CARTA AO PAI-77
Rubens Lemos
Estávamos juntos naquela noite de 28 de setembro de 1977, decisão epopeica do Campeonato Carioca e juntos estávamos neste domingo, 15 de outubro de 2017, diante do computador, ligados no Museu da Pelada, vendo a reportagem com Roberto Dinamite e Zé Mário, heróis do primeiro Vasco de minha vida, cujos fragmentos tento transformar em nítido painel em busca das reprises de televisão, de depoimentos, textos e fotografias.
O senhor, seu Rubão pai, há 40 anos, uísque na mão, rebelde e inquieto, indignado com a Ditadura que lhe tolheu parte da vida, bigode nicotinado de granadeiro cruzmaltino, xingou o adversário de todos os palavrões possíveis e exaltou um time, que, segundo seu seletivo critério de comentarista de talento, honrava as máquinas de 1956 e 1958, transpostas ao seu recanto de garoto sertanejo do Rio Grande do Norte, pelas ondas do rádio.
Em sonetos etílicos, você recitava Barbosa (Miguel), Paulinho, Bellini, Écio, Orlando, Coronel, Sabará, Almir, Waldemar, Roberto Pinto e Pinga, os bambas do “SuperSupercampeonato”, extensões do seu maior ídolo: Walter Marciano, craque de 1956, morto pelas estradas da Espanha em 1961. E garantia que os homens do tio Fantoni representavam toda a história do Almirante, especialmente o artilheiro cabeludo e destemido Roberto Dinamite, “O garoto que vai superar Vavá”, conforme sua sentença telúrica.
Tita bateu o pênalti, Mazarópi voou e espalmou para escanteio. Depois, Roberto tirou Cantarele da fotografia e o fez berrar o hino mais bonito do Brasil. Doses intermináveis. Lembro seu olhar estudioso direto no meio-campo formado por Zé Mário, Zanata e Dirceu. “Zé Mário lidera e combate, Zanata arma e administra o tempo do jogo e Dirceu é um pêndulo, ocupa todos os espaços e tem técnica, sim, ao contrário do que canta essa imprensa flamenguista”.
Faz 40 anos, pai. E me aparece um cara, chamado Sérgio Pugliese, para encher de nostalgia meu domingo. Ele é o ideólogo do Museu da Pelada, que deveria ter transmissão transcendental, de tão fantástico na renovação da vida inteligente do futebol que tanto amamos.
Certeza de que na hora de Zé Mário, Roberto e das reprises do velho Canal 100, você sentou comigo e derramou lágrimas de quem está onde o tempo já não conta. Vê se responde. É carta de um menino, que tinha 7 anos e envelheceu. Virou um chorão, um emotivo crônico, um guardião do seu amor vascaíno.
OS PIONEIROS
por Sergio Pugliese
Da mesma forma que o futebol de salão virou futsal e o futebol de praia, beach soccer, o soçaite, criado em 1954, foi rebatizado de Fut7 e transformou-se na modalidade futebolística da vez. Mas se os nostálgicos não se dobram aos modismos, o que dizer dos pioneiros, os precursores do esporte?
– O nome pode até mudar, mas a essência não morrerá nunca – garantiu Ary David de Almeida, considerado um dos maiores jogadores de soçaite de todos os tempos.
Ary era a grande estrela do Pioneer, primeiro time de soçaite da história, montado pelo saudoso José Luiz Ferraz, dono da construtora Santa Isabel, e que apresentava-se, nas tardes de sábado, no impecável gramado de seu terreno, em Corrêas, distrito de Petrópolis.
– Aquilo era o paraíso e o time deles, praticamente imbatível – reforçou Pedro Tartaruga, ídolo do Santo Inácio, um dos adversários que sofreu nas mãos, na verdade nos pés, dos craques do Pioneer.
Nossa equipe reuniu Ary David, Pedro Tartaruga, os irmãos Paulo e Thomas Sá, também do Santo Inácio, e Zé Brito, do Milionários, boleiros que tiveram o privilégio de participar do nascimento do soçaite, em Corrêas. Imaginávamos um encontro pacato, mas rivalidade é rivalidade e Ary David resgatou do fundo do baú uma goleada de 21 x 3 do Pioneer no Santo Inácio. A casa caiu!!!!
– Sinceramente, não me lembro disso – esquivou-se Paulo Sá.
– Nesse dia, não fui – defendeu-se Pedro Tartaruga.
Thomas Sá preferiu rir, mas Ary David, iniciou uma sessão de hipnose, praticamente uma regressão, e conseguiu ativar a memória de Thomas, que tinha argumentos convincentes, como a falta de hábito de jogar sem o impedimento, uma das regras da casa. José Luiz Ferraz também estabeleceu que as cobranças de falta seriam indiretas, a marca do pênalti ficaria a oito passos do gol e a baliza mediria cinco metros de largura e dois e dez de altura. E se Ary David era uma máquina de fazer gols com linha de impedimento, imagine sem! Naquele dia, fez um caminhão, mas pediu para o árbitro encerrar a partida quando o placar marcou 21.
– Os amigos não mereciam aquele tratamento – divertiu-se ao lado dos companheiros da vida toda.
Mas os craques do Santo Inácio não sofreram sozinhos. O escrete do Pioneer colocou muita gente na roda, inclusive profissionais como Gerson, Ayrton Povil, Pampolini, Carlos Alberto Torres, Zizinho e Zagallo, além de clubes tradicionais, como Juventus, Lagoa, Columbia e Real Constant.
– Também ganhamos do Milionários – acrescentou Ary David.
– Do Milionário, não!!! Esquece!!! – bradou Zé Britto, que numa de suas belas atuações em Corrêas, como adversário, acabou contratado pelo Pionner.
Além de Zé Britto, Ary David e José Luiz Ferraz, o Pionner também tinha Marcos André, Moacir Lobo, Valdir, Ary, Átila, Eurico Louro, Raphael de Almeida Magalhães e Rivadávia Corrêa Meyer e Luiz Fernando Secco. Mas o pessoal da alta sociedade também disputava uma vaguinha na equipe e atraía a atenção da imprensa. Empresários como Tony Mayrink Veiga, Álvaro Catão, Didu Souza Campos, Antônio Piano e o construtor Celso Bulhões de Carvalho, além de Miéle, Armando Nogueira e Luiz Carlos Barreto, eram personagens constantes da coluna de Maneco Muller, no Diário Carioca e Última Hora, e bom goleiro, que aproveitou um termo já existente, o café society, para criar o futebol soçaite.
– Não duvide que a resenha também tenha nascido lá – comentou Ary David, que participou de muitas rodas musicais, pós-pelada, com Adalgisa Colombo e Dorival Caymmi.
A rapaziada aprendeu direitinho e até hoje mantém a garganta em forma, afiadíssimo nas resenhas. Se dependesse de Zé Brito, Ary David, Pedro Tartaruga e dos irmãos Paulo e Thomas de Sá estaríamos até agora brindando uísque e cerveja, no apartamento do artilheiro Ary David, que cobriu a mesa com fotos e recortes da época. Cada imagem, uma lembrança. Sorrisos e lágrimas, heróis e pioneiros.
Texto publicado originalmente na coluna A Pelada Como Ela É em 20 de agosto de 2015.
A VÁRZEA E O MENINO DO HAITI
texto: Marcelo Mendez | foto: Maristela Ranieri
Esnel joga bola…
(Foto: Maristela Ranieri
São vários os caminhos da várzea pelos quais a crônica perambula.
Dias de sol, chuvas finas, garoas com gotas de orvalhos matinais e sonhos. Andanças regidas por sons de blues, rock, jazz e outros instrumentos de samba. Dos pés adornados por chuteiras coloridas e cadarços psicodélicos saem as melhores histórias de toda uma humanidade que resiste.
Para saber da beleza do futebol de várzea basta caminhar.
Dessa vez a ida era até o campo do Alvi Negro de Santo André. Para o match, convidados nobres.
O time do Jerusalém de São Bernardo enfrentaria Combinado de Haitianos do ABC. Um grupo de refugiados, todos moradores da Favela do Cigano em Utinga, que se apresentaram para a peleja. Cheguei na cancha e vi os meninos.
Todos homens, alguns felizes, outros resolutos, uns contemplativos, outros curiosos, uns eram poesia, outros eram rock and roll, uns eram versos, outros eram silêncio. Nenhum deles era indiferente. Para aquele grupo de homens, estar ali era um grande feito. Algo grande, para muito além de títulos e bravatas.
Um outro mais desavisado há de observar; “Que coisa mais frugal, um jogo de futebol de várzea que de nada vale. Como pode ser algo assim tão grande, Marcelo, seu Bardo?”
O Cronista deve tomar cuidado:
O que interessa aos homens comuns não serve para imortalidade. E o que acontece em um terrão de várzea está intrinsecamente ligado ao que há de imortal.
Assim foi naquele jogo. Bola pra lá, bola pra cá, chutões e outras mumunhas quando de repente me aparece Esnel.
Esnel trombava, chutava errado, não sabia passar muito bem, não era muito bem dotado de habilidade. Mas Esnel corria. Com uma inabalável aplicação, do pouco que sabia, Esnel dava tudo. Tudo que tinha e principalmente do que não tinha. Não era um craque de bola e pouco importava porque não seria isso que faria de Esnel um imortal.
Esnel sorria!
Com a candura de um garoto que brinca de bola pela primeira vez na vida, o menino do Haiti sorria feliz da vida. Era um jogador que agia, portanto através do riso farto, feliz e pleno. De nada adiantaria fazer gols, aplicar-lhe dribles, impetrar-lhe canetas, submetê-lo a realidade cruel de um chapéu tomado.
Para todo revés que o adversário apresenta-se, Esnel teria um sorriso para resistir. Como faz em sua vida.
Terminado o jogo, fui até ele. Lhe ofereci uma cerveja, ele me disse que não bebe. Perguntei se queria algo, ele me respondeu que não. Pedi para conversar e então ele me deu um dos seus lindos sorrisos e gentilmente me puxou uma cadeira. Falou um pouco dele…
Que saiu do Haiti depois de um terremoto porque ali seria impossível de viver. Que por la deixou seu amor. Que sonha em juntar uma grana para ajudar os seus que ficaram. Que era feliz…
Me disse que achou um barato poder jogar bola com brasileiros, que não era muito bom, mas que só queria brincar e agradeceu por terem deixado fazê-lo. Brincou, contou histórias, sorriu mais, me pediu o telefone e disse que eu era legal.
Esnel joga bola…
Por um dia, no futebol de várzea, Esnel conseguiu sorrir com gosto, como se a vida de fato fosse algo muito bom que vale-se a pena de ser vivida. Com Esnel e por Esnel vale.
Eu te amo, Esnel…
LARGO DO HUMAITÁ, RUA DO OUVIDOR
por Zé Roberto Padilha
(Foto: Guillermo Planel
O primeiro adversário, antes do primeiro Fla-Flu, de quem sonha em se tornar jogador de futebol é o garoto que se alojou no beliche ao lado do seu. Que desembarcou do interior com os mesmos sonhos que os seus. Irão, primeiro, lutar pela posição que escolheram atuar e depois por um lugar no time titular. Mas o segundo adversário é que será responsável pelo paredão que eliminará a metade deles: a saudade.
Como todos eles, saí aos 16 anos do abrigo dos pais, da cumplicidade dos irmãos, da tranquilidade da minha cidade para viver num quarto cheios de beliches, ocupadas por fusos horários diferentes do meu no bairro da Urca. Mais precisamente, Rua Octávio Corrêa, 45. Como esquecer? E entre um rádio alto, um ronco vindo de cima, o pesadelo de alguns no fundo e um prato carregado de couve-flores que detestava, mas não poderia devolver, a saudade ganhava de goleada. Muitos correram para a rodoviária e jamais voltaram. Recuperaram a namorada que perturbava o sono e se tornaram craques amadores da sua cidade.
Eu, felizmente, tinha o Rubens, namorado da minha irmã, a quem liguei do primeiro orelhão que encontrei após uma noite esquecível – e encontrei abrigo no Largo do Humaitá. Uma família, mesmo não sendo a sua, era tudo o que precisava para não deixar de sonhar. E eles, os Junqueira de Souza, foram tão importantes na minha carreira quanto qualquer iluminada apresentação.
Em 1968, o Rubens, sempre brincalhão, gostava de fazer o teste da gente do interior: pegar em nossas mãos, cheias de vergonha, e atravessar todas as avenidas fora da faixa, que nem sei se já havia, em meio aos carros e aos sinais. Era como entrar com a bola dominada em uma zaga formada por Orlando Lelé, Abel, Geraldo e Alfinete. Se saísse ileso, entrava na cara do gol. Ou da praia. E fui treinando, atravessando, ficando.
Depois de 20 anos ziquezagueando entre avenidas e zagas distantes, voltei a minha cidade, Três Rios, e recuperei a tranqüilidade. De enfrentar carros e avenidas, mas que hoje, terça-feira, será novamente quebrada. Retorno ao Rio de Janeiro para lançar meu novo livro. Levo na bagagem não chuteiras, mas as histórias que elas nos permitiram escrever. Às 19h, na Livraria Folha Seca, no Centro do Rio de Janeiro, estarei autografando “Memórias de um ponta à esquerda”, meu novo livro. Rubens Junqueira de Souza, engenheiro e casado com minha irmã, três filhos e sete netos depois, confirmou presença e prometeu ajudar a toda nossa gente do interior atravessar a Rua do Ouvidor. Entre elas, as nossas memórias, haverá um lugar de destaque, em nome da gratidão, a lhe estender às mãos e lhe dizer o meu muito obrigado.
PARABÉNS, FALCÃO!
por Serginho5Bocas
por Claudio Duarte
Me desculpem os fãs de Beckembauer, do Redondo e do Zidane, mas hoje vou homenagear o Pelé dos volantes, o jogador mais elegante que vi jogar bola em minha vida e um dos maiores craques que o mundo produziu em todos os tempos.
Paulo Roberto Falcão nasceu em 16 de outubro de 1953, e fez história em Porto Alegre, no Brasil e depois na Itália. Muito novo comandou o grande Internacional dos anos 70, dividindo a liderança com ninguém menos do que Elias Figueroa e sagrando-se tricampeão brasileiro, sendo que no último título, em 1979, de forma invicta, fato único até hoje no Brasil. Mesmo sendo volante, venceu duas vezes o prêmio de melhor jogador do Campeonato Brasileiro, numa época em que ser o melhor por aqui era coisa para os “fortes”, um monstro!
Em campo um líder nato, que exibia um comando quase invisível para a torcida, não era de muitos gestos e gritos, uma eminência parda. Contudo, Falcão ditava o ritmo e “facilitava” o jogo de todo o time, aparecendo em todas as partes do campo, saindo da defesa com extrema facilidade, articulando no meio as jogadas de ataque, fazendo belas tabelas e lindos gols. Suas características incluíam um grande senso de colocação, habilidade e técnica acima da média, economia nos dribles (sempre e somente na hora certa), chutes e passes precisos. Tinha excelência em todos os fundamentos do futebol.
Por incrível que pareça, Falcão jogou pouco na seleção brasileira, apenas 49 partidas (só no Brasil mesmo) e logo no início da carreira foi surpreendido por Claudio Coutinho, que preteriu-o levando Chicão para a Copa do Mundo de 1978 na Argentina. Na Copa de 1986, no México, esteve presente no grupo, mas sem reunir boas condições físicas, em razão de uma operação no joelho, se limitou a poucos minutos de jogo. Assim, seu show ficou reservado para 1982 na Espanha, quando ele entrou para a história ao ser um dos líderes de uma equipe de astros, que contava ainda com Zico, Sócrates, Cerezo, Júnior, Leandro e que entrou para a história do futebol mundial.
Naquela Copa ele atuou nas cinco partidas do Brasil e marcou 3 gols, apresentando um futebol tão refinado que foi agraciado com o prêmio de segundo melhor da torneio (bola de prata), mesmo tendo sido eliminado ainda nas quartas-de-final. Só não levou a bola de ouro, porque Paolo Rossi, o “bambino d´ouro” italiano decidiu a Copa para a Itália.
Acredito que o jogo contra a Argentina (3×1), foi sua maior atuação pela seleção brasileira, mesmo tendo jogado uma barbaridade também contra a Itália. Só que no jogo contra os “Hermanos”, ele quase nos brinda com o que seria um dos mais belos gols de todas as Copas, quando fez uma tabela com Sócrates no alto, e sem deixar a bola cair emendou de primeira e de perna esquerda no travessão de Fillol, uma pintura, jogada de enciclopédia para ser ensinada nas escolas de futebol arte do mundo todo. Sem contar o gol de empate na derrota para os italianos, que fez até defunto levantar da tumba e comemorar. Até hoje, quando vejo aquele gol de novo, com ele correndo e comemorando em direção ao banco de reservas, me arrepio e vibro de novo, uma sensação poucas vezes repetidas em minha vida de torcedor.
Falcão foi o oitavo rei de Roma, ungido pelo Papa, comandando a equipe da Roma nas conquistas da Copa Itália e do Campeonato Italiano, “gastou” tanto a bola por lá que até hoje é reverenciado por aquelas bandas. Deixou em nossa memória belas jogadas e belos gols como o do emocionante empate contra a Itália na Copa de 1982, ou o de raça e talento contra o Palmeiras na semifinal do Brasileiro de 1979 em que escapa da sola de Mococa, ou ainda o da espetacular tabelinha de cabeça com escurinho, marcando já nos minutos finais da semifinal do Brasileiro de 1976 contra o Atlético de Minas Gerais.
Foi comentarista da Rede Globo e treinador de futebol, inclusive da seleção brasileira, também comandou um programa de esportes na Fox, sempre exibindo toda a sua visão de jogo acima do normal. Sua educação, simplicidade e a inteligência sempre o distinguiu dos demais e o tornou diferenciado.
Em minha opinião, Falcão foi um dos cinco jogadores mais completos do mundo, que tive o prazer de ver em ação, sobrava na turma, digo, em qualquer turma. Dominava os cinco fundamentos importantíssimos do futebol, que são: marcar, matar, passar, driblar e chutar. Dizem que Di Stefano e Cruyff foram os únicos jogadores que jogavam no campo todo, mas eu ouso a incluir neste seleto grupo de virtuoses Falcão.
Acho difícil ver alguém repetir o que o “anjo louro” fazia em campo naquele setor, pois diziam na época que ele deveria jogar de terno e gravata, tamanha era sua elegância e o tratamento que dispensava a amiga, a bola.
Quanta saudade! Ô tempo bão…