ÍDOLO PERÁCIO FARIA 100 ANOS
por André Felipe de Lima
“O Perácio foi um dos maiores atacantes de todos os tempos do futebol brasileiro”. Como discordar de João Saldanha, o autor da frase? Perácio foi, sim, um dos melhores atacantes do seu tempo e titular da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1938, na França, quando o nosso escrete conseguiu um honroso e memorável terceiro lugar. “Meia-armador e ponta-de-lança ao mesmo tempo e dono de um dos maiores e mais poderosos chutes. Certos goleiros se abaixavam quando era de perto o negócio. Um dos monstros sagrados do futebol brasileiro de fins da década de 30 e da de 40”, completou Saldanha, que estava coberto de razão. Perácio, que tinha um dos chutes mais violentos já emanados por aqui, era parrudo. Tinha cerca de 1 metro e 80 de altura. Dividir bola com ele ou ficar diante de um pelotaço que desferia era derrota na certa.
Que o diga Planicka, lendário goleiro da antiga Tcheco-Eslováquia, um dos melhores da história, que encarou Perácio em um embate na Copa de 38. Deu-se mal, obviamente. Após uma trombada com o craque brasileiro, Planicka perdeu o rumo e chocou-se contra a trave. Resultado: clavícula deslocada.
O cartunista Ziraldo, que teve Perácio como um dos seus ídolos de infância, sempre acreditou que o goleiro tcheco morrera no lance. O fato impressionara o menino Ziraldo, que ao descobrir ser Perácio mineiro igual a ele, assumiu-se um apaixonado torcedor do Flamengo.
Perácio era tão carismático que cativava uma legião de torcedores até mesmo dos rivais do Botafogo e do Flamengo, times em que brilhou no futebol carioca. Além do poderoso chute, o meia-esquerda tinha uma velocidade impressionante. Com a bola dominada ainda na área do time que defendia, partia rumo ao gol adversário com uma fúria igual a de um touro das sangrentas corridas nas ruas de Sevilha. Essa característica singular do craque estimulou uma reflexão em Saldanha, para quem Perácio era a figura exemplar de uma nova etapa do futebol que se construía na década de 1930: a do profissionalismo, na qual, explicava o João “Sem medo”, o jogador não se resumia simplesmente a um mero futebolista, mas a algo muito mais sofisticado: “Um futebolista e atleta, formado em toda a extensão”. E Saldanha completara o raciocínio: caso um jogador do período amador ousasse uma carreira como as que praticava o Perácio, cairia morto de cansaço. Perácio cansava também, mas bem menos. Tinha força e fôlego de sobras.
Perácio era analfabeto. Ou quase isso. Recebia cartas de torcedores e torcedoras apaixonadas, mas quem as respondia para ele eram os companheiros. Foi assim no Botafogo e no Flamengo. Seu bom humor era contagiante. Protagonizou várias histórias das mais engraçadas do anedotário do futebol brasileiro. Algumas realmente aconteceram, outras, porém, não. Cabia a crônica esportiva inventá-las. Perácio ria das histórias que narravam sobre ele e, para não contrariá-los, confirmava todas.
Uma delas, e essa dizem ser realmente verídica, nasceu da vaidade de Perácio, que se deliciava com as vozes dos locutores gritando “Gooool do Perácio!”. Era dia de mais um jogo no qual o artilheiro sabia que faria gols.
O goleador gostava de carros do ano. Teve a “brilhante” ideia de municiá-lo com um rádio possante para ouvir o grito do locutor. Não haveria nada demais na situação se ela não fosse para lá de surreal. Ora, Perácio estacionara o carro perto do estádio e deixara o rádio no volume máximo na esperança de que, de dentro do campo, pudesse ouvir a narração trepidante do gol que viesse a marcar. Balançou a rede mais de uma vez, e nada de ouvir o grito do locutor. Perácio estava inconformado e lamentou para um companheiro de time: “Não adianta. Comprei o rádio errado”.
Outra famosa história ocorreu com Martin Silveira, volante da Seleção Brasileira nas Copas de 34 e de 38 e companheiro do Perácio no Botafogo. Dirigindo seu possante, o goleador virou-se para o Silveira, que o acompanhava, e disse: “Tenho de botar gasolina”. Pararam no primeiro posto que encontraram pelo caminho. Enquanto o frentista enchia o tanque, Perácio, na maior calma zen, tirou um cigarro do maço guardado no bolso, acendeu-o e jogou no chão o fósforo ainda aceso e bem próximo do combustível.
Martin Silveira quase foi à loucura e, aos berros, chamava o Perácio de irresponsável e de outras coisas impublicáveis, naturalmente. Perácio manteve-se sereno diante da revolta do já descabelado amigo: “Por que esse ataque?”, indagou Perácio. “Onde já se viu riscar fósforo num posto de gasolina?”, rebateu o raivoso Martin Silveira. A resposta do Perácio foi mais insólita que a situação em si: “Desculpe, Martin. Eu não sabia que você era tão supersticioso.”
Embora jamais tenha sido campeão com o Botafogo, Perácio gozava de muito prestígio, especialmente entre os cartolas do clube, que sabiam da paixão do jogador pelos carrões da época, sobretudo as conhecidas “baratinhas”, modelo esporte que encantava nas corridas automobilísticas conhecidas como “Circuito da Gávea”, que fez muito sucesso no Rio entre os anos de 1930 e 1940. Diz a lenda que Perácio queria uma daquelas “baratinhas”. Teria pedido-a aos dirigentes do Botafogo. Isso por volta de 1939. O mimo pesaria no bolso do clube, mas valeria à pena presentear Perácio, porém com uma condição: que ele garantisse a vitória do time contra o rival Flamengo. Não deu outra: Botafogo 3 a 2, em São Januário. Dois gols do Perácio e o carro na garagem. Se a história da “baratinha” é mito, não se sabe, mas os gols do Perácio contra o Flamengo foram bastante verossímeis.
Um dos maiores ídolos do nosso futebol, Perácio faria 100 anos nesta quinta-feira, 2 de novembro. Batizado José Ferreira Lemos, o craque do passado nasceu em 1917, na mineira Nova Lima. Lá mesmo, na terra natal, começou a jogar bola e tornou-se um dos principais nomes do fortíssimo Villa Nova, que desbancara o antigo Palestra Itália [hoje Cruzeiro], Atlético e América. Perácio e os seus inúmeros gols foram decisivos para o alvirrubro conquistar um estupendo tricampeonato estadual em 1933,34 e 35.
Ficara famoso. Tão famoso que o rival Palestra Itália o levou para Belo Horizonte. Permaneceu pouco tempo por lá. Seguiu para o Fluminense, mas sequer conseguiu mostrar no cube do bairro das Laranjeiras que haviam contratado um craque. O destino de Perácio seria outro bairro carioca.
No Botafogo, aí sim, Perácio começou a se tornar popular. E como. Chegou ao alvinegro de General Severiano em 1937 deixando o Botafogo somente em 1940, quando se transferiu para o Canto do Rio antes de seguir para o Flamengo, clube com o qual, enfim, voltaria a ser campeão. Saiu do Botafogo bastante magoado com os dirigentes alvinegros, especialmente João Lira Filho. Acusava-o de tê-lo perseguido e vendido seu passe por uma ninharia para um clube pequeno. “Então, eu que já não escondia o meu entusiasmo por Perácio, pedi sua contratação, tratando de adaptá-lo ao novo sistema. Largado às feras, no Canto do Rio, não foi difícil a realização do negócio. Os resultados foram melhores do que se esperava. Em pouco tempo, Perácio se tornaria o ídolo da equipe com suas fintas alucinantes, seus rushs irresistíveis e seus petardos indefensáveis”, disse Flávio Costa, técnico do Flamengo de então.
No clube da Gávea, Perácio viveu, talvez, os momentos mais bacanas na carreira. Ao lado de uma legião de craques, entre os quais se destacam Domingos da Guia, Pirillo, Zizinho, Biguá, Modesto Bria, Jayme de Almeida e Vevé, o artilheiro ajudou ao Flamengo na conquista do seu primeiro tricampeonato carioca, em 1942, 43 e 44. Perácio poderia ter sido ainda mais valioso para o Flamengo quando lá esteve não fosse a Segunda Guerra Mundial. O craque foi convocado na reta final do campeonato de 44 para integrar a Força Expedicionária Brasileira em front de batalhas na Itália.
Encerrou sua carreira no Canto do Rio, onde jogou até 1951. O alegre e carismático Perácio trocou o Rio por São Paulo, onde passou a trabalhar como motorista de lotação. Anos depois chegou a manter um restaurante na Praia Grande, em Santos, e uma pequena fazenda em Uberaba. Nos últimos anos de vida, era funcionário do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
Perácio, que na reta final da vida morava na rua Farani, nº 3, em Botafogo, morreu no Hospital dos Servidores Público do Rio, no dia 10 de março de 1977, após sofrer durante um ano com um câncer no pulmão. Estava casado há apenas alguns meses com Wanda e tinha quatro irmãs: Raimunda, Malvina, Efigênia e Lídia. “Ele era capaz de tirar a camisa do corpo para ajudar alguém. Sua casa sempre foi aberta aos amigos, a quem emprestava tudo o que tinha, até o que não podia”, recordara Efigênia.
O craque era uma alma realmente generosa e feliz. Fez da alegria marca registrada desde a infância, período em que dava muito trabalho aos pais. Era um menino levado. Uma vez, levou uma surra homérica porque abrira a gaiola do viveiro de pássaros do pai. Para cada vidraça quebrada da janela dos vizinhos, a mãe o obrigava ir à rua vestido com uma camisola. Os amigos faziam troça dele. “Naquele tempo somente duas coisas me fascinavam verdadeiramente: ir ao cinema e quebrar vidraças”, dizia sempre com um largo sorriso no rosto. Vê-lo sisudo era um fato raro.
Como escreveu o jornalista Márcio Guedes, quem o conhecia, não tinha dúvidas: Perácio era mesmo a alegria em pessoa. Se o abordavam sobre as histórias que dele contavam, soltava uma sonora gargalhada e confirmava todas, mesmo as inventadas. Para ele, a vida só tinha sentido com bom humor. Perácio, como diz um título de uma reportagem sobre ele, era a “Criança grande do futebol brasileiro”.
***
A biografia completa do Perácio consta da enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, cujos dois primeiros volumes (letras “A” e “B”) serão lançados em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição do querido Cesar Oliveira.
QUERO XIXI!!!
:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::
(Foto: Marcelo Tabach)
Estamos em tempos de Fla x Flu, um clássico que já mobilizou a cidade e lotava o Maior do Mundo! Jorge Curi narrava um tempo e Waldir Amaral o outro, e quando terminava o jogo ele sempre repetia “está deserto e adormecido o gigante do Maracanã…”.
Podia pó de arroz e a galera da Geral recebia xixi na cabeça. “Que nojo!”, dirão alguns. Façam uma pesquisa para ver se a rapaziada não está disposta a voltar a enfrentar aquela chuva amarela, kkkkkk!
Eu quero é xixi!!! Era bom ver aqueles torcedores fantasiados, todos misturados. No jogo, dava para identificarmos os câmeras do Canal 100 registrando tudo. Duas semanas depois íamos ao cinema para nos ver lá. E era lindo!
Hoje, o Maracanã virou arena e sua capacidade reduziu drasticamente. Hoje o atacante que parte para dentro virou jogador agudo, o lateral virou jogador de lado de campo, o cabeça de área virou volante, é ocupação de espaços, leitura de jogo, cara da bola, orelha da bola, o 10 virou 67, o 11, 98 e o 7, 42. Acabaram as preliminares e com ela a chance de acompanharmos a nova geração surgindo.
O futebol acabou, PC? Costumam me perguntar provocativamente. Se 10 homens correndo atrás de uma bola é considerado futebol ele vai durar para sempre. O futebol está mais chato, só isso. E mais caro, bem mais caro. A cara da torcida mudou e os banguelos e nordestinos flagrados pelos câmeras do Canal 100 perderam espaço, foram banidos.
O grito dos torcedores atuais não contagia talvez porque o futebol apresentado não desperte maiores emoções. É como responder quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha?
Há alguns dias em uma entrevista com quatro jogadores da seleção brasileira sub17, que perdeu para a Inglaterra, sobre quem eram seus ídolos, três responderam Cristiano Ronaldo e um, Iniesta.
Isso é triste, muito triste. Pela tevê, assisti ao último Fla x Flu e não sei dizer quantos torcedores haviam ali porque para mim, há tempos, o Maracanã está deserto e adormecido.
NINIMBERGUE, O ÍDOLO IMPROVÁVEL
por Rodrigo Ancillotti
Ser botafoguense nunca foi tarefa fácil!! Ok, pode parecer exagero se levarmos em conta a Gloriosa História (assim mesmo, em maiúsculas) do Botafogo de Futebol e Regatas, mesmo com nosso eterno pessimismo e vocação para a tragédia, como dizia Nelson Rodrigues.
Mas a década de 1980… Ah, os anos 80…
Flamengo multicampeão com o esquadrão de Adílio, Nunes, Zico, Tita e Lico; o Vasco de Roberto Dinamite, único time capaz de fazer frente àquele Flamengo no começo da década; o Fluminense construindo o time que seria tricampeão estadual e campeão brasileiro; o Bangu de Marinho e “seo” Castor de Andrade sempre se destacando, assim como América, Campeão dos Campeões; e o Botafogo…
Mas e o Botafogo??
Pagava uma severa conta de administrações terríveis de gente do naipe de Charles Borer, delegado da repressão militar que entendia tanto de futebol quando de democracia. Estava exilado no distante bairro de Marechal Hermes após perder a sede de General Severiano, e parecia a cada ano mais “apequenado” que nunca. Vivia uma seca de títulos que já durava desde 1968 (que só terminaria no Ano da Graça de 1989, mas isso é tema de outro texto…), e sua Gloriosa Torcida, cada vez mais sofrida e achincalhada, precisava aturar, ano após ano, os adversários cantarem um constrangedor “Parabéns pra Você” a cada jogo.
Mas ano após ano, a centelha de esperança surgia, e a Gloriosa Torcida sempre buscava um “salvador”, aquele que reconduziria o clube às glórias, e não era diferente naquele ano de 1983. A esperança tinha nome incomum e futebol de “gente grande”: ao amazonense Ninimbergue dos Santos Guerra, ou simplesmente Berg.
Berg chegou ao Botafogo após o Brasileirão de 1983, onde se destacou pelo Rio Negro de Manaus. 20 anos recém-completos, mirrado (1,71m de altura) e cabelos loiros encaracolados característicos, era habilidoso, rápido e bom finalizador, e podia jogar tanto como autêntico ponta-de-lança, armador ou ponta-esquerda. Chegava para suprir a ausência de Mendonça, que saíra meses antes pra Portuguesa de Desportos após anos liderando times que chegavam perto, mas morriam na praia.
Não seria mesmo em 1983 que a maldita fila terminaria. Apesar de bom jogador e ter companheiros como Josimar, Alemão, Nunes e Geraldo ao seu lado, aquele era o Botafogo que fazia brilhantes clássicos no domingo e perdia contra adversários minúsculos na quarta-feira. Mas foi num desses clássicos que um menino de seis anos (o narrador que vos fala) foi conquistado pela Estrela Solitária.
Dia 14 de agosto de 1983, domingo Dia dos Pais, Botafogo x Flamengo no Maracanã. Flamengo já sem Zico (que partira pra Udinese pouco antes) e ainda brigando pelo título da Taça GB contra um Botafogo já fora da parada. E foi nesse dia que Berg caiu nas graças a Gloriosa Torcida: uma assistência para Geraldo marcar o segundo gol, e um chutaço no canto de Raul pra fechar o placar naquele improvável 3×0 para o Botafogo. Nascia mais um ídolo improvável.
Os anos foram passando, a fila aumentando, e o futebol de Berg se sobressaindo em elencos medíocres que sempre ficavam pelo caminho. Mas foi justamente quando atingiu o seu auge técnico que a tragédia o abateu duramente.
Para variar, o Botafogo ficou longe do título da Copa União de 1987 (terminou em nono lugar entre 16 clubes), mas Berg jogou como nunca num time que tinha jogadores mais badalados como Maurício, Éder Aleixo e Vágner Bacharel. Jogando o fino, conquistou a Bola de Prata da Placar como melhor ponta-esquerda do Brasil, desbancando jogadores como Zinho, Edivaldo, dentre outros. Parecia que 1988 seria em que Berg lideraria o Glorioso rumo ao sonhado título.
Mas o destino pregou uma de suas peças mais injustas…
Durante as férias, numa pelada de Showball na Europa, Berg arrebenta os ligamentos do joelho e fica praticamente dois anos afastado dos campos. Fica fora do time justamente naquele que seria o Ano da Redenção Alvinegra: praticamente não jogou durante o campeonato de 1989, e assistiu Maurício se eternizar marcando o gol do título contra o mesmo Flamengo que o consagrou em 1983.
Berg jogou algumas partidas na campanha do bicampeonato de 1990, mas a barração na finalíssima contra o Vasco marcou sua saída do Botafogo que tanto amava após sete anos. Rodou por Cerro Porteño (PAR), Atlético Paranaense, Americano de Campos, uma volta relâmpago ao Glorioso em 1993, e América (SP), até falecer de infarto durante uma pelada nas férias (outra pelada nas férias!!!) em julho de 1996. Tinha apenas 33 anos.
Mas a imagem que ficou naquele garoto de seis anos que insistia em dizer que “gostava de Zico” é do moleque loiro calando a torcida do Flamengo naquele agosto de 1983.
É O DUNGA, VAI ENCARAR?
por André Felipe de Lima
Nenhum outro jogador de futebol passeou pelo inferno das críticas vorazes e depois galgou ao céu das Copas do Mundo da forma como protagonizou Carlos Caetano Bledorn Verri. Foi considerado o culpado pela pífia campanha do Brasil na Copa de 1990, na Itália, quando o seu nome serviu para definir uma “Era” fracassada do futebol brasileiro. Convenhamos, uma grande injustiça com o cidadão Carlos, que quatro anos depois ergueu como capitão da Seleção Brasileira a Copa do Mundo nos Estados Unidos. A controversa personagem construída ao longo da carreira permanece viva até hoje. Porém o capitão do Tetra de 94, que foi um jogador capaz de despertar raiva e ao mesmo tempo respeito nos torcedores e jornalistas, é o mais verossímil sinônimo de um guerreiro em campo. Um gladiador das canchas futebolísticas. Dunga é histórico para o futebol brasileiro, e isso não se questiona.
O ato derradeiro da carreira dele como jogador foi salvar do rebaixamento no campeonato brasileiro, em 1999, o Internacional, clube em que começou a carreira, com um gol nos últimos minutos do último jogo da dramática campanha colorada. Um herói da garra.
Nascido em Ijuí, no interior gaúcho, no dia 31 de outubro de 1963, Dunga cresceu com pouco, mas bastante feliz ao lado dos pais Edelceu e Maria. Deleitava-se com uma mistura exótica que considerava sua sobremesa favorita: Fanta Uva com chocolate Diamante Negro. Uma guloseima “inventada” por ele, aparentemente banal, mas considerada um luxo para quem teve muito pouco quando criança. O pai trabalhava duro o dia inteiro na Prefeitura de Ijuí e após o expediente vendia bilhetes de loteria para engrossar a renda. A mãe era professora e sempre estudou. Da casa quem cuidava eram os filhos. Cabia ao Dunga varrer o chão e lavar a louça. No colégio, um tanto preguiçoso, contudo. Matar aula representaria um puxão de orelhas da mãe, e na frente dos colegas para aprender a lição. Não havia refresco para Dunga. A disciplina e o jeitão exigente, o de general dos gramados, talvez tenham vindo dessa fase infanto-juvenil.
Quem o levou para o Internacional foi o padrinho Perondi. Mas Dunga tinha tudo para parar em outros clubes gaúchos. Edelceu foi jogador do antigo Cruzeiro de Porto Alegre e o tio Marimba jogou pelo Grêmio, na década de 1950. Mas os auspícios indicavam outro caminho para o garoto. Aos 15 anos, Dunga foi treinar no Beira-Rio. E, por incrível que pareça, como meia-atacante. “Era um menino pesado, de pernas grossas e curtas [daí o apelido, Dunga]. Não acreditei nele, mas estava errado. Ele pode até não ter sido um craque, mas jogava com a cabeça, é disciplinado, um vencedor”, disse Perondi à brava repórter Mirelle França.
Em 1983, Dunga subiu ao time principal e passou a condição de volante de contenção, treinado por Abílio dos Reis. E tinha de ser mesmo titular do Inter, afinal, Dunga foi campeão mundial de sub-20, no México, naquele mesmo ano. Um time que apresentou uma geração ao futebol brasileiro que ninguém mais esqueceria. Bebeto, Jorginho, Geovani, Mauricinho… um time verdadeiramente talentoso e que já havia conquistado o sul-americano da categoria. No mesmo ano, Dunga foi medalha de prata nos Jogos Pan-Americanos e em 84 pendurou no pescoço a medalha de prata durante as Olimpíadas de Los Angeles. Sem contar o bicampeonato gaúcho, em 1983 e 84. Todas essas conquistas ainda em início de carreira o credenciaram para uma aventura em algum clube milionário da Europa. Foi aí que surgiu a Fiorentina.
Os italianos contrataram Dunga, mas o emprestaram ao Corinthians, onde seria vice-campeão paulista. O volante, De León e o centroavante Serginho acabaram repassados ao Santos. Na Vila Belmiro, Dunga permaneceu de 1985 a 86. Mas foi em 1987, no Vasco, que o jogador presenciou um ano especial. Com clube carioca, foi campeão estadual, em um time que contava com Geovani, seu ex-companheiro do Mundial de juniores de 83, e Mazinho.
Após a passagem por São Januário, Dunga embarcou de vez para a Europa. Na Itália, defendeu o Pisa e, em seguida, a própria Fiorentina, por onde ficou durante cinco anos, período em que foi vice-campeão da Copa da Uefa na temporada 1989/90 e cultivou um interesse especial sobre arte e cultural italianas, principalmente após a passagem por Florença. Dunga é capaz de destrinchar toda a vida dos Médici com a mesma facilidade com que desarmava um atacante desavisado.
O meia jogou também pelo Pescara e foi assediado pela Juventus, mas a negociação nunca foi concretizada. Em 1993, conheceu o futebol alemão, atuando pelo Stuttgart. Dois anos depois, aventurou-se no rico futebol japonês, porém em fase de estruturação. Dunga defendeu o Jubilo Iwata e conquistou o título nipônico de 1997. Mais até. A temporada no Japão proporcionou o contato com flores e plantas, um hobby com o qual Dunga convive até hoje para manter-se calmo.
Tanto tempo fora de casa, Dunga sentiu necessidade de voltar. Mas voltar para o seu Rio Grande do Sul. Ao seu Colorado. Em 1999, ele desembarcou em Porto Alegre, mas nem deu tempo de matar as saudades porque no final do ano deixou o clube, apesar de a diretoria confirmar que Dunga teria assinado um contrato de dois anos. Sem traumas, Dunga deixou o Beira-Rio de bem com a torcida. Foi dele o gol “redentor” contra o Palmeiras, que livrou o Inter da segunda divisão do campeonato brasileiro.
Se a história do craque com o Inter é mágica, com a seleção brasileira, então, nem se fale. Já havia mostrado nos escretes de juniores e de novos que era líder e tinha pé-quente. Estreou na seleção principal em 1986 sob a intervenção de Jair Pereira. Em 1989, a consagração. As gerações de Bebeto, Dunga e Jorginho, alinhada com a de Romário, foi campeão da Copa América de 1989. Há 40 anos que o Brasil não erguia o tradicional troféu.
Tudo indicava que estávamos diante de um punhado de craques que acabaria também com o jejum em Copas do Mundo. Veio 1990 e com ele a Copa na Itália. No comando da seleção, Sebastião Lazaroni, treinador que papou vários campeonatos cariocas, por Vasco e Flamengo, na década anterior. Lazaroni usava um discurso empolado, prolixo pra caramba. Ninguém deve ter entendido patavina na concentração e o Brasil acabou eliminado pela Argentina nas oitavas-de-final, após um “apagão” na defesa brasileira que propiciou a arrancada de Maradona, sem que Dunga conseguisse alcançá-lo, e o gol de Caniggia.
Aquela geração — sobretudo o fiasco na Itália — ficaria marcada como a “Era Dunga”, expressão que por quatro anos serviria para se referir a um grupo de jogadores injustamente qualificado como sem talento. Um momento do futebol nacional que virou sinônimo de futebol feio.
Deixe estar. O mundo não acabaria ali, diante da milonga dos hermanos e da água suspeita oferecida pelos argentinos em campo e ingenuamente bebida pelos jogadores brasileiros. Depois da decepção de 90, Dunga só reapareceu nas convocações em 1993, ano das Eliminatórias, sob o comando de Carlos Alberto Parreira. O Brasil se classificou com certa dificuldade e o time era considerado pouco inspirado e retranqueiro. Porém, no Mundial, Dunga tornou-se capitão da equipe, com Raí, o mais badalado do time ao lado de Romário, barrado por Parreira.
A Copa de 94 acabou e foi ela a tradução mais fiel do que representava a “Era Dunga”. Mas reconheçamos naquela seleção algo quase sobrenatural. Algo, digamos, envolto em um salutar carma coletivo. Foram campeões mundiais juntos desde as divisões de base. Dunga é um predestinado.
Acabou a Copa como o jogador que mais desarmou jogadas e ainda mostrou bom futebol na distribuição de passes. Fez, por exemplo, um lindo lançamento para Romário marcar contra Camarões. Após a vitória contra a Itália, na disputa por pênaltis, Dunga ergueu a taça e gritou “Isso é pra vocês, seus traíras”, em desabafo justo, convenhamos. Afinal, carregar nos ombros um fardo por conta de um desatino coletivo quatro anos antes não era para qualquer um. Era, sem trocadilhos, somente para um jogador como Dunga, que teve outro momento feliz, vencendo a Copa América de 1997, na Bolívia, a primeira conquista brasileira de um sul-americano fora do país.
Já com 34 anos, Dunga foi titular da Copa de 1998, na França. Apesar de desorganizado, o time tinha um elenco forte e avançava rumo à final. Contra Marrocos, o Brasil venceu por 3 a 0, mas Dunga perdeu as estribeiras, discutiu com Bebeto e deu-lhe uma cabeçada.
A seleção chegou à final contra os donos da casa. Como se o destino não quisesse que aquela equipe fosse campeã do mundo, um episódio até hoje mal explicado marcou a tarde do jogo. Ronaldinho sofreu convulsões antes da escalação oficial e Edmundo foi anunciado como titular. Mesmo assim, Ronaldinho entrou em campo, mas o Brasil parecia completamente aturdido. O jogo terminou 3 a 0 para a França de Zidane. Dunga jogou ao todo 18 partidas em Copas do Mundo. É, indiscutivelmente, um dos nomes mais singulares de toda a história do futebol brasileiro.
Após a Copa dos franceses, Dunga não voltou mais à seleção. Mas nem por isso abateu-se. Não precisava provar mais nada a ninguém. Continuou jogando a sua bolinha e mostrando o caráter ímpar que sempre o envolveu.
Ao receber 372 mil reais pela rescisão com o Internacional, doou o dinheiro a instituições de caridade que amparam crianças. Alegou que sempre ganhou dinheiro trabalhando. “As coisas que adquiri em minha vida foram sempre conquistadas com trabalho, com meu esforço. Então, se não trabalharia, por causa da rescisão, o correto seria deixá-lo de lado. Como profissional, é legal e moral. Mas, como homem, não poderia aceitá-lo […] achei melhor doá-lo para uma instituição em que geraria muito mais alegria”. Dunga, que já havia sido o precursor de uma campanha entre os jogadores para ajudarem o Instituto de combate ao Câncer, decidiu terminar o segundo grau e continuar estudando. Como muitos outros craques de sua geração, mantém um projeto social denominado Esporte Clube Cidadão, na Restinga, bairro da periferia de Porto Alegre, que atende cerca de 400 crianças.
Estava tranqüilo, na sua residência em Ipanema, bairro de Porto Alegre, cuidando de seu jardim e conversando com os amigos vizinhos em meio a rodadas de chimarrão, quando mais uma vez o destino lhe reservou uma missão. O predestinado Dunga teria de recuperar o prestígio da seleção brasileira abalado após a desastrosa campanha na Copa do Mundo de 2006, na Alemanha.
Em 24 de julho de 2006, Dunga assumiu o cargo de treinador do escrete canarinho. Mesmo inexperiente na função, chegou por causa da fama de brioso. Choveu crítica de todos os lados. As estrelas Ronaldinho Gaúcho e Kaká pediram dispensa do time na Copa América de 2007, que aconteceu na Venezuela. E o velho Dunga, verdadeira madeira de jequitibá, duro, impávido, resistiu às críticas mais pusilânimes, que implicavam até com a sua roupa, cujos modelos foram criados pela sua filha Gabriela Verri. Dunga aguentou tudo. Era como se o fantasma da injusta “Era” que lhe atribuíram estivesse o rondando. O ex-craque respirou fundo, olhou para frente e liderou, mesmo que do banco, Robinho e cia. durante a campanha da Copa América. Parecia o grande capitão de 94 em cena. E era mesmo. Brasil campeão e novamente com o general Dunga, que também lideraria a seleção, primeira colocada nas eliminatórias, à Copa de 2010, na África do Sul.
O Mundial foi, contudo, uma experiência incômoda para o ex-craque. Envolveu-se em várias polêmicas na África do Sul. Muito pressionado pela imprensa e opinião pública quanto à confiabilidade do time, Dunga chegou a desrespeitar Alex Escobar, jornalista da TV Globo, durante uma coletiva com a imprensa. A missão de Dunga como treinador da seleção parou na Holanda, que eliminou o Brasil da Copa após virar o jogo para 2 a 1.
Dunga foi crucificado, como fora Telê Santana, em 1982 e 1986. Mas guerreiros dão a volta por cima. E a história de Dunga prova isso.
***
A biografia completa do Dunga consta do IV volume (a Letra “D”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição do querido Cesar Oliveira.
OS GOLS E OS AMORES DE BISCOITO
por Marcelo Mendez
Falemos aqui de Biscoito…
Minha história com Biscoito começou a primeira vez que o vi em campo em Mauá, vestindo a camisa 2 do Dínamo no campo do Juá, também em Mauá. Era um domingo de sol pleno. O jogo marcado para as onze horas do impiedoso horário de verão castigava as peles que ali se encontravam e o jogo não era dos melhores.
Dínamo enfrentava e perdia para bom time do Moleque Travesso de São Paulo em partida válida pela Copa Amizade. No campo, os homens de chuteiras coloridas não faziam muito pelo verso. O match era dolorosamente mal jogado quando eis que de repente, a bola, cansada de tanto viajar por meio de bicões e outras rasgadas sem muita classe, chega aos pés do lateral direito do Dínamo.
O trajeto feito pela pelota é sofrido. Por entre buracos e touceiras de mato, ela quica até o lado irregular do campo do Juá. Para no pé direito que a apara e então surge Biscoito. Sem muito esmero ele a domina. Não tem pela bola o carinho e a intimidade dos craques ao tratá-la mesmo assim ela fica. Biscoito para, olha pra cara de seu adversário, joga a bola na sua frente e parte.
Como se não fosse haver o amanhã, Biscoito corre pela lateral do campo do Juá. Arrasta consigo a poeira, a preguiça, as teorias que de nada servem e com a força do grito de seu torcedor, chega ao fundo do campo e cruza a bola pra área. No bate e rebate, o atacante de seu time consegue recebê-la e sofrer o pênalti que empata aquele jogo e classifica seu time.
Esfuziante, Biscoito comemora entre os seus batendo em seu peito, de cara com seu torcedor. “Que sorte” – Pensei.
Fiquei com ele na cabeça até reencontrá-lo em uma semifinal da Copa Amizade em um jogo contra o Mocidade de Mauá. Seu time novamente perdia quando surge então uma falta quase do meio campo. Biscoito pega a bola e eu penso, “Vai isolar essa bola”. Quando ele bate, tal e qual um Nelinho, mete a bola no ângulo do goleiro. Uma pintura. Novamente ele classifica seu time e de novo comemora. E então veio o domingo último…
Dínamo e Guaraciaba jogavam um dos clássicos maiores da várzea do ABCD. O Guaraciaba, time campeão de Santo André, faz uma falta da entrada da área e lá vem Biscoito para cobrança. Ajeita a bola, olha para o árbitro e ao seu apito, bate na pelota mandando-a no ângulo, no trinco! Um gol que Zico assinaria. Novamente comemorou com força, com alegria, com a intensidade de mil sonhos de criança. Parecia saber que seu momento seria breve e então o aproveitou.
Ele tinha razão.
Durou até o tempo que o Guaraciaba conseguiu o empate que lhe servia e então, Biscoito não comemorou, mas seguiu firme, correu tudo que pode e ao fim do jogo não estava triste e nem poderia, por uma simples razão:
A história quando contada apenas do ponto de vista de quem sempre ganha nada mais é do que um máximo e rotundo erro.
Biscoito, além de ser mais do que apenas uma classificação ou um título, representa muito mais do que o craque pode representar. A sua insistência em contrariar o que há de lógico, o que há de óbvio e evidente, faz dele um Grande. Pouco importa se suas passadas não são longas, se seu futebol não é vistoso, ou se seu time não venceu. Às favas com essas quimeras.
Na várzea, tanto o sorriso, quanto o sofrimento, são belos desde que sejam de verdade.
Biscoito é de verdade.
Por conta disso e de outras coisas tantas quanto o verso pede, a ele vai essa homenagem minha, tão improvável quanto um de seus gols de falta.
Parabéns, amigo Biscoito!