NAS RUAS DO RIO
Parceiro e colaborador do Museu da Pelada, Alex Belchior inaugura hoje o nosso novo quadro: “Nas ruas do Rio”. O craque contará a história de monumentos, ruas, praças, estádios e espaços em geral que tenham alguma relação com o futebol.
O pontapé inicial ocorreu no calçadão de Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, onde está localizado um busto do craque Domingos da Guia. Inaugurada em 2004, em comemoração ao centenário do Bangu, a obra de arte homenagea um dos maiores zagueiros da história!
TRIBUNAIS DE PADARIA
por Zé Roberto Padilha
Em 5 de outubro de 2017, Paolo Guerero, jogador de futebol, então gripado, utilizou uma medicação para melhorar sua respiração. E ganhar fôlego para enfrentar a Argentina em busca da classificação do seu país, o Peru, para a próxima Copa do Mundo de Futebol. Jogo decisivo, segundo ele, não poderia lhe faltar uma só partícula de oxigênio parta lutar pelo seu país.
Em outubro de 2009, na Dinamarca, segundo o jornal Le Monde, Carlos Arthur Nuzman, presidente do COB, recebeu a propina de 1 milhão de euros pela compra de votos para a escolha da cidade do Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Segundo Nuzman, que não estava gripado, não poderia faltar um só corrupto a ser comprado para não perdermos esta oportunidade única de receber a festa maior do esporte. “Custe o que custar!”, afirmou.
Guerrero, que vive dos seus salários e gratificações, queria apenas, segundo ele, respirar melhor. Já Nuzman, que violou os desígnios olímpicos pregados pelo Barão de Cobertin, segundo a imprensa, e leva uma vida abastada acima dos seus rendimentos, não quis se pronunciar. Mas enquanto um acaba de ser condenado em um café da manhã na padaria ao lado (“Certamente era cocaína, disse um torcedor!”; “Logo desconfiei de tanta luta e correria”, afirmou um vascaíno), o outro, embora preso preventivamente, foi solto porque quem se interessa, nos bares e nas esquinas do nosso país, pelos rumos do vôlei, basquete, handebol, judô e natação?
Somos latinos e passionais. Capazes de convocar às pressas, nas cadeiras de uma padaria, uma sessão extraordinária para julgar um jogador de futebol. E esperar, passivamente, quatro anos para que a chama olímpica seja acesa, ilumine nossa consciência e exija exames de fezes, porque urina é pouco, dos nossos dirigentes esportivos. A questão é: quem fez falta, anteontem, no comando de um ataque para dar orgulho, não vergonha, a uma nação? Paolo Guerrero ou Carlos Nuzman?
GOL DE ARTISTA
Se a pelada for com golzinho de chinelo, uma coisa é certa: em algum momento surgirá a polêmica se a bola entrou ou não. Como a maioria dos jovens, Artur Porto estava exaurido da faculdade no último período, mas precisava entregar um trabalho de conclusão de curso para se formar em Design, na PUC-Rio, Foi aí então que precisou recorrer à grande paixão da sua vida: o futebol.
Após quatro meses de pesquisa e mais quatro de execução, sob a orientação do professor Celso Santos, o flamenguista desenvolveu um golzinho que não tombaria nem com as pedradas de Roberto Dinamite e, por conta disso, recebeu o convite para uma exposição em Dubai.
Diante de tanta intolerância entre as pessoas, Artur foi em busca de uma solução que unisse o povo e nada mais agregador do que a boa e velha pelada de rua. Como suas pesquisas de campo apontaram que os peladeiros carecem de muitas soluções de design, o jovem decidiu colocar a mão na massa.
– Procurei um produto que ajudasse a proteger e alimentar nossa marca registrada que é o futebol-arte. Ele surge, originalmente, nas peladas de rua. A ginga, o drible, a irreverência e a criatividade estão sempre presentes, mas eles jogam em condições adversas, precárias e improvisadas. Desenvolvi esse projeto pensando neles.
A fala é de quem vivenciou todas essas condições nas peladas da Rua General Glicério, em Laranjeiras. Na infância, descia para jogar diariamente com os amigos e improvisava os golzinhos com chinelo, gelo-baiano, portões etc.
Alguns anos mais tarde, agora formado com louvor, Artur vai ter o privilégio de ser um dos representantes do Brasil na Dubai Design Week, a maior exposição de design universitário do mundo. O evento ocorre entre os dias 13 e 18 de novembro e, de malas prontas, o jovem não consegue esconder a felicidade.
– É como se fosse uma convocação para uma Copa do Mundo, né! Vou poder representar o futebol moleque lá em Dubai. São 70 faculdades, com uns três projetos de cada uma.
Quando voltar ao Brasil, Artur pretende correr atrás da produção dos golzinhos. Segundo ele, o projeto exige um alto investimento porque precisa de uma produção em larga escala para ser viabilizado.
– Meu maior interesse é levar esse golzinho para projetos sociais ou campos de refugiado. Acho que tem tudo a ver! – completou.
ALMA DE FRAQUE E CARTOLA
por Rubens Lemos
O homem antiquado é um observador sem teorias para explicar a si próprio. Sou um dos tais a nunca me imaginar velho, dando trabalho aos outros. Procuro não infortunar ninguém em mais um tempo invadindo como um intruso a minha vida. Escolhi viver como se fosse um passageiro do meu saudosismo. Quando a ele retorno, é para lembrar o que ele me guarda de bom.
Só sei fazer o que faço aqui, todos os dias, e mais algumas pequenas variações do jornalismo. Considero-me de alma sossegada por haver passado pelos dois lados da moeda, o ataque e a defesa, na máquina de moer gente que é uma assessoria de imprensa de órgão público. Não me arrependo por saber na pele que foi preciso, para aprender.
Antiquado, sou um conservador, mas não me vejo, num divertido exercício de banalidade, um homem de longas horas em basílicas ou arcadas gregas , ou de detrás de balcões de quinquilharias. Gosto dos sebos, de visitá-los. É a minha tecla de retroceder espiritual.
O que me sobra de antigo é meu e não abro mão. Gosto de papéis, filmes sem atrativos atuais, modelares para comparar o tempo do meu tempo com o tempo do tempo do meus filhos e dos seus amigos. Que eles não saibam, mas o meu tempo foi muito melhor.
Menos moderno, menos acessível à tecnologia, porém superior no quesito gente. Sempre gostei mais de gente do que de me mostrar com dinheiro e patrimônio e talvez não tenha me tornado um rico pela própria vocação de achar mais agradável um livro, um disco, um jogo de futebol ou um suspense instigante.
Sou obrigado a dizer, nesta demorada delonga, que os meninos atuais viram bem menos do que assisti e hoje falam com aspectos de certo modo arrogantes. O futebol é a minha base de analogia. Comparo-o a qualquer assunto e termino com razão. Na vida, como no futebol, quem prefere se defender ou se esconder, perde por omissão, medo ou covardia. Quem tem coragem de lutar, é como um time jogando no ataque, driblando para frente, alegrando a platéia.
Tenho dó dos meninos com direito à TV paga que não se assemelham aos pobres frequentadores de campos interioranos, calvos de grama, imensos de paixão. Os pequenos do mato, das agruras e do pão contado têm no futebol a alegria bem mais autêntica do que o discurso teórico de algumas décadas passadas, quando, entre queijos e vinhos, sem riscos de delação ou tortura, falsos profetas discursavam para ouvidos imbecilizados.
Recitavam Neruda, bebiam bons vinhos e sentenciavam: o povo brasileiro gosta de pão e circo. E olhavam para os interlocutores, todos embevecidos pela falta de opção melhor. A retórica dos catedráticos punha o circo como guarda-chuva de todas as culturas consideradas inúteis por eles, os sábios que, ao passar dos anos, se transformariam em sabidos, no sentido sem graça da esperteza.
O circo dos intelectuais de festa impunha o futebol como ópio das classes dominadas. Esse tipo de arrogante continua achando assim. Com todas as minhas limitações antiquadas, nada é mais cultural do que o futebol, na sua prática que envolve a dança, a literatura expressada por nomes menos pedantes: Nelson Rodrigues, Armando Nogueira, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Heitor Cony, João Máximo, João Saldanha, Luís Fernando Veríssimo, José Lins do Rêgo.
O futebol é uma cultura primordial de massa. Os gurus que tomavam vinho e teorizavam o que outros sentiam na pele e na prática perderam seu manifesto verbal e pedante: O futebol acabou para os humildes.
Nos ingressos a preços absurdos, em clubes proibitivos e na substituição do amor dos torcedores de verdade, pela baba elástica e odienta dos mentecaptos que escolheram um time para destilar suas frustrações de placenta. Palavra de antiquado. De uma alma de fraque e cartola.
Cabelada
REI DO APITO
entrevista: Sergio Pugliese | texto: André Mendonça | vídeo e fotos: Daniel Planel
“Todo juiz é ladrão, Cabelada não”. Quem acompanhou o futebol carioca nos anos 70 e 80 conhece bem esse frase, que é sempre seguida de gargalhadas. Há tempos a equipe do Museu da Pelada queria conhecer de perto esse personagem folclórico. E foi no Beco do Rato, na Lapa, na comemoração dos 50 anos bem vividos da jornalista Marluci Martins, que estava acompanhada do maridão Moacyr Luz, lenda do samba, e de um punhado de amigos, muitos companheiros de redação, como Renato Maurício Prado, Eucimar Oliveira, Dácio Malta e Denise Nascimento. Animando a roda de samba, o boleiro Leandro Samurai. E foi nesse clima descontraído que batemos um papo com Luiz Carlos Gonçalves, o Cabelada, um dos árbitros mais hilários do cenário nacional.
Carioca típico, malandro de Vila Isabel, cliente assíduo do antigo Petisco da Vila, não dispensa uma boa gelada e sempre foi figurinha carimbada nas ruas da cidade. Dessa forma, antes mesmo da sua chegada, um balde com cervejas trincando já estava sobre a mesa. Era o cenário perfeito para o árbitro soltar o verbo sobre as polêmicas em que se envolveu.
– Vocês querem ouvir uma história boa? Vou começar pela melhor! – disparou assim que chegou, já com o copo devidamente cheio.
Tratava-se de uma confusão nos minutos finais da partida entre Bangu e Goytacaz, pelo Campeonato Carioca. O Bangu vencia com facilidade e o jogo caminhava sem polêmicas até o goleiro Gilmar, do alvirrubro e da seleção brasileira, fazer cera.
Cabelada correu até ele para aplicar o cartão amarelo, mas um berro ecoou do banco de reservas do Bangu:
(Foto: Reprodução)
– Cabelada, não!! Esse tem dois! – alertou Dr. Castor, do banco de reservas. Mais um amarelo e o goleiro ficaria de fora da decisão contra o Fluminense.
O árbitro, então, mudou a direção e voltou-se para o lateral-esquerdo.
– Esse também tem dois!! – esbravejou o dirigente.
– Então para quem eu dou essa merda, doutor? – rebateu Cabelada, para em seguida punir o lateral-direito.
A confusão foi tema de muita discussão no dia seguinte e estampou as capas de todos os jornais. Sagaz, Cabelada deu o seu jeitinho. De acordo com ele, havia sofrido uma crise de labirintite 40 dias antes daquela partida e utilizou o problema como o grande responsável pela confusão.
– O Dr. Eduardo (Caixa d’água) não queria que o Bangu jogasse o clássico sem seu goleiro titular. Com isso, ganhei umas três ou quatro escalas seguidas. Foi o famoso “cala boca”.
Com tantas polêmicas no currículo, Cabelada revelou os bastidores da Federação:
– Sempre rolou interesse e volta e meia eles me pediam algum “favor”. Eu apoio o sistema. Na minha opinião, Fluminense, Vasco, Flamengo e Botafogo não poderiam ser rebaixados nunca e deveria existir um regulamento para isso. Isso evitaria que os árbitros ficassem em saia-justa.
Mesmo tendo apitado sua última partida oficial há 25 anos, a figuraça afirmou que volta e meia é reconhecido nas ruas. Além disso, está prestes a ser homenageado com um curta sobre sua vida dentro e fora de campo, algo que nunca imaginou. Para o projeto ser viabilizado, no entanto, os diretores do filme criaram uma arrecadação coletiva (https://www.catarse.me/cabeladanao), que segue a todo vapor na internet.
Por fim, o árbitro não titubeou ao falar sobre o seu estilo:
– A minha conduta é um pouco diferente. Sou autêntico, gosto de bebida, gosto de mulher, gosto da noite. No mundo de hoje sou visto como extravagante! – revelou o vascaíno confesso.
Após muitas horas de resenha, deixamos o bar dispostos a marcar outro papo para terminar de ouvir as infinitas e divertidíssimas histórias dessa figura.