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MEMÓRIAS DE UM PONTA

Quem acompanha o Museu da Pelada tem o prazer de ser brindado com belas crônicas de Zé Roberto Padilha, ex-ponta da Máquina Tricolor, Flamengo, Bonsucesso, Itabuna, entre outros. Politizado desde os tempos de jogador, o craque se formou em Jornalismo e decidiu reunir todas as suas crônicas no livro “Memórias de um ponta à esquerda”, lançado na última semana, na histórica Livraria Folha Seca, no Centro do Rio de Janeiro.


Assim como a equipe do Museu da Pelada, Zé Roberto chegou com muita antecedência. O ex-ponta trouxe de Três Rios, na mala do carro, as camisas dos clubes por onde passou e, com a ajuda de Rodrigo Ferrari, da Folha Seca, fez questão de estendê-las em um varal improvisado na Rua do Ouvidor, dando ainda mais charme para a livraria.

Com o prefácio escrito por nosso capitão Sergio Pugliese, o livro reúne 42 crônicas muito bem escritas e variadas, sobre os tempos de jogador e assuntos atuais.

– O único problema é que o torcedor não consegue separar as coisas. A capa sou eu com a camisa do Flamengo e, por isso, tenho certeza que muitos tricolores ficaram na bronca e vão boicotar o livro – lamentou o ex-jogador.


Iata Anderson, Zé Mário e Zé Roberto

Craques como Júnior e Zé Mário fizeram questão de marcar presença no lançamento e promoveram uma resenha divertidíssima na livraria. Em um determinado momento, Zé Roberto relembrou um samba que criaram em “homenagem” a Merica, o “misterioso monstro que veio de Alagoinhas, transformando o local em uma verdadeira roda de samba. As gargalhadas foram inevitáveis.

– Você tá mais maluco do que já era, né? – cornetou Júnior.

No fim da resenha, um dos maiores “carrapatos” da história do futebol brasileiro, Zé Mário não escondeu o orgulho por fazer parte daquela geração.

– Jogamos na melhor época de todo futebol mundial. Joguei contra e a favor dos melhores do mundo. Não vai existir outra geração como aquela.

 

ALMIR PERNAMBUQUINHO

por André Felipe de Lima


Poucos jogadores da história do futebol brasileiro renderam tantas crônicas quanto Almir Moraes de Albuquerque, ou simplesmente “Almir Pernambuquinho”. Heleno de Freitas [ex-Botafogo e Vasco] talvez rivalize com ele em polêmicas dentro e fora dos gramados, mas Almir teve um percurso incomum a ponto de promover um cisma na crônica esportiva. De um lado, como fã de sua alma digna de uma tragédia grega, Nelson Rodrigues o definia como “o divino delinquente”. Armando Nogueira, outro expoente do jornalismo, não media o verbo em relação ao ex-centroavante do Sport, Vasco e Santos. “Almir”, escreveu Nogueira, “era um caso de polícia”. O cronista chegou ao extremo de exigir em sua coluna de imprensa a prisão ou internação do atleta.

Almir era assim… Deus e o diabo encarnados em um só homem.

Restava aos adversários que se preparassem antes de enfrentá-lo, pois lá estava um guerreiro enfurecido a espera deles. Pobres daqueles que o marcavam com pontapés. O troco não saía barato. E os cartolas não ficaram fora da lista de desafetos do Pernambuquinho. Calotes e safadezas eram respondidos com furiosos desabafos.

Impulsivo. Agressivo. Era “pau puro”, como o próprio dizia. No Flamengo, a torcida o apelidou de “Almir-Raça”. Não era para menos. Um Almir tal e qual a um anjo pornográfico, como escreveu Nelson Rodrigues, seu “advogado” mais eloquente, em edição da Manchete Esportiva de 7 de março de 1959, na qual definia Almir como o “Pelé branco”: “Em tudo que se diz sobre Almir, já é difícil discriminar o que é verdade e o que é folclore. Por exemplo: — contam que Almir xinga os adversários. Então pergunto: — será o primeiro? Não me parece. O futebol jamais foi mudo, jamais exigiu do craque um silêncio de Sarcófago. Direi mais, se me permitem: — o futebol é o mais falado e o mais pornográfico dos esportes. Durante os noventa minutos, tanto os craques em campo como o torcedor nas arquibancadas rugem os palavrões mais resplandecentes do idioma. Dir-se-ia que tanto o público como o craque têm, no berro pornográfico, um estímulo vital, precioso e irresistível. E se o meu personagem xinga os adversários, não faz outra coisa senão insistir num hábito que data dos nautas camonianos.”

Ódio, amor, paixão, respeito, revolta, indiferença, companheirismo e por aí vai. Tudo da alma humana cabia quando fosse Almir a pauta. Uns o desejavam, outros o repeliam.

Prestes a chegar ao Flamengo, muitos não o queriam, mas o diretor Flávio Soares de Moura, confiando piamente na “alma” de Almir, arriscou sua própria reputação: “Eu comprei você e seu barulho, Almir. Por tudo o que você fizer vão botar a culpa em mim. Mas eu topo a parada”. Flávio, que se tornou grande amigo de Almir, nunca se arrependeu, nem mesmo após a pancadaria na final do Campeonato Carioca de 1966, contra o Bangu.

Mas houve outro jogo contra o Alvirrubro suburbano, realizado no dia 30 de outubro de 1966, em que a virilidade de Almir escoou de forma positiva. Para o gol adversário, com tudo o que tinha de direito. Inclusive lama, suor e lágrimas.

O público presente nem era tão grande. Mas os 34 mil que estiveram no Maracanã presenciaram aquele que talvez tenha sido o gol mais incrível da história do estádio. E foi de Almir, como o próprio descreveu: “Esse gol foi o mais espetacular que fiz em toda a minha carreira e mereceu até a capa dupla de um jornal francês, o ‘France Football’; foi um gol que fiz arrastando a cara na lama, me arranhando todo, num dia chuvoso no Maracanã […] A coisa começou com a cobrança de uma falta pelo nosso lateral direito, Murilo, na altura da intermediária do Bangu, quando o jogo estava 1 a 1 e devia faltar uns dez minutos para acabar. Não me lembro se quem cabeceou primeiro foi Silva ou se fui eu mesmo, mas o fato é que, após o lançamento, um de nós dois cabeceou e o goleiro Ubirajara rebateu. Acho que fui eu mesmo, porque sei que estava caído quando via bola a mais ou menos meio metro de distância e o goleiro Ubirajara, também caído, a se esticar todo para tentar agarrá-la. […] ‘ Tenho que alcançar essa bola de qualquer maneira, nem que me estraçalhe todo aqui’, pensei. […] À proporção que eu sentia a mão de Ubirajara mais perto, crescia a minha determinação. O chão se tornava mais áspero, rompia a minha carne; mas eu não podia desistir, tinha que alcançar a bola, tinha de ser mais eu. […] Com os olhos empapados de lama, a pele toda cortada pelo atrito com a terra, nem pude ver a bola ir para as redes […] a torcida do Flamengo rugiu no estádio com o grito de gol, meus companheiros de time caíram sobre mim a me abraçar e me beijar. […] Até hoje Ubirajara jura que eu só levei vantagem sobre ele porque teria tocado a bola com a mão e não com a cabeça. É desculpa de mau perdedor […] Se tivesse feito com a mão e o juiz tivesse validado o gol, eu confessaria francamente, até mesmo para gozar o Bira. Mas não houve nada disso do que ele alega: fiz aquele gol com a cabeça e o coração.”

Chovia muito naquele dia e o cronômetro já marcava 40 minutos do segundo tempo, quando Almir atirou-se de peixinho na pequena área e cabeceou com força. Caído no chão, arrastava o rosto no gramado enlameado, empurrando a bola para dentro do gol. “Almir não queria saber se o zagueiro Mario Tito, que estava chegando, iria chutar sua cabeça, com bola e tudo — só o gol lhe interessava. A foto desse gol foi parar na capa do jornal France Football”, escreveu Ruy Castro.

Almir não temperou os gramados apenas com brigas, foi, sobretudo, um vencedor. Por onde passou, conquistou títulos. Com o Vasco, um Carioca e o Rio-São Paulo, ambos em 58, pelo Santos, o bi da Taça Brasil [1963 e 64], o Paulista de 64, a Taça Libertadores da América e o Mundial Interclubes, ambos em 63.

Almir nunca se incomodou com o que publicavam ou falavam dele fora dos campos de futebol. Tinha uma contumaz dificuldade em ser comandado. Peitou técnicos “gente-boa”, como Armando Renganeschi, de quem gostava muito, e “casca-grossa”, como Yustrich. Travou diálogos nosense, alguns deles publicados pela revista Placar e em sua auto-biografia:

“— Você está bebendo, Almir? Não acha que isso pode te prejudicar no jogo de amanhã?

“Eu percebi que ele tinha chegado como amigo, fui franco:

— Olha, seu Renga, uma cervejinha me faz muito bem. Eu sinto que vou render mais quando posso tomar minha cervejinha à vontade, sem precisar esconder nada.”

Restou a Renganeschi achar graça da conversa e dar um tapinha nas costas de Almir. Já com Yustrich, um “alemão” que também gostava de bate-boca, Almir não deixou barato e sua personalidade forte intimidou o treinador.

“Nesta época eu já morava em Copacabana [na rua Leopoldo Miguez], com Belini [o dono do apartamento], Delém, Écio, Orlando. Durante a preleção, Yustrich se dirigiu a cada um dos jogadores, ora dando conselhos, ora ditando normas de comportamento. Quando chegou a minha vez, ele engrossou:

— Olha, Almir, você escolhe ou o Vasco ou Copacabana.

“Eu já estava invocado com aquela história de ele nos ter proibido de comer e beber, respondi na bucha, sem vacilar:


— Olha, seu Yustrich, já escolhi desde agora. O Vasco pra mim não existe, eu escolhi Copacabana”.

Ele era assim, duro na queda. Dizem, na malandragem carioca [a “das antigas”], que gente assim “canta pra subir” mais cedo. A velha máxima popular foi infalível para Almir, ou há melhor definição que o título da reportagem de O Estado de S.Paulo “Um tiro no bar, e Almir não briga mais”?

Morreu assassinado poucos anos após deixar os gramados, em uma briga no bar Rio-Jerez, na Galeria Alaska, em Copacabana, na madrugada do dia 6 de fevereiro de 1973, após um bate-boca [o definitivo] com o português Artur Garcia Soares. O tiro atingiu a cabeça de Pernambuquinho.

Hoje, igualmente ao contemporâneo Garrincha, o irascível craque faria anos. Faria 80 anos.

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A MAIS COMPLETA REPORTAGEM SOBRE ALMIR/ APRESENTAÇÃO HELVÍDIO MATTOS
PARTE 1/ https://www.youtube.com/watch?v=1nQL_71mC00
PARTE 2/ https://www.youtube.com/watch?v=sb6ijpJ4g9g
PARTE 3/ https://www.youtube.com/watch?v=qaQNC7eXaVo
PARTE 4/ https://www.youtube.com/watch?v=TaDlTOYh0-o
PARTE 5/ https://www.youtube.com/watch?v=cBz47DRKqmo

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A biografia completa do Almir Pernambuquinho consta do I volume (a Letra “A”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição do querido Cesar Oliveira.

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GARRINCHA, GENTE BOA, É UM INTEMPESTIVO E TRIUNFAL ESTADO DE SER

por André Felipe de Lima


O poeta Fernando Pessoa escreveu o seguinte: “O mito é o nada que é tudo”.  Jung percorreu caminho parecido. Dizia ele que o mito mostra-se essencial para penetrarmos os recônditos do ser humano. O símbolo com os quais nos identificamos desenharia, portanto, quem somos na alma, possibilitando-nos identificar e compreender as “verdades” intrínsecas ao longo da vida. Ao longo da história dos homens. O mito é assim: o “nada que é tudo” que nos permite adentrar a realidade com um sorriso, com a alegria que fundamenta a arte. Garrincha é o meu mito. Jamais o vi jogar ao vivo, mas o que li e assisti em vídeo sobre ele garante-me a certeza de que ali, diante dos meus olhos, encontrava-se o mais singular e eloquente mito da história do futebol mundial. É incalculável o que se construiu a partir daquele previsível e instintivo drible para a direita, porém intransponível. Imarcável. Analogicamente, parar Garrincha seria como se alguma mão deificada fizesse parar a terra de girar. Ou seja, o fim da história. O fim do mundo, ora essa! Garrincha, decerto, jamais deixará de existir. Gira ininterruptamente e eterno como o planeta. Mané jamais nasceu ou morreu, meus caros. O impoluto Garrincha traduz, numa concepção fenomenologicamente heideggeriana, o “ser em” mais completo que brotou do nada para construir a história mais emocionante que o futebol já ofereceu ao mundo.


Outro dia, entrevistando os jogadores tchecos remanescentes da final da Copa do Mundo de 1962 — sim, aquela que o mítico Mané “ganhou” sozinho —, eles foram unânimes ao afirmar que Garrincha foi o maior dentre os maiores. Um camarada, que se dizia músico, acompanhava a delegação dos tchecos. Abordou-me e a mim mostrou um CD todo ele composto em homenagem ao Garrincha. Visivelmente emocionado, ele declarou nunca tê-lo visto jogar, mas fez do Mané o seu grande ídolo. Meu Deus, ali, diante de mim, em uma caixinha de CD, o tal “ser em” do Heidegger personificado na imagem mítica do Garrincha, para a qual jamais haverá tempo capaz de apagá-la.

O dionisíaco Garrincha sucumbiu na carne, mas na alma foi um exemplo liberto, como se fosse o Zaratustra nietzschiano. Mané ensinou-nos a felicidade. Ensinou-nos a buscarmos, sempre para frente, como se driblássemos igualzinho a ele, o gol de nossas vidas. Quando algo triste a assaltar-nos a mente tornar-se insistente, experimente-se pensar em Garrincha, no seu sorriso puro e cativante e, claro, nos seus dribles.  Tristeza vai-se embora.


O poeta Carlos Drummond de Andrade sentia-se mais do povo, e portanto feliz, ao fazer de Garrincha o remédio para a melancolia: “Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”

Quantos milhares nos estádios sentiram-se Garrincha vendo-o jogar? Quantos ainda hoje sentem o mesmo apenas assistindo ao extraordinário “Alegria do povo”, sob a aguçada câmera do Joaquim Pedro de Andrade e do Barretão? Mané soube retribuir, e com humildade dizia não ser ele a alegria do povo, mas sim ser o povo a sua alegria. Suscetíveis a todas as formas de resignação, louvamos Mané.

Garrincha mostrou a todos que o futebol tem sua peculiar filosofia e que ele, Mané, fez-nos mais felizes e independentes para driblarmos. Quem um dia, quando menino, não se sentiu Garrincha? Garrincha é mais que humano. Garrincha, gente boa, é um intempestivo e triunfal estado de ser.

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ENTREVISTAS E IMAGENS DO GARRINCHA NA TV CULTURA

ENTREVISTAS E IMAGENS DO GARRINCHA NA TV RECORD

ALEGRIA DO POVO

O MARKETING É INSUBSTITUÍVEL

por Idel Halfen


Na semana que passou surgiram duas notícias envolvendo patrocinadores e fornecedores de material esportivo de clubes de futebol.

Uma se referia à troca de fornecedor de material esportivo por parte do Santos, que voltará a usar uniformes da Umbro após dois anos de parceria com a Kappa.

O fato em si pode ser considerado relativamente normal, pois troca de fornecedores costuma acontecer com relativa frequência. Nesse caso, porém, o tema exige um pouco mais de reflexão por se tratar também de uma troca de modelo de negócios, já que a Kappa atuava como uma espécie de marca própria. O artigo “Marcas próprias no esporte” – http://halfen-mktsport.blogspot.com.br/2017/05/marcas-proprias-no-esporte.html – explica como se dá esse formato e traz um comparativo em relação a outros produtos. 


Apesar de nunca ter sido um entusiasta desse modelo para clubes grandes de futebol, confesso que me surpreendi com a notícia, mesmo porque ambas as partes divulgavam a todo o momento a satisfação com os resultados.

A outra notícia versou sobre o suposto atraso dos pagamentos da Carabao ao clube por ela patrocinado, o que teria sido causado pelo fato de as vendas estarem abaixo das expectativas, as quais embasam os valores do contrato e o fluxo de recebimentos.

Não creio, no entanto, que os clubes envolvidos possam ser responsabilizados diretamente pelos resultados negativos dessas operações.

No caso do material esportivo podemos dizer que havia espaço para se testar um novo modelo devido ao processo de transformação que esse mercado vem passando, onde os valores de remuneração estão sendo readequados.

Outrossim, há de se frisar que gestão de bens de consumo e de varejo não faz parte do core business dos clubes de futebol, além de requerer aportes em estrutura e em profissionais, o que não faz sentido num ambiente com limitação de recursos e outras prioridades.

Em relação ao energético parece claro que a empresa não estimou corretamente o mercado e/ou não se aprofundou o suficiente para entender que fazer um produto novo chegar ao consumidor final, ou mesmo ao varejo, carece de pesados investimentos estruturais em comercialização/distribuição e não apenas em patrocínio. A propósito, remunerar o patrocinado em função das vendas dos produtos é uma expressiva prova de desprezo aos demais componentes do composto de marketing e às ações comerciais.

Analisando os dois episódios de forma mais ampla, podemos inferir que os dois casos têm origem num problema bastante comum no mercado esportivo brasileiro: a confusão entre marketing esportivo e marketing. 


Na verdade nem haveria razão para essa distinção, afinal o conhecimento e a experiência em marketing já conferem requisitos suficientes para capacitar profissionais a atuarem em qualquer ramo de atividade, inclusive no esporte.

Todavia, o mercado esportivo abriu espaço para que achassem que a miopia em marketing pudesse ser compensada através da paixão pela atividade, o que não condiz com os princípios de uma gestão inteligente.

As situações que envolvem varejo exemplificam bem esse cenário, visto que muitos dos erros cometidos pelas organizações – esportivas ou não – são frutos da incompreensão acerca das etapas e variáveis envolvidas numa cadeia de consumo.

FIGUEROA, O ‘PATRÃO’ DA ÁREA OU O MAIS BONITO DO VERISSIMO

por André Felipe de Lima


Falcão, quem diria, não foi unanimidade entre os torcedores do Internacional. O vaticínio soaria sacrilégio se a revista Placar, em uma edição especial de dezembro de 2005, não confirmasse o zagueiro Figueroa como o único a receber todos os votos de torcedores ilustres do Colorado reunidos para eleger o time dos sonhos do Internacional. “Não precisa explicar”, disse Mário Marcos de Souza, co-autor do livro História dos Grenais, para quem Figueroa não exigia elucubrações mais complexas. Era craque e ponto final. Ademais, como o próprio costumava alegar: “Vitórias não se merecem, se conquistam.”

Os 320 jogos e os 26 gols com a camisa rubra fizeram do grande zagueiro um dos maiores jogadores de todos os tempos do futebol gaúcho. Na defesa, mandava Figueroa. Era o “patrão da área”, o “capitão dos Andes”. Há quem defenda com ardor a tese de que a história do futebol dos pampas deva ser contada antes e depois da passagem de Figueroa pelo Inter. E quem discordaria do mago das letras Luis Fernando Verissimo, que durante um jantar oferecido ao ídolo em sua casa, em que compareceram Bráulio, Carpegiani e outras celebridades coloradas, constatou o imponderável? Além de craque, o “patrão da área” declamava Pablo Neruda como poucos: “E na saída do jantar, já na rua, olhando as estrelas, o Figueroa lascou o Neruda — Figueroa é fã de Pablo Neruda, especialmente do “Poema 20” — diante de uma platéia fascinada: “Puedo escribir los versos más tristes esta noche. Escribir, por ejemplo: la noche esta estrellada Y tiritan, azules, los astros, a lo lejos…”. O Ruy [Ruy Carlos Ostermann, jornalista e, obviamente, colorado em várias encarnações] descreveu a cena na sua coluna do jornal Correio do Povo, dias depois. Estava lançado o mito. O homem, além de tudo, era um intelectual!”. A verdade é que o escritor encontrou-se outras vezes com Figueroa. Esperava ouvir dele comentários revestidos de vigorosa erudição sobre a literatura latino-americana, mas os encontros nem foram tantos assim e tampouco o papo era intelectual. Na pauta das conversas, um único tema: futebol. “Ele e a Marcela [esposa do craque] eram pessoas inteligentes e agradáveis, mas depois daquela noite estrelada o Neruda nunca mais foi citado”, conformou-se Verissimo.


Elías Ricardo Figueroa Brander nasceu em Viña del Mar, no Chile, dia 25 de outubro de 1945. Defensor técnico e preciso nos desarmes, era vigoroso nas disputas de bola, porém leal. O “Xerifão” costumava se referir a grande área como uma propriedade: “A área é a minha casa, aqui só entra quem eu quero”. Mas havia os mais abusados que ousavam entrar em sua “casa” sem serem convidados. Ah, os incautos… e Figueroa usava os cotovelos “com alguma prodigalidade”, como escreveu Veríssimo, para “punir” os atacantes. Nada pessoal. Só não permitia invasão de domicílio. Isso, nunca.

Antes de brilhar com as camisas de Internacional e da seleção chilena, Don Elias Figueroa teve de travar uma batalha contra problemas de saúde na infância. Passou por uma operação para sanar um problema respiratório que não o permitia praticar esportes quando ainda tinha apenas seis anos de idade. Logo depois, aos dez, o adversário era a poliomielite [paralisia infantil] que o obrigou a um ano de tratamento, a maior parte do tempo deitado sobre uma cama. Porém, cercado de cuidados da família e, quem sabe, graças a uma mãozinha dos deuses do futebol, estaria de pé novamente. Saiu da infância e tão logo entrou na adolescência surgiu o casamento. Figueroa tinha apenas 16 anos e Marcela, o amor de infância, 15.


O primeiro clube da carreira foi o Santiago Wanderes, em 1963. No ano seguinte, teve uma rápida passagem pelo Unión La Calera. Depois, mais duas temporadas no Wanderes quando foi convocado para defender o Chile na Copa do Mundo de 1966*. Conseguiu destaque internacional e logo surgiu o interesse do Peñarol. Fez grande sucesso no aurinegro onde conquistou o bicampeonato uruguaio [1967 e 1968] e logo se tornou ídolo da torcida.

Em 1971, o Peñarol passava por dificuldades financeiras e teve que negociar o jogar. O Internacional disputou o passe do craque com o todo poderoso Real Madrid e no fim o Colorado levou a melhor. Para Figueroa a escolha foi mais do acertada: “Tive a oportunidade de sair para os dois lados. Escolhi o Inter e fico feliz pela escolha que fiz”. Desembarcou em Porto Alegre, no dia 11 de novembro de 71, ao seu lado o vice-presidente de futebol do Inter, Eraldo Hermann, que alegava ter sido Figueroa a contratação mais expressiva da história do futebol gaúcho. O marketing era nada mais que uma resposta ao rival, que contratara o melhor zagueiro da Copa de 1970, o uruguaio Ancheta, semanas antes. “O Internacional não podia ficar atrás. Toda a história moderna do futebol gaúcho está contida nesta frase: nem Inter nem Grêmio podem ficar atrás um do outro, sem o risco de crise e revolta da torcida”, escreveu Luis Fernando Verissimo, para quem Figueroa, além de mais craque que Ancheta, era “mais bonito”. E parece que o cartola Hermann compreendia bem a frase citada pelo escritor colorado. No ano seguinte, com Figueroa quase intransponível, o Inter conquistou o Campeonato Gaúcho e, em 1973, alcançou o “penta” estadual.

Entre os vários motivos que fizeram Figueroa optar pelo futebol brasileiro, um em especial nos leva a pensar sobre os rumos do esporte no País: “Eram muitos atletas de alto nível, por isso era melhor jogar aqui”. E ele tinha razão, quase todos os tricampeões mundiais jogavam no Brasil. Algo improvável nos tempos atuais é ver um grande craque atuar por um clube brasileiro.

Figueroa chegou ao Beira-Rio para dividir com Falcão a liderança do time na fase áurea do Internacional. Os números são impressionantes de 1971 a 1976, ganhou todos os campeonatos gaúchos. De quebra, o escolheram como o melhor zagueiro da América do Sul por três anos consecutivos [1974, 75 e 76] e participou das Copas de 1966, 1974 e 1982, na Inglaterra, na Alemanha e na Espanha, respectivamente. Na de 1974, foi considerado o melhor defensor.

Em 1975, o capitão fez o gol que garantiu o primeiro título brasileiro da história do Internacional. Na tensa final contra o Cruzeiro, em pleno Beira-Rio, marcou o “gol iluminado” ao cabecear a bola cruzada por Valdomiro para o fundo das redes de Raul Plasmann. O “gol iluminado” ficou conhecido desta maneira porque foi assinalado no único local do estádio onde batia a luz do sol naquela tarde.

No ano seguinte, a forte equipe gaúcha seria novamente a dona do Brasil ao conquistar o bicampeonato nacional. A final foi disputada mais uma vez no Beira-Rio, só que o adversário era o Corinthians. Após fechar a partida em 2 a 0, a taça novamente era erguida pelo inesquecível capitão colorado. Também em 1976, o Inter travou contra o Cruzeiro um dos jogos mais emocionantes dos anos de 1970. Palhinha, então ponta-de-lança cruzeirense, tinha o hábito de provocar os adversários. Fez troça logo com quem… “Palhinha vinha com aquele papo de ‘você não joga nada’ ou ‘vou te quebrar’. Isso me chateava. Ele jogava muito, não precisava desses recursos. Um dia, na Libertadores de 1976, rebentei a cara do Palhinha. Ele jogou sangrando. Na volta, em Belo Horizonte, tentou fazer o mesmo comigo e foi expulso. Eu dizia: ‘Me bate de frente, Palhinha’. Mas ele vinha por trás. Gosto de nego valente.”

Não era só dentro de campo que o zagueirão se destacava. O estilo galã e o porte físico do jogador atraíam a torcida feminina.


Em meados de 1973, um repórter resolveu fotografá-lo nu, de costas, após uma partida quando Figueroa ainda trocava de roupa no vestiário do Estádio dos Eucaliptos. A foto foi estampada em uma charge de Marco Aurélio, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. O escândalo transformou o jogador em um símbolo sexual, mas também despertou nos cartolas da Federação Gaúcha de Futebol um arroubo moralista [ou seria despeito?…]. O campeonato foi interrompido durante uma semana por causa da bunda do Figueroa: “Depois o fotógrafo disse que só queria mostrar que eu era de carne e osso. Pô, que me mostrasse no supermercado ou algo assim”. Aurélio premeditou tudo. Queria mesmo era espetáculo, polêmica. Ele mesmo reconheceu isso. “A Jacqueline Kennedy Onassis havia sido flagrada nua por paparazzi em uma ilha grega. O escândalo foi total. Eu resolvi tentar o mesmo estardalhaço por aqui”. O chargista combinou tudo com o fotógrafo do Zero Hora, Hipólito Pereira. Os dois seguiram para o estádio do Beira-Rio, mas os jogadores colorados estavam no Eucaliptos. Ambos mudaram o rumo e seguiram para o local onde poderiam flagrar Figueroa. Foram barrados pelo segurança e, pacientemente, aguardaram o final do treino. Diante do basculante do vestiário, promoveram o clique mais causticante daquele ano. “Eu dei o pé para o Hipólito subir. E ainda assim ele foi obrigado a erguer a máquina e disparar, nem viu direito o que estava acontecendo no vestiário”. Figueroa, garantiu o chargista, foi o que menos se sentiu incomodado com a história. O zagueiro recebeu a solidariedade de todo estado. Era gente da Igreja Católica, políticos, cartolas [inclusive do Grêmio] e torcedores mais sentidos com aquilo tudo. Aurélio é quem penou. Teve de conceder entrevistas para Deus e o mundo — até mesmo para o programa televisivo do apresentador Flávio Cavalcanti — e quase foi linchado em um restaurante por colorados mais exaltados. O principal executivo do Grupo RBS, proprietário do Zero Hora, Maurício Sirotsky, deu o caso por encerrado ao não passar as fotos para outros veículos e entregá-las a Figueroa. No final das contas, o campeonato foi paralisado pela foto da bunda do zagueiro chileno e o Inter conseguiu recuperar uma penca de craques contundidos. Tudo a tempo para o elenco levantar o pentacampeonato estadual. Restou ao treinador Dino Sani agradecer ao chargista, como descreveu o cronista Marcelo Xavier: “Você venceu o campeonato para nós.”

Polêmica e muitas glórias depois, Figueroa trocou o Inter pelo Palestino, do Chile, em 1977. O craque passou ainda pelo futebol dos Estados Unidos, onde defendeu o Fort Lauderdale Strikers. O último clube do eterno capitão chileno foi o chileno Colo-Colo, onde encerrou a carreira em 1980, aos 36 anos de idade. No time americano, Figueroa, após cotovelada de um adversário, quebrou o maxilar e teve de levar quarenta pontos no rosto. Queria voltar a campo, mesmo machucado, para bater no jogador. Contido, levaram-no para o hospital.


Enquanto vivia intensamente a paixão pelo esporte bretão, Figueroa foi se preparando para o momento em que deixaria os gramados. Iniciou a carreira de treinador no Palestino e, em seguida, retornou ao Inter, em 1995, para atuar como gerente de futebol. Neste período, chegou a assumir o cargo de treinador do Colorado.
O craque passou a fazer de tudo um pouco. Como empresário, assumiu uma distribuidora e importadora do vinho Dom Elias, em Porto Alegre.

Com consciência da importância do estudo, fez faculdade de jornalismo e permaneceu ligado ao esporte exercendo a profissão de comentarista e de diretor da Universidade do Esporte, no Chile. Ciente de sua posição de ídolo, o ex-atleta também dá exemplo de cidadania ao se dedicar ao programa Futebol pela Paz, da Organização das Nações Unidas. Figueroa preside um grupo de ex-jogadores que faz parte do projeto que luta contra a pobreza e auxilia crianças carentes pelo mundo.

Nas lembranças de colorados, nunca deixará de existir. Luis Fernando Verissimo guarda até hoje, como relíquia, a foto ao lado do ídolo, tirada em sua casa, durante um churrasco que marcou a despedida de Figueroa, em 1977, entre uma partida e outra de totó: “Nosso zagueiro ia embora, mas nos deixava a memória de uma fase incrível que hoje parece tão remota quanto nossas calças”.

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