas, as vilas imundas dos cenários que produziam, trazer reféns de volta em meio a violência dos seus traficantes? E em nenhum filme foi falado que o maior mercado consumidor de cocaína do mundo era o norte-americano.
E, de repente, em uma quarta-feira entristecida, toda a não ficção exportada por eles é substituída por um gesto que nos deixou tão emocionados quanto envergonhados. Nenhuma nação do mundo seria capaz de produzir ao vivo, não em falsos cenários, um espetáculo tão respeitoso e bonito quando enlutaram seu estádio, e o ocuparam todo à sua volta, para glorificar seus adversários. E ainda conceder-lhes o título que por tanto lutaram.
A partir de hoje, povo colombiano, nós, brasileiros, prometemos não ir mais às locadoras buscar mentiras magistralmente dirigidas contra vocês. Mesmo que tenha a Angelina Jolie no papel principal. Recebam as nossas sinceras desculpas e nem precisamos pensar em vingança: eles mesmos acabam de escalar um “bandido” para dirigir o seu destino.
FERREIRA GULLAR
Apaixonado por futebol, o vascaíno Ferreira Gullar morreu hoje, aos 86 anos! Poeta, ensaísta, crítico de arte, dramaturgo, biógrafo, tradutor e memorialista, o craque por muito pouco não se tornou jogador de futebol! Na infância, chegou a participar de treinos como centroavante nas divisões de base do Sampaio Corrêa, mas não deu sequência.
Postulante da cadeira 37 da Academia Brasileira de Letra, o escritor demonstrou toda sua paixão pela bola no poema “O Gol”.
O GOL
A esfera desce
do espaço
veloz
ele a apara
no peito
e a pára
no ar
depois
com o joelho
a dispõe a meia altura
onde
iluminada
a esfera
espera
o chute que
num relâmpago
a dispara
na direção
do nosso
coração.
Ferreira Gullar
GASPERINTER
Bicampeão brasileiro, gaúcho e vice-campeão da Libertadores pelo Internacional na década 70, com boas passagens por Grêmio, América-RJ, Cruzeiro, Botafogo-SP, entre outros, o saudoso goleiro Luiz Carlos Gasperin deixou saudades quando “foi para o vestiário mais cedo”, em 2010, aos 57 anos. Não só pelas grandes exibições dentro de campo, mas também pelo comportamento diferenciado fora dele! Há alguns dias, Cândice Gasperin, filha do paredão, nos enviou, carinhosamente, um grande acervo do pai, com lindas fotos e recortes de jornais!
Cursando mestrado em Sports Marketing da Escuela Universitária do Real Madrid, na Espanha, Cândice, formada em jornalismo, revelou ser apaixonada por futebol! Além do mestrado, está terminando de escrever o livro “Gasperin – 0 Grande Guerreiro”. A obra representa um sonho do pai! Pouco antes de morrer, quando lutava bravamente contra um câncer de intestino, o ex-atleta fez o pedido para Cândice.
– Ele pediu que nossa família escrevesse um livro mostrando como o esporte pode encorajar pacientes com câncer. São milhares de histórias de superação, em diversas modalidades esportivas, que servem de inspiração para vencermos desafios. De Gasperin, temos vários exemplos. Ele sempre chegava antes dos treinos e saía mais tarde, se dedicava ao máximo para ser o melhor e não desistia nas dificuldades! – lembra a jornalista, que embora não tenha visto Gasperin agarrar, ouvia muitas histórias contadas pelo pai. As lembranças, aliás, são as melhores possíveis. De acordo com ela, o orgulho que sente pelo profissional, homem e pai que Gasperin foi é inexplicável.
Líder dentro e fora de campo, o goleiro foi presidente da caixinha na maioria dos clubes por onde passou, costumava dar conselhos para os mais novos e era um dos interlocutores entre os jogadores e a direção dos clubes.
– Meu pai foi uma pessoa muito especial e me ensinou muito: a ser organizada, determinada e a lutar pelos meus sonhos. Mas a maior lição que ele me deu foi de ser honesta e ética.
Sempre com um sorriso no rosto, Gasperin tinha uma boa relação com todos ao seu redor. Como técnico, sua ética e honestidade foi provada mais uma vez. Segundo Cândice, além de ter recusado algumas propostas por não aceitar a corrupção no futebol, Gasperin preferiu se aposentar da profissão a escalar jogadores e se beneficiar disso.
“Dormir com a consciência tranquila não tem preço” é um dos ensinamentos que sempre transmite aos filhos. Sem nunca ter aceitado dinheiro de jogador, empresário ou dirigente para definir a escalação, não tinha medo de tomar as decisões, mesmo que fosse demitido, pois sabia que estava com a razão.
– Foram 25 anos de muito carinho, ensinamentos e admiração que valeram para o resto da vida. Ele é meu herói dentro e fora de campo. Eu quero continuar esse legado dele. Quero trabalhar e lutar por um esporte limpo, que seja usado para educar os jovens e praticado com integridade.
Além disso, Gasperin era ativo na luta pelo direito dos atletas e foi diretor-presidente da Fugap (Fundação de Amparo ao Atleta Profissional) do Rio de Janeiro (década de 1980). Na época, ele já queria discutir planos de pós-carreira para os atletas, como cursos universitários ou posições na comissão técnica, planos que não foram bem vistos por dirigentes dos clubes.
– Posso dizer que meu pai foi um dos atletas mais ativos da sua geração na luta pelos direitos da categoria.
Noemi e Cândice Gasperin, esposa e filha do ex-goleiro, durante homenagem do America-RJ
Em relação ao acervo, Cândice revelou que Noemi, sua mãe, é uma grande clipadora e sem ela nada disso existiria. Além de guardar e identificar as matérias que saíam no jornal, Noemi respondia as críticas quando não concordava com a opinião do jornalista.
O acervo conta com mais de 1300 arquivos digitalizados entre fotos e matérias de jornais brasileiros e internacionais, sem contar com o material impresso, que ainda não foi digitalizado. Além dos recortes e das fotos, os familiares guardam algumas peças históricas, como medalhas, camisas e luvas.
Vale destacar ainda um costume curioso de Gasperin. Após as partidas, o goleiro gostava de escrever as estatísticas do jogo, quem havia sido expulso, as melhores defesas dele, entre outras curiosidades.
Cândice, Gasperin e Larry Chaves
Todas essas e outras histórias poderão ser vistas no livro que está prestes a ser lançado por Cândice e a família. Segundo ela, escrever a obra é uma grande responsabilidade, mas está fazendo de tudo para honrar o pai e jogadores que conviveram com ele.
– O trabalho da nossa família vai além do livro: queremos dar alegria a esses craques ao relembrar o tempo em que jogaram juntos.
O SORRISO QUE SUMIU DAS RUAS
por Claudio Lovato
(Foto: Nelson Almeida / AFP News Agency)
Na terça-feira de manhã, pouco tempo depois de saber da queda do avião que transportava a delegação da Chapecoense e um timaço da imprensa esportiva brasileira, saí às ruas do centro de Florianópolis, onde moro.
Saí porque não consegui ficar em casa trabalhando. Saí porque precisava saber se aqueles relatos escabrosos que eu acabara de ler na internet eram totalmente verdadeiros. Saí porque senti uma ânsia irrefreável de me misturar à multidão e estar bem no meio dela se e quando eu descobrisse (e me convencesse intimamente) que aquilo realmente tinha acontecido lá nas montanhas dos arredores de Medelín.
Estou na minha segunda passagem por Florianópolis e essa foi a primeira vez – e, espero, a última – em que andei, andei e andei e não vi ninguém sorrir. Ninguém. Na verdade, quase não ouvi ninguém falar, embora as ruas já estivessem abarrotadas de gente.
(Foto: Alan Pedro)
Andei pelo centro de Floripa, percorri a Felipe Schmidt inteira, da Beira-Mar à Praça 15, depois a Conselheiro Mafra, e então a Deodoro (onde cruzei por um casal de idosos, ele com a camisa da Chape, de braço dado com a esposa, ambos olhando para o chão) e a Tenente Silveira e a Esteves Júnior e a Bocaiúva e, por fim, a Almirante Lamego, onde resido, e tudo o que vi e ouvi nesse trajeto foi tristeza e silêncio, algo que não combina em nada com esta cidade falante e ensolarada, com este estado alegre e otimista que ama o futebol e faz dele uma de suas principais formas de celebração da vida.
Há coisa de três ou quatro semanas recebi do Sérgio Pugliese um desafio: entrevistar alguém da Chape para o Museu da Pelada. Moro em Floripa, como já expliquei, Chapecó fica no Oeste Catarinense, e essa distância física, aliada a compromissos profissionais e familiares, terminaram por me impedir de fazer o processo andar na velocidade em que eu gostaria. Chegaríamos ao intento, com certeza. Com certeza! Pois é.
Na quarta-feira, dia em que escrevi estas linhas, saí de novo às ruas de Floripa. Praticamente repeti o trajeto feito no dia anterior. Os sorrisos já começavam a voltar. Tímidos, sim. A célebreexpansividade dos “manezinhos” dava os primeiros sinais de regresso. Muito de leve. Não será de um dia para o outro. Não poderia ser.
No começo do ano fui ao estádio Orlando Scarpelli para assistir Figueirense x Chapecoense pelo Campenato Catarinense. Empate de 1 a 1. Finalizada a partida, acompanhando parentes e amigos que torcem pelo Figueira, fui saindo do estádio no meio da torcida do clube da capital, e, por várias vezes, ouvi comentários que variavam nas palavras, mas mantinham o mesmo sentido: “Essa Chapecoense não é fácil!” Havia respeito, simpatia e admiração. Que agora – para os torcedores do Figueirense e de todos os outros clubes do Brasil – se transformarão numa saudade fraterna. Lindamente fraterna.
Eu gostaria de escrever um final mais positivo e alentador para este texto, mas o que dizer? Vamos em frente? Sim, vamos em frente! Vida que segue? Claro, vida que segue, sempre! Bola para frente? Opa, lógico, bola pra frente! Mas com o tempo.
Com o tempo.
Só com ele.
AO MEU PERSONAGEM PRINCIPAL
por Zé Roberto Padilha
Era um misto de respeito pelo que você jogava com o medo do que aprontava. Assim foi minha relação com você, em 1975, quando fomos peças de uma Máquina de jogar futebol. Era para ser o meu ano no Fluminense. Depois de percorrer toda a divisão de base nas Laranjeiras, Lula, ponta esquerda titular do clube e da seleção brasileira, tascou com sua categoria uma cola Araldite no meu calção e cadê que despregava daquele banco de reservas? Assinei meu primeiro contrato profissional em 1972, e passei dois anos mais assentados e assistindo partidas do que jogando. Até que ele foi vendido em 1974 para o Internacional.
Com Parreira no comando, joguei toda a Taça Guanabara, parte do estadual e me preparei em uma excursão em janeiro para assumir a camisa 11. Nunca estive tão pronto. Mas quando voltávamos em fevereiro da pré temporada em amistosos pelo sul, paramos em uma banca de jornal em Itatiaia e o Jornal dos Sports trazia na capa a chamada que decretava o fim dos meus sonhos: Horta contratara você, o então maior ponta esquerda ofensivo do país, Rivelino, ponta esquerda da seleção de 70, e de quebraquem dividiu com ele aquela faixa de campo no México, Paulo Cézar Caju.
Me deu vontade de descer a mala e ficar por lá. Mas meu supervisor, Domingos Bosco, disse forte: “Entra neste ônibus menino. Você tem contrato a cumprir!” Entrei no ônibus e saltei para a dura realidade: Fluminense x Bayer de Munich em uma quarta-feira à noite no Maracanã. Jamais assisti uma exibição igual a sua e de todo o meu time. Base da seleção campeã do mundo, bi-campeão europeu com Beckenbauer como capitão e Sepp Mayer no gol, os alemães foram convidados a tomar o maior dos bailes da bola de inspirados bailarinos. Ganhamos de 1×0, gol do Cléber, e todos vocês tiveram uma exibição de gala. Tomei uma ducha e fui para casa pensando: sabe quando que vou entrar naquela ponta?
Entrei no seu lugar na segunda partida da Taça Guanabara. De tantos craques reunidos em campo, nosso time se tornou uma tribo de índios tricolores. Pela extrema capacidade ofensiva, só queriam atacar. Toninho e Marco Antonio apoiavam pelas beiradas, Edinho se apresentava como fator surpresa, Paulo Cézar e Rivelino encostavam nos atacantes e você, Gil e Manfrine iam toda hora para cima da zaga adversária. Só voltavam para cercar quando a aldeia eraatacada. E Silveira e Zé Mário protegiam o pobre do Félix.
Esforçado, recordista do “teste de cooper”, sé perdia em distância percorrida para o Dirceuzinho, fui convocado a entrar no time para defender a oca. E você foi para o banco e se transformou num zumbi que percorria a concentração, os hotéis, os vestiários a aprontar o diabo para cima da gente. Não era jogador para ser reserva de um bom jogador, mas eu, o bom jogador, tão assustado com suas aparições, tornei-me seu comparsa. Melhor ficar ao seu lado do que ser sua vítima, pensava.
E aprontamos juntos. Lembra do dia em que Paulo Cézar Caju encostou seu Puma branco conversível ao lado da portaria da Álvaro Chaves encostado ao Mate? Tinha acabado de chegar de Marselha e queria impressionar as meninas do vôlei. E você, comigo na vigília, decorou o painel com doces-de-leite, cocadas e encharcou um banco de mate gelado e outro de limonada. Quando PC sentou e a calça encharcou, o sangue subiu e os jornais estampavam dia seguinte: Caju pede a diretoria para ser vendido. Motivo: não fora bem recebido pelo elenco.
Quando lancei meu primeiro livro, “Futebol: a dor de uma paixão”, e contei cinco das nossas histórias, claro, precisava vender meus livros de não ficção, mas a ficção me tornou narrador e você o personagem principal. Quando nos encontramos em uma partida do máster nas Laranjeiras você foi tirar satisfações comigo. Com que direitos, falava sério, publicava nossas histórias sem consentimento? Respondi, em defesa, que estava desempregado, vivia das vendas do meu livro e que ele jogava na seleção de máster do Luciano do Valle. Precisava de histórias incríveis como a nossa para pagar o aluguel, de preferência com um grande jogador no papel principal a atrair bilheteria. E você jamais me perdoou.
Queria lhe dizer, amigo, já que não tive como me aproximar mais de você após 41 anos, do orgulho que ainda sinto quando um torcedor tricolor amigo, querido da gente, me apresenta a alguém não como quem teve a honra dejogar no Flamengo ao lado Zico, mas de ter sido aquele pontinha tricolor que um dia barrou o Mário Sérgio. No segundo turno você resolveu voltar a ser titular. Se cuidou, passou a chegar cedo às Laranjeiras e aí era covardia. Retornei ao banco. E quando o Presidente Horta foi lhe abraçar após a partida em que acabou com o lateral direito do Botafogo, você o puxou para dentro da ducha. Nova punição. E eu voltei a ser titular na partida seguinte.
Tudo passa tão rápido na vida da gente, entre vestiários, competições, vôos e tantos companheiros de camisas diferentes, que quando você encerra a carreira e retorna a sua cidade de origem, como eu e muitos jogadores revelados no interior, trazemos junto na bagagem nossas lembranças. Se soubermos lidar com elas, reunidas em recortes nas canelas e manchetes nas gavetas, construir uma nova profissão e não ficarmos desamparados a ponto de viver a contá-las pelos bares e sinucas, tudo bem. Mas ontem, ao vê-lo partir tão cedo, de uma maneira tão dura, tais lembranças vieram à tona junto as lágrimas. Porque você, Mário Sérgio Pontes de Paiva, foi mais que um personagem da minha vida e dos meus livros. Entrará para a História como um artista da bola, um gênio do futebol que jamais será esquecido.