FESTA PARA ANDRÉ CATIMBA
por André Felipe de Lima
André Catimba, que jogava escondido da mãe para não apanhar, foi um atacante técnico, com raça, mas — como se diz na gíria futebolística — muito “quizumbeiro”. O apelido não foi à toa. Catimbava em campo como poucos e, algumas vezes, atingia seu objetivo: o cartão vermelho para os zagueiros adversários, que reagiam às provocações com entradas violentas no atacante.
O ex-centroavante Carlos André Avelino de Lima nasceu no dia 30 de outubro de 1946, em Salvador, na Bahia. Iniciou a carreira no Ypiranga baiano, em 1966. Ficou até 1967. Passou pelo Galícia [1968 a 1970] e aportou no Vitória em 1971, onde permaneceu até 1975 para se tornar ídolo do futebol baiano e campeão estadual em 1972, em uma final contra o arqui-rival Bahia em quem marcou um dos gols da decisão. Formou com os pontas Osni e Mário Sérgio um dos melhores ataques da história do rubro-negro baiano.
André Catimba é o segundo maior artilheiro da história do Vitória em campeonatos brasileiros. Marcou 31 gols em quatro edições: três em 1972; oito em 73; dezessete em 74 e três em 75. Atuou em 189 partidas e fez 82 gols com a camisa rubro-negra.
A fama de artilheiro ecoou na seleção. Foi convocado por Zagallo para o amistoso entre Brasil e um combinado estrangeiro, no Maracanã, no dia 19 de dezembro de 1973.
Catimba era feliz no Vitória. Afinal, tornara-se sinônimo do clube. Se falassem de Vitória, logo falavam de André. Para o bem ou para o mal.
A fama de encrenqueiro começou, segundo ele, por conta de oportunistas que queriam crescer à custa de sua fama de ídolo do clube: “Lá no Vitória, eu tinha boas relações com todo mundo. Todos gostavam de mim. O presidente Benedito Luz, por exemplo. Eu pedia a ele para me vender quando aparecesse uma boa proposta, mas ele dizia que não queria se desfazer de mim. Eu me chateava, porque estava há quase dez anos no Vitória, mas continuava apreciando o cara, pela amizade que ele demonstrava por mim. Mas aí apareceu um tal de Flávio Cavalcanti, supervisor remunerado. Esse Cavalcanti dizia besteiras a meu respeito. Que eu brigava, que não me esforçava nos treinos — essas bobagens. E isso ia para a imprensa, né? A minha vingança foi a seguinte: eu saí na boa, de bem com todos no clube e o Cavalcanti foi posto para a rua, saiu numa podre.”
Catimba deixou o Vitória em 1975 para jogar pelo Guarani de Campinas, onde permaneceu até o fim do primeiro semestre de 1977, disputando a posição de titular com Campos e Flecha.
A breve passagem pelo Guarani não foi bacana. Quando saiu do Vitória, já estava marcado como craque “bandido” por conta das insinuações da imprensa. “A fama nunca casou com a realidade […] Agora, existe um ponto em que não vou mudar nunca, por mais que me chamem de bandido. É na minha maneira de encarar um jogo. Sou catimbeiro mesmo. Recebo e dou, danço conforme a música. Ou você vai me dizer que do jeito que os beques estão entrando, o futebol está fácil para o atacante?”, defendia-se.
André, nos 12 meses em que lá esteve, foi expulso de campo três vezes. Em um jogo contra o Corinthians, apanhou muito da defesa rival. Catimba cansou de levar pontapé e foi à forra. Numa bola alta, saltou com o zagueiro Darci e deu-lhe uma cotovelada no rosto.
Abriu-se a roda em torno de Catimba, que levou socos e pontapés de todos os lados de indignados e “justiceiros” corintianos.
No dia seguinte, a imprensa desceu outro tipo de “sarrafo”: o moral.
De um inofensivo “faixa-preta de caratê” à maledicente alcunha de “marginal” e “bandido”. Isso tudo estampou as páginas dos jornais do dia seguinte ao embate entre Guarani e Corinthians.
Naquele ano, o “Bugre” começava a montar o grande time que seria campeão nacional do ano seguinte, mas sem André, que, após marcar 11 gols no Campeonato Brasileiro de 77, seguiu para o Grêmio para participar do inesquecível time da conquista do estadual de 1977, sob o comando de Telê Santana.
João Saldanha, como lembrou o repórter Divino Fonseca, emitiu um dos mais efusivos elogios à diretoria do Grêmio, que acabara de contratar Catimba: “Acertaram”. Para o “João Sem Medo”, o atacante era de “primeira categoria” e faria os torcedores muito felizes.
O visionário Saldanha estava coberto de razão. André entrou para a história do Grêmio por ter assinalado o gol do tão esperado título de 77, no dia 25 de setembro, que encerrou a primazia do Internacional de Falcão, Batista e companhia.
O lance foi inesquecível. Iúra vê André livre pela meia esquerda e passa a bola para ele. O atacante segue desembestado em direção ao arco do goleiro Benítez, que sai crente que Catimba chutaria de canhota, cruzado e rasteiro. O centroavante fez justamente isso, mas com o pé direito, tirando Benítez da jogada.
Mas, durante a comemoração do gol, por pouco o centroavante não sofreu uma grave lesão. Durante um salto acrobático, sentiu a virilha e desequilibrou-se. A esquisita comemoração quase o deixou com seqüelas na coluna. Mas não seria isso que o tiraria dos gramados.
“Que coisa ridícula. Veja só, eu tinha marcado três gols em todo o campeonato e todo mundo só falava nisso. Aí, marco o gol mais importante, o supergol, o gol que vai ser lembrado toda vez que se contar a história desse título. E me acontece uma coisa daquelas. Mas tudo bem: bandido é isso mesmo.”
O jornalista e escritor Eduardo Bueno recordou aquele dia em que Catimba fez a alegria do tricolor gaúcho e dele, do próprio Bueno, que, por cobrir o jogo como repórter, comemorou o gol de André de forma contida, “só por dentro, claro”: “Ao mergulhar no turbilhão da festa tricolor, dou de cara com quem? Com o grande, o notável, o espetacular Gilberto Gil, todo de azul. Ele está abraçado ao seu conterrâneo André, o bom baiano, o maluco beleza, o herói do jogo, o autor do golaço do título. Chego junto e pergunto:
— Oi, Gil. O que está fazendo aqui? Veio cumprimentar André?
— Sim, sou amigo de André — diz ele. — Mas vim mesmo porque sou gremista.
— Verdade? E por que um baiano como você é gremista?
— Ora, sou gremista — rebate ele, de sem-pulo — porque o céu é azul, a paz é branca e eu sou negro!
Ídolo e amigo de Gilberto Gil, Catimba ainda jogou pelo time de coração do intérprete da MPB e ministro da Cultura do governo de Luiz Inácio Lula da Silva até 1979 para levantar o estadual do mesmo ano para o Grêmio.
No mesmo ano em que conquistou o seu último campeonato estadual para o Grêmio, defendeu o Bahia e, em 1980, jogou alguns meses pelo Argentino Juniors, clube que acabava de lançar para o mundo o genial Diego Armando Maradona. Cansado do preconceito que sofria em Buenos Aires, retornou ao Brasil no mesmo ano para jogar pelo Pinheiros, do Paraná, mas acabou expulso de campo três vezes em sete jogos e colocaram seu passe à venda, em julho.
Mas Catimba permaneceu mais um tempo no clube paranaense.
Em franco final de carreira, começou a peregrinar por clubes de norte a sul do país. Por empréstimo, o Pinheiros cedeu seu passe ao Comercial de Ribeirão Preto [1980/ 81]. De lá, foi para o Náutico — onde jogou durante poucos meses entre 1981 e 82. Em seguida, surgiu o interesse do Ypiranga, onde iniciou a carreira. Lá, permaneceu de 1983 a meados de 84. A estação final seria o Fast Club, do Amazonas, com o qual rompeu contrato em dezembro de 1984, mas em junho de 1985, o modesto time da Associação Bancários de Bahia, o ABB, acabara de subir para a primeira divisão do Campeonato Baiano. Para montar um time competitivo, chamaram André Catimba. O time esteve mal das pernas e Catimba decidiu deixar os gramados. Mas não definitivamente o futebol. Antes, porém, precisou ganhar a vida nas ruas da capital baiana como motorista de táxi (teve três carros) até iniciar a carreira de treinador das categorias de base do Ypiranga, de Salvador.
A carreira de técnico engrenou de vez ao assumir o comando do Vitória durante o Campeonato Baiano de 1989, no dia 11 de maio, em um empate de 2 a 2 com o Atlético da Bahia. Como era interino, saiu do cargo, mas retornou após alguns jogos. Das 34 partidas do Vitória no torneio, Catimba comandou a equipe em 10. Prevaleceu o “pé-quente” de André. O Vitória foi campeão. Na competição do ano seguinte foi mantido técnico nos sete primeiros jogos, quando os cartolas do Vitória o substituíram por Carlos Gainete. André Catimba, junto com Arturzinho e Agnaldo Liz, faz parte do seleto grupo de rubro-negros que conquistaram o título de campeão baiano pelo Vitória como jogador e como treinador. Mas Catimba saiu do clube muito magoado com os cartolas do Vitória. Decepção da qual nunca conseguiu se livrar, embora o ex-craque tivesse a alegria como marca indelével de seu caráter. E não é para menos a tristeza. Por duas vezes, mesmo portando uma carteira de acesso livre ao clube, foi barrado duas vezes no estádio do Vitória. Um péssimo exemplo de como os clubes brasileiros, em sua maioria, trata seus ídolos. Até 2011, o grande craque do passado, trabalhava em uma empresa de demolição de prédios, em Salvador. Longe da bola, mas perto da família, como a qual sempre contou nos momentos mais difíceis da carreira.
Mas Catimba é sinônimo de festa. Com seu estilo incomparável, escreveu sua brilhante trajetória com a bola. Sempre muito bem humorado, nos áureos tempos de jogador, costumava rir às gargalhadas sobre sua fama de “bandido” da bola. “Será pela minha cara? Não pode ser. Minhas crianças, quando me vêem, vêm correndo me beijar”.
André, que também era chamado pelos colegas de “Jacaré”, porque o sorriso ia de orelha a orelha, foi, inegavelmente, um piadista da bola. Não era, reconheçamos, nenhum parâmetro de beleza, mas, justiça seja feita ao cara: Catimba foi bom jogador e ídolo de muitos torcedores dos clubes que defendeu. Um camarada com muito bom senso, acima de tudo: “Para mim, Deus não se mete em futebol. Acredito em Deus. Mas ele só mostra o caminho. Por exemplo: ele me mostra o caminho de casa, mas se saio do treino e vou para outro lugar, é comigo, e não com ele. Futebol é um negócio sujo, meu nego. Tira Deus dessa. Começa que corre dinheiro. Depois, lá dentro, é aquela guerra. Os beques batendo, judiando, enfiando o dedo. Se o cara quer sobreviver [no futebol, evidentemente, com mais malícia e menos ingenuidade], tem de ser mau também. Eu já fui bonzinho, sabia?”.
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A biografia completa do André Catimba consta do I volume (a Letra “A”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição do querido Cesar Oliveira.
MEMÓRIAS DE UM PONTA
Quem acompanha o Museu da Pelada tem o prazer de ser brindado com belas crônicas de Zé Roberto Padilha, ex-ponta da Máquina Tricolor, Flamengo, Bonsucesso, Itabuna, entre outros. Politizado desde os tempos de jogador, o craque se formou em Jornalismo e decidiu reunir todas as suas crônicas no livro “Memórias de um ponta à esquerda”, lançado na última semana, na histórica Livraria Folha Seca, no Centro do Rio de Janeiro.
Assim como a equipe do Museu da Pelada, Zé Roberto chegou com muita antecedência. O ex-ponta trouxe de Três Rios, na mala do carro, as camisas dos clubes por onde passou e, com a ajuda de Rodrigo Ferrari, da Folha Seca, fez questão de estendê-las em um varal improvisado na Rua do Ouvidor, dando ainda mais charme para a livraria.
Com o prefácio escrito por nosso capitão Sergio Pugliese, o livro reúne 42 crônicas muito bem escritas e variadas, sobre os tempos de jogador e assuntos atuais.
– O único problema é que o torcedor não consegue separar as coisas. A capa sou eu com a camisa do Flamengo e, por isso, tenho certeza que muitos tricolores ficaram na bronca e vão boicotar o livro – lamentou o ex-jogador.
Iata Anderson, Zé Mário e Zé Roberto
Craques como Júnior e Zé Mário fizeram questão de marcar presença no lançamento e promoveram uma resenha divertidíssima na livraria. Em um determinado momento, Zé Roberto relembrou um samba que criaram em “homenagem” a Merica, o “misterioso monstro que veio de Alagoinhas, transformando o local em uma verdadeira roda de samba. As gargalhadas foram inevitáveis.
– Você tá mais maluco do que já era, né? – cornetou Júnior.
No fim da resenha, um dos maiores “carrapatos” da história do futebol brasileiro, Zé Mário não escondeu o orgulho por fazer parte daquela geração.
– Jogamos na melhor época de todo futebol mundial. Joguei contra e a favor dos melhores do mundo. Não vai existir outra geração como aquela.
ALMIR PERNAMBUQUINHO
por André Felipe de Lima
Poucos jogadores da história do futebol brasileiro renderam tantas crônicas quanto Almir Moraes de Albuquerque, ou simplesmente “Almir Pernambuquinho”. Heleno de Freitas [ex-Botafogo e Vasco] talvez rivalize com ele em polêmicas dentro e fora dos gramados, mas Almir teve um percurso incomum a ponto de promover um cisma na crônica esportiva. De um lado, como fã de sua alma digna de uma tragédia grega, Nelson Rodrigues o definia como “o divino delinquente”. Armando Nogueira, outro expoente do jornalismo, não media o verbo em relação ao ex-centroavante do Sport, Vasco e Santos. “Almir”, escreveu Nogueira, “era um caso de polícia”. O cronista chegou ao extremo de exigir em sua coluna de imprensa a prisão ou internação do atleta.
Almir era assim… Deus e o diabo encarnados em um só homem.
Restava aos adversários que se preparassem antes de enfrentá-lo, pois lá estava um guerreiro enfurecido a espera deles. Pobres daqueles que o marcavam com pontapés. O troco não saía barato. E os cartolas não ficaram fora da lista de desafetos do Pernambuquinho. Calotes e safadezas eram respondidos com furiosos desabafos.
Impulsivo. Agressivo. Era “pau puro”, como o próprio dizia. No Flamengo, a torcida o apelidou de “Almir-Raça”. Não era para menos. Um Almir tal e qual a um anjo pornográfico, como escreveu Nelson Rodrigues, seu “advogado” mais eloquente, em edição da Manchete Esportiva de 7 de março de 1959, na qual definia Almir como o “Pelé branco”: “Em tudo que se diz sobre Almir, já é difícil discriminar o que é verdade e o que é folclore. Por exemplo: — contam que Almir xinga os adversários. Então pergunto: — será o primeiro? Não me parece. O futebol jamais foi mudo, jamais exigiu do craque um silêncio de Sarcófago. Direi mais, se me permitem: — o futebol é o mais falado e o mais pornográfico dos esportes. Durante os noventa minutos, tanto os craques em campo como o torcedor nas arquibancadas rugem os palavrões mais resplandecentes do idioma. Dir-se-ia que tanto o público como o craque têm, no berro pornográfico, um estímulo vital, precioso e irresistível. E se o meu personagem xinga os adversários, não faz outra coisa senão insistir num hábito que data dos nautas camonianos.”
Ódio, amor, paixão, respeito, revolta, indiferença, companheirismo e por aí vai. Tudo da alma humana cabia quando fosse Almir a pauta. Uns o desejavam, outros o repeliam.
Prestes a chegar ao Flamengo, muitos não o queriam, mas o diretor Flávio Soares de Moura, confiando piamente na “alma” de Almir, arriscou sua própria reputação: “Eu comprei você e seu barulho, Almir. Por tudo o que você fizer vão botar a culpa em mim. Mas eu topo a parada”. Flávio, que se tornou grande amigo de Almir, nunca se arrependeu, nem mesmo após a pancadaria na final do Campeonato Carioca de 1966, contra o Bangu.
Mas houve outro jogo contra o Alvirrubro suburbano, realizado no dia 30 de outubro de 1966, em que a virilidade de Almir escoou de forma positiva. Para o gol adversário, com tudo o que tinha de direito. Inclusive lama, suor e lágrimas.
O público presente nem era tão grande. Mas os 34 mil que estiveram no Maracanã presenciaram aquele que talvez tenha sido o gol mais incrível da história do estádio. E foi de Almir, como o próprio descreveu: “Esse gol foi o mais espetacular que fiz em toda a minha carreira e mereceu até a capa dupla de um jornal francês, o ‘France Football’; foi um gol que fiz arrastando a cara na lama, me arranhando todo, num dia chuvoso no Maracanã […] A coisa começou com a cobrança de uma falta pelo nosso lateral direito, Murilo, na altura da intermediária do Bangu, quando o jogo estava 1 a 1 e devia faltar uns dez minutos para acabar. Não me lembro se quem cabeceou primeiro foi Silva ou se fui eu mesmo, mas o fato é que, após o lançamento, um de nós dois cabeceou e o goleiro Ubirajara rebateu. Acho que fui eu mesmo, porque sei que estava caído quando via bola a mais ou menos meio metro de distância e o goleiro Ubirajara, também caído, a se esticar todo para tentar agarrá-la. […] ‘ Tenho que alcançar essa bola de qualquer maneira, nem que me estraçalhe todo aqui’, pensei. […] À proporção que eu sentia a mão de Ubirajara mais perto, crescia a minha determinação. O chão se tornava mais áspero, rompia a minha carne; mas eu não podia desistir, tinha que alcançar a bola, tinha de ser mais eu. […] Com os olhos empapados de lama, a pele toda cortada pelo atrito com a terra, nem pude ver a bola ir para as redes […] a torcida do Flamengo rugiu no estádio com o grito de gol, meus companheiros de time caíram sobre mim a me abraçar e me beijar. […] Até hoje Ubirajara jura que eu só levei vantagem sobre ele porque teria tocado a bola com a mão e não com a cabeça. É desculpa de mau perdedor […] Se tivesse feito com a mão e o juiz tivesse validado o gol, eu confessaria francamente, até mesmo para gozar o Bira. Mas não houve nada disso do que ele alega: fiz aquele gol com a cabeça e o coração.”
Chovia muito naquele dia e o cronômetro já marcava 40 minutos do segundo tempo, quando Almir atirou-se de peixinho na pequena área e cabeceou com força. Caído no chão, arrastava o rosto no gramado enlameado, empurrando a bola para dentro do gol. “Almir não queria saber se o zagueiro Mario Tito, que estava chegando, iria chutar sua cabeça, com bola e tudo — só o gol lhe interessava. A foto desse gol foi parar na capa do jornal France Football”, escreveu Ruy Castro.
Almir não temperou os gramados apenas com brigas, foi, sobretudo, um vencedor. Por onde passou, conquistou títulos. Com o Vasco, um Carioca e o Rio-São Paulo, ambos em 58, pelo Santos, o bi da Taça Brasil [1963 e 64], o Paulista de 64, a Taça Libertadores da América e o Mundial Interclubes, ambos em 63.
Almir nunca se incomodou com o que publicavam ou falavam dele fora dos campos de futebol. Tinha uma contumaz dificuldade em ser comandado. Peitou técnicos “gente-boa”, como Armando Renganeschi, de quem gostava muito, e “casca-grossa”, como Yustrich. Travou diálogos nosense, alguns deles publicados pela revista Placar e em sua auto-biografia:
“— Você está bebendo, Almir? Não acha que isso pode te prejudicar no jogo de amanhã?
“Eu percebi que ele tinha chegado como amigo, fui franco:
— Olha, seu Renga, uma cervejinha me faz muito bem. Eu sinto que vou render mais quando posso tomar minha cervejinha à vontade, sem precisar esconder nada.”
Restou a Renganeschi achar graça da conversa e dar um tapinha nas costas de Almir. Já com Yustrich, um “alemão” que também gostava de bate-boca, Almir não deixou barato e sua personalidade forte intimidou o treinador.
“Nesta época eu já morava em Copacabana [na rua Leopoldo Miguez], com Belini [o dono do apartamento], Delém, Écio, Orlando. Durante a preleção, Yustrich se dirigiu a cada um dos jogadores, ora dando conselhos, ora ditando normas de comportamento. Quando chegou a minha vez, ele engrossou:
— Olha, Almir, você escolhe ou o Vasco ou Copacabana.
“Eu já estava invocado com aquela história de ele nos ter proibido de comer e beber, respondi na bucha, sem vacilar:
— Olha, seu Yustrich, já escolhi desde agora. O Vasco pra mim não existe, eu escolhi Copacabana”.
Ele era assim, duro na queda. Dizem, na malandragem carioca [a “das antigas”], que gente assim “canta pra subir” mais cedo. A velha máxima popular foi infalível para Almir, ou há melhor definição que o título da reportagem de O Estado de S.Paulo “Um tiro no bar, e Almir não briga mais”?
Morreu assassinado poucos anos após deixar os gramados, em uma briga no bar Rio-Jerez, na Galeria Alaska, em Copacabana, na madrugada do dia 6 de fevereiro de 1973, após um bate-boca [o definitivo] com o português Artur Garcia Soares. O tiro atingiu a cabeça de Pernambuquinho.
Hoje, igualmente ao contemporâneo Garrincha, o irascível craque faria anos. Faria 80 anos.
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A MAIS COMPLETA REPORTAGEM SOBRE ALMIR/ APRESENTAÇÃO HELVÍDIO MATTOS
PARTE 1/ https://www.youtube.com/watch?v=1nQL_71mC00
PARTE 2/ https://www.youtube.com/watch?v=sb6ijpJ4g9g
PARTE 3/ https://www.youtube.com/watch?v=qaQNC7eXaVo
PARTE 4/ https://www.youtube.com/watch?v=TaDlTOYh0-o
PARTE 5/ https://www.youtube.com/watch?v=cBz47DRKqmo
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A biografia completa do Almir Pernambuquinho consta do I volume (a Letra “A”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição do querido Cesar Oliveira.
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GARRINCHA, GENTE BOA, É UM INTEMPESTIVO E TRIUNFAL ESTADO DE SER
por André Felipe de Lima
O poeta Fernando Pessoa escreveu o seguinte: “O mito é o nada que é tudo”. Jung percorreu caminho parecido. Dizia ele que o mito mostra-se essencial para penetrarmos os recônditos do ser humano. O símbolo com os quais nos identificamos desenharia, portanto, quem somos na alma, possibilitando-nos identificar e compreender as “verdades” intrínsecas ao longo da vida. Ao longo da história dos homens. O mito é assim: o “nada que é tudo” que nos permite adentrar a realidade com um sorriso, com a alegria que fundamenta a arte. Garrincha é o meu mito. Jamais o vi jogar ao vivo, mas o que li e assisti em vídeo sobre ele garante-me a certeza de que ali, diante dos meus olhos, encontrava-se o mais singular e eloquente mito da história do futebol mundial. É incalculável o que se construiu a partir daquele previsível e instintivo drible para a direita, porém intransponível. Imarcável. Analogicamente, parar Garrincha seria como se alguma mão deificada fizesse parar a terra de girar. Ou seja, o fim da história. O fim do mundo, ora essa! Garrincha, decerto, jamais deixará de existir. Gira ininterruptamente e eterno como o planeta. Mané jamais nasceu ou morreu, meus caros. O impoluto Garrincha traduz, numa concepção fenomenologicamente heideggeriana, o “ser em” mais completo que brotou do nada para construir a história mais emocionante que o futebol já ofereceu ao mundo.
Outro dia, entrevistando os jogadores tchecos remanescentes da final da Copa do Mundo de 1962 — sim, aquela que o mítico Mané “ganhou” sozinho —, eles foram unânimes ao afirmar que Garrincha foi o maior dentre os maiores. Um camarada, que se dizia músico, acompanhava a delegação dos tchecos. Abordou-me e a mim mostrou um CD todo ele composto em homenagem ao Garrincha. Visivelmente emocionado, ele declarou nunca tê-lo visto jogar, mas fez do Mané o seu grande ídolo. Meu Deus, ali, diante de mim, em uma caixinha de CD, o tal “ser em” do Heidegger personificado na imagem mítica do Garrincha, para a qual jamais haverá tempo capaz de apagá-la.
O dionisíaco Garrincha sucumbiu na carne, mas na alma foi um exemplo liberto, como se fosse o Zaratustra nietzschiano. Mané ensinou-nos a felicidade. Ensinou-nos a buscarmos, sempre para frente, como se driblássemos igualzinho a ele, o gol de nossas vidas. Quando algo triste a assaltar-nos a mente tornar-se insistente, experimente-se pensar em Garrincha, no seu sorriso puro e cativante e, claro, nos seus dribles. Tristeza vai-se embora.
O poeta Carlos Drummond de Andrade sentia-se mais do povo, e portanto feliz, ao fazer de Garrincha o remédio para a melancolia: “Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”
Quantos milhares nos estádios sentiram-se Garrincha vendo-o jogar? Quantos ainda hoje sentem o mesmo apenas assistindo ao extraordinário “Alegria do povo”, sob a aguçada câmera do Joaquim Pedro de Andrade e do Barretão? Mané soube retribuir, e com humildade dizia não ser ele a alegria do povo, mas sim ser o povo a sua alegria. Suscetíveis a todas as formas de resignação, louvamos Mané.
Garrincha mostrou a todos que o futebol tem sua peculiar filosofia e que ele, Mané, fez-nos mais felizes e independentes para driblarmos. Quem um dia, quando menino, não se sentiu Garrincha? Garrincha é mais que humano. Garrincha, gente boa, é um intempestivo e triunfal estado de ser.
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ENTREVISTAS E IMAGENS DO GARRINCHA NA TV CULTURA
ENTREVISTAS E IMAGENS DO GARRINCHA NA TV RECORD
ALEGRIA DO POVO
O MARKETING É INSUBSTITUÍVEL
por Idel Halfen
Na semana que passou surgiram duas notícias envolvendo patrocinadores e fornecedores de material esportivo de clubes de futebol.
Uma se referia à troca de fornecedor de material esportivo por parte do Santos, que voltará a usar uniformes da Umbro após dois anos de parceria com a Kappa.
O fato em si pode ser considerado relativamente normal, pois troca de fornecedores costuma acontecer com relativa frequência. Nesse caso, porém, o tema exige um pouco mais de reflexão por se tratar também de uma troca de modelo de negócios, já que a Kappa atuava como uma espécie de marca própria. O artigo “Marcas próprias no esporte” – http://halfen-mktsport.blogspot.com.br/2017/05/marcas-proprias-no-esporte.html – explica como se dá esse formato e traz um comparativo em relação a outros produtos.
Apesar de nunca ter sido um entusiasta desse modelo para clubes grandes de futebol, confesso que me surpreendi com a notícia, mesmo porque ambas as partes divulgavam a todo o momento a satisfação com os resultados.
A outra notícia versou sobre o suposto atraso dos pagamentos da Carabao ao clube por ela patrocinado, o que teria sido causado pelo fato de as vendas estarem abaixo das expectativas, as quais embasam os valores do contrato e o fluxo de recebimentos.
Não creio, no entanto, que os clubes envolvidos possam ser responsabilizados diretamente pelos resultados negativos dessas operações.
No caso do material esportivo podemos dizer que havia espaço para se testar um novo modelo devido ao processo de transformação que esse mercado vem passando, onde os valores de remuneração estão sendo readequados.
Outrossim, há de se frisar que gestão de bens de consumo e de varejo não faz parte do core business dos clubes de futebol, além de requerer aportes em estrutura e em profissionais, o que não faz sentido num ambiente com limitação de recursos e outras prioridades.
Em relação ao energético parece claro que a empresa não estimou corretamente o mercado e/ou não se aprofundou o suficiente para entender que fazer um produto novo chegar ao consumidor final, ou mesmo ao varejo, carece de pesados investimentos estruturais em comercialização/distribuição e não apenas em patrocínio. A propósito, remunerar o patrocinado em função das vendas dos produtos é uma expressiva prova de desprezo aos demais componentes do composto de marketing e às ações comerciais.
Analisando os dois episódios de forma mais ampla, podemos inferir que os dois casos têm origem num problema bastante comum no mercado esportivo brasileiro: a confusão entre marketing esportivo e marketing.
Na verdade nem haveria razão para essa distinção, afinal o conhecimento e a experiência em marketing já conferem requisitos suficientes para capacitar profissionais a atuarem em qualquer ramo de atividade, inclusive no esporte.
Todavia, o mercado esportivo abriu espaço para que achassem que a miopia em marketing pudesse ser compensada através da paixão pela atividade, o que não condiz com os princípios de uma gestão inteligente.
As situações que envolvem varejo exemplificam bem esse cenário, visto que muitos dos erros cometidos pelas organizações – esportivas ou não – são frutos da incompreensão acerca das etapas e variáveis envolvidas numa cadeia de consumo.