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ANA MARIA PAULINO, A ‘LEILA DINIZ’ DAS PELADAS DO ATERRO

por André Felipe de Lima


Ana Maria Paulino

Mineira, natural de Belo Horizonte, onde nasceu no dia 7 de novembro de 1942, Ana Maria Paulino foi um dos principais nomes do ciclismo brasileiro na década de 1950, quando pedalava pelo antigo Ciclo Clube Monark do Rio de Janeiro presidido por José Bonifácio Paulino, seu pai, que foi ao lado do Mário Filho um dos maiores incentivadores dos populares Jogos da Primavera. Ana Maria foi também uma grande velocista do Vasco da Gama e do Fluminense. Defendeu-os em corridas e saltos e foi recordista nos 100 metros rasos, no arremesso de peso e no arco e flecha. Completa! Mas o que teria Ana Maria Paulino a ver com futebol? Por que, afinal, escrevemos sobre ela em uma página voltada para o futebol? Foi Ana, a grande atleta do passado, a primeira mulher a treinar no Brasil um time de futebol em uma conceituada competição de… pelada.

Sim, Ana Maria Paulino assumiu o comando dos times de peladeiros do Monark e, alguns anos depois, do Getúlio Futebol Clube, que competiram no famoso Campeonato Carioca de Pelada patrocinado pelo Jornal dos Sports e pelo Super Tênis Bamba 704 no final dos anos de 1960 e começo dos de 1970. Até que se prove o contrário, foi ela a primeira mulher a dirigir marmanjos peladeiros. Até 1971, quando comandava o “Getúlio”, jamais tinha ido ao estádio do Maracanã. “Mas não será por isso que não poderei dirigir um time”, rebatia, na lata, qualquer pergunta mal intencionada.

A primeira técnica de futebol era fã do Zagallo e afirmava categoricamente que o seu time jogava como Fluminense da época, campeão brasileiro de 1970. Com um ar professoral, mostrava a todos que a abordavam os caminhos táticos para vencer nas peladas do Aterro: “Nos campos do Parque do Flamengo, a armação da equipe é um dos fatores principais para se vencer o jogo. Primeiro, precisa-se ter um goleiro bem dotado fisicamente, pois não tendo impedimento, o goleiro precisa estar mais do que atento para sair em qualquer jogada. Três zagueiros plantados, dois jogadores que façam um vaivém constante no meio campo e mais três jogadores na frente. Dois deles, de preferência devem ser ponteiros, pois uma das grandes armas de um time é ter um jogador driblador que conduza a bola pelas laterais do campo e depois coloque o atacante na frente do gol”. Ana sabia das coisas.

A treinadora não era propriamente uma “Yustrich” de saias, mas não abria mão de um comportamento exemplar dos seus peladeiros no campo de barro: “Não admito palavrões, de espécie alguma. Uma vez entrei em campo para retirar meu time porque alguns jogadores cismaram de falar algumas ‘coisinhas’ para o juiz.”


A primeira vez que Ana Paulino deu pinta nas peladas do Aterro sofreu com o olhar enviesado dos machistas e sexistas infiltrados entre os peladeiros. Ela trazia a tiracolo uma mascote, um boneco do Bambi, personagem de Walt Disney. A moçada não levou muito a sério as pretensões da treinadora, mas, para a surpresa de todos, Ana dava um banho em muito “professor” de peladas do Parque do Flamengo. Com o tempo, a rapaziada acostumou-se com ela, que fazia do Monark e do Getúlio dois bons elencos peladeiros: “Um ou outro às vezes procura não me aceitar como sua orientadora, mas eu não perdoo. Tanto que três deles se afastaram e se organizaram para inscrever a sua equipe no Campeonato.”

Na época em que comandava os dois times, Ana estudava comunicação e trabalhava no Ministério da Saúde. “No Parque, eu já chorei, desmaiei, enfim, torci, dirigi e fiz tudo que qualquer outra pessoa poderia fazer”, afirmava.

Se no meio cultural a atriz Leila Diniz era exemplo de liberação feminina no final da década de 1960, nas peladas (ora, sim senhor), Ana Maria Paulino driblava com maestria o preconceito para se tornar a primeira mulher a treinar um time de peladeiros na história. Simplesmente épico! Mas fica a pergunta: por onde andará Ana? Quem souber, pode entrar em contato com esse repórter. Ana Maria Paulino faz parte da história da pelada brasileira.

UM CERTO DOMINGO NA VÁRZEA…

por Marcelo Mendez


E então vamos ao relato futeboleiro dessa semana para falarmos do que houve no Estádio Bruno José Daniel em Santo André.

Nele, os times do Nacional e do Jardim Utinga disputavam a decisão da Copa Santo André de futebol de várzea da Cidade.

A crônica da vaca fria da resenha ludopédica, se seguisse os padrões viciados das redações das obviedades ululantes, falaria aqui de maneira absurdamente rasteira do 1×0 mínimo que deu o título da Copa para o time do Jardim Utinga.

Foi um jogo ruim, onde nada aconteceu, pouco foi criado até a feitura do gol e acabou. Oras…

Caro leitor eu lhe afirmo que é completamente impossível que haja na várzea um jogo onde nada acontece. Seja pelo viés que for, seja como em um filme de Samuel Fuller, ou, em um desbunde surrealístico de um Luis Bunuel, absolutamente tudo acontece em volta de uma final de futebol de várzea.

Encontrei Andris Bovo e sua barba milimetricamente aparada na beira do campo e começamos a conversar de amenidades quando observamos umas coisas estranhas na cancha de jogo.

Vimos que o campo estava recheado de cones de trânsito, e logo na subida das equipes ao gramado descobrimos o porque. Foi feita uma espécie de trilha por onde as equipes deveriam seguir. Ao som da música da Champions League, perfiladas as equipes, tal e qual uma coreografia de figurantes de filme do Cecil B. Mille, entraram para se posicionar em cima de um tapete vermelho e ali cantar o Hino Nacional e o Hino da Cidade de Santo André.

Cumprido o cerimonial, começou o jogo.

De cara o estranhamento…

Diferente dos terrões, dos morros duvidosos e buracos sazonais dos campos que tornam épica a várzea, dessa vez a final foi disputada em um gramado ótimo, como de fato está o campo do Bruno Daniel. Um tapete, onde a bola rola, onde o passe chega, onde o chute não tem desvio, onde o fôlego é necessário por demais. A cancha é enorme, bem maior que os sonhos poucos e que as curtas ilusões daqueles 22 abnegados que logo cansam de tanto correr naquela imensidão verde. O jogo fica lateral, não acontece as jogadas agudas, o tempo não passa, a paciência de quem assiste se esgota e então começo a ver as coisas em volta do jogo.

Percebi uma movimentação dos organizadores da peleja; Há algum problema com o troféu. A mocinha da secretaria traz a notícia com cara de susto. Nada demais. João, o bom funcionário da Liga de Santo André vai ao vestiário, de lá volta soberano e comenta conosco:

– Tudo resolvido! – de fato, o troféu chega intacto e imponente.

Enquanto isso no campo, o jogo caminhava para os pênaltis em um momento onde nada parecia acontecer. Mas eis que contra toda a obviedade que engessa o verbo, uma bola chega aos pés de Mosquito, atacante do Jardim Utinga. Ele a recebe na risca do meio campo e caminha resoluto em direção ao gol do Nacional. No caminho, ignora marcadores, dificuldades e outras táticas. Dribla quem vem pela frente, até chegar de frente com o goleiro. Com uma ginga de samba, balança o ombro, joga-o para um canto e mete a bola do outro lado.

Um gol! Mais do que isso:

A bola que balança a rede na várzea e muito mais que um gol. E uma desorientação de sentidos. Uma catarse, uma enxurrada de poesias e odes empiricamente épicas.

Título para o Jardim Utinga. Gol para o domingo. Um domingo novamente agraciado pelo que há de mais belo através da várzea.

O boa e velha várzea. Sempre…

PELÉ, QUANDO FOMOS REIS

por Rubens Lemos 


Depois de levar 18 foras da menina mais bonita, ele foi perguntar a razão ao amigo e confidente. Recebeu uma resposta sincera. A franqueza, afinal, é a senha do cofre da confiança: “Não adianta insistir. Você nunca vai namorar com ela porque é feio demais. Horrível. É duro te dizer, mas amigo é para falar a verdade?”.

O rejeitado resistiu. “Você está enganado. O problema deve ser outro. Antipatia gratuita, ela torce pelo Flamengo, eu pelo Vasco, incompatibilidade astral. Beleza não é o caso. Minha mãe sempre me disse que eu sou bonito. Aliás, lindo!”.

O amigo franco mandou que ele fosse pentear um macaco e foi embora aos impropérios.

A imprensa esportiva brasileira é a mãe enganadora dos pobres torcedores. É ela quem disfarça um futebol assemelhado às bruxas de histórias assombradas feitas para acalmar meninos rebeldes, de princesa de conto de fada. O futebol brasileiro não é, faz tempo, o melhor do mundo.

O Brasil deve a Pelé a liderança unânime e indiscutível. O sublime, o sobrenatural, o intangível, o inalcançável, extraterreno, o inimitável, foi a razão de uma pátria inteira calçar chuteiras e um jeito mágico de jogar virar instituição para se transformar em pó nos tempos de hoje.

O Brasil de Pelé. O Brasil com Pelé. Pelé disputou quatro Copas do Mundo. Em 1958, 1962, 1966 e 1970. Na primeira delas, tinha 17 anos, era um garoto que colecionava revistas do Mandrake e estava prestes a servir o Exército. Ganhou a primeira, a segunda, perdeu a terceira, conquistou a quarta.

Pelé ganhou três, das quatro Copas do Mundo que jogou. Ninguém está dizendo que antes o Brasil não teve craques. Produziu gênios do nível de um Fausto, a Maravilha Negra, de um magistral Domingos da Guia, de um Danilo Alvim, o Príncipe, de um Zizinho, de um Jair, de um Julinho, de um Leônidas da Silva. De um Ademir Menezes.

Mas a força espetacular de Pelé colocou o Brasil no patamar parecido com o dos Estados Unidos no Basquetebol. O esporte ganhou forma e fórmula, ginga e molejo, seus artifícios tinham parentescos com o samba, a malandragem e a boemia. O passo, o compasso, a cadência. Pelé consolidou o brasileirismo no futebol.

Com Pelé, o Brasil mostrou ao planeta estrelas incomparáveis: Djalma e Nilton Santos, os sagrados laterais, Didi, Garrincha, Gerson, Rivelino, Tostão, Jairzinho, Edu, Coutinho, Ademir da Guia, Pepe, Paulo César Caju, Dirceu Lopes,Pagão, Toninho, Mário Sérgio, Amarildo, Almir.

Sem Pelé, o Brasil foi um menino bonito no fantástico escrete de 1982, com Zico, Sócrates, Falcão, Cerezo, Zico, Éder, Leandro e Luizinho. Que perdeu pela estoica opção de atacar e também por enfrentar um timaço que nunca reconhecemos, a Itália de Antognioni, Cabrini, Zoff, Conti, Scirea, Paolo Rossi era, sim, uma verdadeira Squadra Azzurra.

Sem Pelé, o desempenho brasileiro nos outros mundiais perdidos foi ridículo. Em 1974, precisamos de um gol espírita de Valdomiro contra o risível Zaíre, depois de dois empates em 0x0 na primeira fase. Uma Copa com o dito supremo futebol planetário marcando apenas seis gols e levando quatro.

Sem Pelé, o Brasil foi Campeão Moral na Argentina em 1978 e só passou da primeira fase porque o Almirante Heleno Nunes, representante da ditadura militar no comando do futebol, escalou Roberto Dinamite contra a Áustria. O Brasil ganhou de 1×0 e passou à fase seguinte. Antes, dois empates medíocres contra Suécia e Espanha.

Sem Pelé, em 1986, o Brasil caiu nas quartas-de-final contra a França, com Elzo e Alemão no meio-campo. Nas oitavas foi eliminado em 1990, com Dunga e Alemão na meia-cancha, e Maradona fazendo fila indiana de zagueiros até deixar Caniggia fazer o gol argentino. Nas quartas, caímos em 2006 e em 2010.

Sem Pelé, o mundo gira em torno de um clubinho fechado. Está todo mundo igual com mais dois emergentes. O Brasil ganhou em 1994 graças a Romário e em 2002 a Rivaldo e Ronaldo. A Argentina em 1978 pelos tentáculos da barbárie e em 1986 pelos pés de Maradona, a Alemanha em 1974 e 1990, 2014 e a Itália em 1982 e 2006. A França em 1998 e a Espanha em 2010 foram os intrusos. Sem Pelé, nasceram outros luminares: Romário, a citada Geração de 1982, Reinaldo, Careca, Djalminha, Pita, Geovani, Adílio, Rivaldo, Edmundo, o lacrimoso Bebeto, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho até o Barcelona. E pelo mundo afora outros iguais ou melhores.

Então é balela a história de que o melhor futebol do mundo ainda é o do Brasil. Foi. Enquanto Pelé existiu. Com lampejos no tempo do Flamengo de Zico. Agora a categoria é fulana. Hoje, todo clube grande tem um argentino, uruguaio ou chileno razoável.

Quando fomos reis, a esperança não se resumia à molecagem moicana de Neymar ou à insistência com ex-jogadores em atividade. Quando fomos reis, Pelé, o monarca, dispensava Galvões Buenos, ufanistas radicais, vendilhões do patriotismo, estelionatários da fé do povo. Pelé, por mais que não parecesse, era de verdade.

‘SE EU PUDESSE, ME CHAMARIA ÉDSON ARANTES DO NASCIMENTO… BOLA’

por André Felipe de Lima


Um psicólogo disse um dia ao Pelé que ele tinha um elevado índice de agressividade, o que não condizia com o que se via do Pelé dentro e fora de campo. Intrigado com o laudo médico sobre o Rei, um repórter indagou se o inconfundível soco no ar após os milhares de gols que marcou era a prova cabal da explosão dessa contida e hipotética “agressividade”. O Rei respondeu o seguinte, como se mais uma vez, e poeticamente, driblasse um incauto marcador: “Perfeito. O gol, para mim, é um momento de explosão. E eu sinto isso desde garoto.”

O gol. O gol tem um irmão gêmeo, e se chama Pelé. Nasceram juntos, em Três Corações, de Minas Gerais. O que se compreendia como gol antes do Pelé, mudou completamente depois dele. O conceito é inexoravelmente outro. É aquela velha história do “A.C” e do “D.C”. Com Pelé e o gol funciona assim. Um sempre amou incondicionalmente o outro. Quantas vezes o gol “chorou” emocionado por Pelé? Quantas outras vezes foi Pelé quem chorou de felicidade pelo “irmão” que tanta alegria proporcionou mundo afora? “Não há nada mais alegre na vida do que uma bola quicando na área. Nem nada mais triste do que uma bola vazia”. Pelé está certo. Sem essa comunhão não há alegria.

Pelé sempre foi assim, como a nos ensinar que a vida é regida por Janus, um Deus bifronte greco-romano, que mostrava aos fiéis a bipolaridade essencial para tocarmos a vida, com erros e acertos. Pelé foi o “Janus” do futebol, mas, definitivamente, acertou muito mais do que errou. “Tudo o que tenho devo ao futebol. Se eu pudesse, me chamaria Édson Arantes do Nascimento… Bola. Seria a única maneira de agradecer o que ela fez por mim.”

Muita gente tem a ideia de que Pelé foi milionário. Informação relativamente correta, mas só que o Rei começou a ganhar muito dinheiro mesmo onze anos após o título da Copa do Mundo de 1958. Ele mesmo confirmou isso em entrevista à revista Veja, em 1974, preparando-se para abandonar a Seleção Brasileira: “Uma coisa é bom esclarecer: apesar de jogar no Santos desde 1956, só mesmo a partir de 1969 passei a fazer bons contratos. Em 1965, minha firma, a Sanitária Santista, faliu, e fiquei numa situação difícil. Se parasse de jogar, teria de vender propriedades e batalhar para manter meu padrão de vida. De 1969 em diante, comecei a ganhar muito dinheiro, inclusive com bons contratos de publicidade. Hoje tenho sítios, casas, apartamentos, ações, empresas e contratos publicitários com a Pepsi-Cola, Arcoflex, Sparta, Puma e Colorado RQ. Tudo isso me proporciona uma boa renda mensal de 300 mil cruzeiros [correspondente hoje a apenas 1,5 milhão de reais]. O suficiente para Pelé parar e Édson viver tranquilamente, sem medo de problemas financeiros.”

Pelé tem latente nele a humildade genial e incomparável dos ídolos de outrora. Dos verdadeiros gênios do futebol. “Quem segura a barra de Pelé e Dico é o Édson, que nasceu primeiro. Édson é um sujeito responsável, respeitável, por isso, teve condições de proteger o Dico como família e ajudar o Pelé a manter a humildade necessária para chegar ao sucesso sem se desviar no meio do caminho”. Palavras do próprio Pelé.

Ao contrário do que imaginavam há mais de 40 anos, o Rei não ficou rico como merecia. Em algum momento, o caminho lhe surpreendeu com uma estrada pedregosa e esburacada. O tempo em que reinou no futebol não era globalizado. O marketing em torno dele, constata-se hoje, era, por mais surreal que seja a afirmação, aquém do que a eloquente imagem dele exigia. Tudo o que vendiam sobre Pelé — insisto em afirmar — parece pouco ao comparamos com o que se vende hoje em virtude da velocidade da informação e da imperiosa multimídia.

Pelé, a figura mais popular do planeta. A mais pura verdade. Porém as fortunas que cercam as imagens de pernas de pau da atualidade mostram o retrato da injustiça que o impiedoso folhear dos calendários fez com o homem mais famoso do mundo.

Várias vezes lia-se nos jornais o título “Um nome que vale milhões”. Mais uma imaculada verdade. Como escrevera Nelson Rodrigues sobre Pelé, o que “chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado da alma”. A coroa do Pelé jamais lhe será tomada por déspotas cabeças de bagre e milionários que hoje pululam os meios de comunicação mais que as redes adversárias. “É um disparate pensar em arranjar um substituto para ele. Criem outros reis, mas o trono de Pelé é só dele”, disse sabiamente Nilton Santos, que por essa e outras era justamente chamado de “A enciclopédia”.

O pequeno Dico virou o prodigioso Pelé. Virou gigante. Virou imortal. Pelé e a sua doce “agressividade” ao dominar a bola, passar por um, dois, três… Pelé, lado a lado, sempre, com o seu querido e inseparável irmão, tão rei quanto ele: o Rei Gol.

Bernardinho

rei das quadras

texto e entrevista: Marcello Pires | fotos: Marcelo Tabach | vídeo e edição: Daniel Planel

Desde pequeno Bernardinho teve sua vida ligado ao vôlei e ao Fluminense Football Club. Se não bastasse o fato de ter nascido numa família quase toda formada por tricolores, foi nas Laranjeiras que o filho de Condorcet Rezende e Mariângela Rezende deu suas primeiras levantadas e passou a maior parte de sua carreira como jogador. Ao lado de craques como Bernard, Fernandão, Granjeiro, Chiquita e Badalhoca, o então jovem levantador brilhou com a camisa verde, branca e grená e chegou à seleção brasileira. Motivos para o medalhista de ouro no Rio e em Atenas e dono de outras quatro medalhas olímpicas torcer pelo clube localizado na Rua Álvaro Chaves sobravam. Mas como têm coisas que só acontecem com o Botafogo, quando a bola saía das quadras e rolava pelos gramados, o coração de Bernardinho rapidamente mudava de cor e batia forte pelo preto e branco do Alvinegro. Preto e branco de Garrincha, Nilton Santos e Manga, seus emblemáticos ídolos com a camisa do Glorioso.

– É raro você achar um garoto nascido no Brasil que não goste de futebol. A primeira coisa que o pai dá é uma bola e dificilmente o garoto vai jogá-la na parede para jogar vôlei. Ele vai dar um bico nela. A primeira lembrança que eu tenho é que sou o único botafoguense numa família de tricolores. As pessoas acham estranho e me perguntam como eu sou botafoguense. É que um primo meu que foi campeão de caça submarina e que até já faleceu era botafoguense, assim como o cunhado dele, que era médico. Eles me levaram no Maracanã para ver um jogo e subi de elevador, na época das cadeiras especiais. Lembro-me de quando abriu a porta a torcida do Botafogo estava cheia, aqueles refletores, o time entrando, e no dia seguinte já ganhei um meião cinza. Eram os anos 60, tinha o Jairzinho, pai do nosso Jair Ventura, Roberto, Rogério, Paulo Cesar, o ataque era esse, o meio campo com o Gérson, bicampeão carioca da Taça Guanabara – recorda, saudoso, o treinador do Rio de Janeiro.

As lembranças e seus craques preferidos, no entanto, não se escondem apenas no passado de glórias do clube de General Severiano. Além de Túlio, xodó dos alvinegros nos anos 90, e Jefferson, goleiro do atual elenco e um dos ídolos recentes do clube, ele aponta Jair Ventura como principal destaque do bom momento atual. Apesar de ter tido pouquíssimo contato com seu colega de profissão, Bernardinho o coloca entre os principais treinadores do país e enumera algumas qualidades do comandante alvinegro que o agradam.   

– Acho que ele se preparou para essa oportunidade, no momento certo teve sua chance e está mostrando um trabalho excepcional. Eu gosto de algumas coisas. Não o conheço pessoalmente, encontrei rapidamente já faz tempo, mas nesse período de sucesso e de êxito não tive a chance de estar com ele ainda. Acho a postura dele muito bacana. É um cara low profile, tranquilo, não tem aquele status de super estrela e que busca eficiência. Sabemos que não é o melhor time, mas temos um time bacana, bom e ele trabalha bem as questões da equipe. Claro, tem que ganhar título, é o que todo mundo quer, mas o que ele tem demonstrado é o que eu acredito, que é o trabalho, a equipe e estar sempre por ali, na consistência dos resultados de hoje, que foi ter chegado às semifinais da Copa do Brasil e as quartasLibertadores. Os torcedores do Botafogo há alguns anos só rezavam e torciam para o time não cair. Passar uma temporada sem o risco de cair já era um alívio, nós passamos um período assim. Hoje voltamos a ter um time competitivo, que briga por títulos. O torcedor quer mais, eu também quero, mas eu entendo que são passos positivos, dentro de gestão bacana, o que é muito importante – elogiou.

Fã de Jairzinho, Gérson, Roberto, Paulo Cesar Caju, Carlos Alberto Torres, Marinho Chagas, entre outros, Bernardinho afirma que seus tempos de torcedor de arquibancada ficaram no passado. Seja pelos inúmeros compromissos com o vôlei, por sua agenda sempre lotada de eventos e palestras, e, principalmente, pela violência que assola os estádios de futebol, o ex-treinador da seleção brasileira prefere acompanhar o Botafogo de casa.

Isso não tem sido uma tarefa das mais fáceis, ele reconhece. Tudo por culpa da filha mais velha, Júlia, de 15 anos, que quase sempre tenta fazer o pai voltar no tempo e levá-la ao Engenhão. Embora nem os constantes apelos da fanática torcedora tenham conseguido tirar o técnico de casa, mesmo à distância ele se mostrava otimista em relação às chances de o Botafogo conquistar o título da Libertadores, antes da eliminação. 

– Não é simples, mas Libertadores é Libertadores. O futebol tem uma coisa um pouco diferente do vôlei. Se você tiver o melhor time, você pode até perder no campeonato, como nós perdemos um Pan-Americano para uma equipe que era pior, numa partida, mas num playoff dificilmente isso vai acontecer. No futebol é zebra, não é isso, mas acontece com mais frequência esse tipo de situação. Acho que para um time que tem demonstrado eficiência e uma consistência ele pode qualquer coisa. Não vejo de forma alguma como uma tarefa impossível. Se é o favorito, não é o favorito, mas não acho de forma alguma algo improvável de acontecer – opinou o torcedor.

Mas Bernardinho não é só do vôlei, Quando adolescente, ele foi do judô, da natação, do tênis e até do futebol. Entre uma lembrança e outra, ele admite que sua carreira nos gramados foi meteórica. Não passou de alguns minutos no dente de leite do Botafogo, que, à época, ainda treinava no Mourisco. Suas qualidades eram tão básicas, que de meio-campista o ex-treinador da seleção brasileira masculina de vôlei foi parar na zaga. 

Atualmente, nem nas peladas Bernardinho se sobressai. Se hoje em dia ele raramente bate uma bolinha, quando o Rio de Janeiro se mudou para Curitiba no início dos anos 90 ele lembra que os tempos eram outros. 

–  Já joguei muito, mas hoje em dia jogo cada vez menos. Quando nós nos mudamos para Curitiba com a comissão técnica toda, além do (Ricardo) Tabach e do Hélio (Griner) que adoram futebol, tinha o Nando, que era o nosso supervisor na época, era o manager do time, também tricolor, e todos jogam muito bem. Tínhamos um time e ganhávamos sempre porque o mais importante é saber escolher o adversário (risos). Eu sou daquele tipo esforçado, o Bruno jogava bem, ele tinha um dom para o futebol. O Careca tinha um time de garotos em Campinas e quando ele morou lá com a mãe (a ex-jogadora Vera Mossa) foi chamado para jogar. Eu acho que ele dá uns toques no Neymar (risos) – brincou Bernardinho, se referindo a grande amizade entre Bruninho e o camisa 10 do Paris Saint Germain. 

Se dentro de campo ele nunca deu certo, fora dos gramados ele acha que poderia ajudar. Lembrado algumas vezes como um nome importante para reforçar a comissão técnica de alguns clubes do país em momentos de crise, Bernardinho garante que ainda tem muito que vivenciar no vôlei e que jamais pensou em se tornar técnico de futebol. 

Outra certeza que o treinador do Rio de Janeiro tem é que não concorrerá ao cargo de governador do Rio de Janeiro como andou sendo noticiado recentemente em alguns veículos de imprensa. Surpreso com a especulação, o treinador não faz ideia de onde surgem essas informações. 

– Nunca tive vontade de nada disso, não disse nada disso, as pessoas especulam, acho que é uma ausência, uma carência de nomes, de pessoas, é uma situação de tanto desespero que as pessoas vivem buscando alguma coisa. É muito importante que se diga que não existe mito ou salvador que vai chegar lá transformando um time em vencedor, isso é um processo muito mais complexo. Na rua agora as pessoas cobram, “estou contigo”. O que significa estou contigo? Eu não preciso de torcedor, preciso de gente que faça, que cada um faça bem a sua parte. Quem precisa de torcedor é time de futebol, de vôlei. Mas eu tenho um problema muito sério, eu não consigo não me incomodar com as coisas erradas. Nós estamos vivendo um momento hoje no país como um tudo, mas no Rio em especial, que a única coisa que eu ouço dos pais dos jovens é que querem mandar seus filhos embora. Que futuro nós vamos ter? Quando eu deixei a seleção tive convites para ir embora e uma das coisas que pensei foi: “se eu for embora agora que sinal estou dando para algumas pessoas que gostam de mim e me admiram”. Eu não gostaria de jamais ser o protagonista, mas gostaria de poder ajudar a fazer alguma coisa. Minha grande angústia hoje é saber como eu posso ajudar. Eu não sei, tenho refletido sobre isso, durmo mal pensando em como. Eu não tenho uma resposta, tudo que saiu em relação a isso não é verdade – afirmou.

Admirador do bom futebol e das coisas certas, Bernardinho aponta a seleção da Copa de 1970 e o Barcelona de Guardiola como os grandes times que viu jogar. Mas, surpreendentemente, ao contrário da maioria dos brasileiros, o técnico do Rio de Janeiro não suspira pela seleção de 1982. Embora considere Telê Santana um dos treinadores que admira na sua extensa lista de prediletos, que conta ainda com nomes como Phil Jackson, Ruben Magnano, Pepe Guardiola, Jose Mourinho, Tite, Jesus Morlán, treinador da canoagem brasileira nos Jogos do Rio, entre outros, Bernardinho tem outras preferências. 

– Primeira Copa do Mundo que eu vi foi a de 70, que foi aquela coisa de televisão em casa, ainda mais depois da decepção que ouvi pelo rádio em 66. Brasil incrível, Tostão, Gérson metendo bola para o Jairzinho na frente, Rivellino e Pelé. Depois de 70, o pessoal fala de 82, eu vi boas atuações e tudo, mas, sabe, não é que tenha me encantado. Eu gostei, era um time realmente bacana, o Telê era um cara genial, mas não foi uma coisa que me encantou. Recentemente o Barcelona do Guardiola fez coisas incríveis, encantadoras. O Real Madrid atual também, mas quando tinha o Barcelona eu parava para ver. Tem, eu vejo, mas não sou cara de parar para ver, e o Barcelona eu parava. Mesmo sem a seleção eu tenho menos tempo para ver, trabalho muito, muitas palestras e eventos, viajo muito, dando aula, fazendo uma série de coisas para me encontrar, mas não posso largar isso aqui senão eu morro. É literal. Eu gosto muito dos últimos times da Alemanha também, não por causa do 7 a 1 e nem da última Copa, mas pelo lado europeu, eu vejo a Alemanha e percebo a eficiência colocada ali – destacou Bernardinho, que para finalizar apontou seus dois jogos inesquecíveis.

–  A final da Copa de 70 entre Brasil e Itália e aquela virada do Barcelona em cima do Paris Saint Germain, no ano passado, na Liga dos Campeões. Aquilo ali, para. O último lance do Neymar, que ele dá aquele passe, a bola quica na hora que o cara meteu para o gol, parou, fecha e não precisa fazer mais nada. Uma coisa espetacular, uma puta de uma emoção envolvida. Realmente foi inesquecível.