MÁRIO SÉRGIO
por Rubens Lemos
Sua perna-esquerda transformava a mentira em uma delícia. Um espetáculo de classe em campo. Mário Sérgio Pontes de Paiva enganava seus perseguidores com o olhar cínico do seus toques. Fingia mandar a bola para um lado e a lançava para o outro, numa perfeição ilusionista. O Vesgo, seu apelido inspirado pela petulância refinada, jamais foi a uma Copa do Mundo.
Em meio a devaneios frequentes sobre injustiçados de nosso tempo, eu e um amigo praticávamos saudosismo vendo um jogo antigo do Internacional de Porto Alegre e lamentávamos a birra de Telê Santana com Mário Sérgio. Ele acabara, na tela da TV, de driblar dois zagueiros num jogo de corpo, parar, esperar o goleiro cair e empurrar a bola para as redes num peteleco, biquinho de chuteira. Cracaço.
E Mário Sérgio ficou sem Copa. Estava jogando o fino em 1982, titularíssimo do time e, de repente, foi escanteado como os laterais que fintava, trocado pelo decadente Dirceuzinho, operário, corredor e sem charme, de ridículos 45 minutos deslocado de ponta-direita na estreia brasileira contra a União Soviética.
A seleção brasileira de 1982 tinha defeitos, meninos quarentões. É que ninguém gosta de lembrar, numa reverência boba ao mestre Telê Santana, senhor da ofensividade e da teimosia.
Telê Santana mostrou ao mundo um futebol maravilhoso, mas errou e era humano. Mário Sérgio ficou em casa e Dirceu viajou. Mário Sérgio, o Vesgo, está entre os 100 maiores jogadores brasileiros de todos os tempos, dos 30 maiores que assisti, não me resta a dúvida.
Era um rebelde, um presunçoso. Tão habilidoso que mexia em vespeiros. Certa vez, num treino do Fluminense, desafiou o gênio Didi, técnico da famosa Máquina Tricolor. O time chutava com bolas e gigantes de fortalecimento muscular, utilizadas habitualmente nos anos 1970. Mário Sérgio, depois de fazer 10 embaixadinhas sem qualquer problema, mandou um bico em direção ao maduro e espigado Míster Futebol, maior meia-armador do da história futebolística.
Didi conversava com auxiliares e foi alertado pelo grito do seu ponta-esquerda: “Segura essa que eu quero ver, seu Didi!”. O verdadeiro balão de couro, enorme e disforme, subiu e, antes de chegar ao peito do chefe, ele esticou a ponta do sapato, fez um movimento de adestrador. O balão foi amaciado e desceu obediente. “Você ainda tem muito o que aprender barbudo!”, respondeu Didi sob aplausos gerais.
A provocação não tirou Mário Sérgio da escalação titular, formada no meio-campo por Zé Mário, Rivelino e Paulo Cézar Caju e no ataque por ele fechando o trio com Gil na ponta-direita e Manfrini bem improvisado na ponta-direita.
Bicampeão pelo Fluminense, Mário Sérgio seguiu para o Botafogo onde jogou com Marinho Chagas formando uma ala respeitável pela esquerda. Tanto jogavam quanto aprontavam, a ponto de o time ser chamado de Camburão Futebol Clube. Mário Sérgio usava um revólver calibre 38 na cintura, em suas folgas.
De ponta-esquerda legítimo, daqueles de ir à linha de fundo, desmoralizar o lateral-direito e cruzar direto na cabeça do centroavante, atingiu a plenitude como quarto-homem de meio-campo, reencontrando Marinho Chagas no São Paulo em 1981, quando foi convocado pela primeira vez, aos 31 anos.
Estreou contra os búlgaros, deu um show de bola em Porto Alegre, entrosado com Cerezo, Sócrates e Zico e ainda enfiando passes para dois gols, o do jovem lateral-direito também iniciante, Leandro, do Flamengo, e de Roberto Dinamite, que voltava ao escrete após dois anos de ausência.
Convocado sempre na prorrogação, na marca do prazo final, para as Copas de 1974 e 1978, o esforçado e combativo Dirceuzinho, falecido em acidente de carro em 1995, agia como bom assessor de imprensa de si mesmo. Dirceuzinho nunca foi mal jogador, claro, mas havia outros bem melhores.
Mandava recortes de jornais espanhóis e italianos sobre suas atuações às redações e para a Comissão Técnica da seleção, cortejava jornalistas e enviava cartões natalinos aos treinadores. Assim foi convocado em 1982 e só não disputou, quase ex-jogador, a Copa de 1986 no México por conta de uma distensão muscular.
Arredio, barbudo e indiferente, Mário Sérgio jamais faria papel igual. Certa vez, no Inter(RS), baixou as calças e mostrou a bunda ao sisudo técnico Ênio Andrade, que lhe dera uma instrução considerada incorreta. Com Telê Santana, começou a morrer em Natal.
No amistoso contra a Alemanha Oriental, (3×1 para o Brasil) o técnico reclamou publicamente que o Vesgo havia abusado do individualismo. Já estava pensando em Dirceu, mais obediente e menos problemático. E Mário Sérgio respondeu cofiando bigode aos microfones e lentes: “É assim que jogo desde quando comecei e só fui convocado porque jogo assim”.
Mineiro, do tipo que lambe a vingança para comê-la em prato gelado, Telê Santana esperou outra Alemanha, a Ocidental, no Maracanã, para substituí-lo no intervalo e lhe dar adeus. Éder assumiu a posição com Dirceu chamado entre os 22.
Mário Sérgio não ligou. Seguiu jogando e um ano depois conseguia o que a seleção perdera: o título mundial, armando o Grêmio para as arrancadas e os gols de Renato Gaúcho. Levantou de euforia o público japonês ao aplicar dribles de calcanhar nos alemães do Hamburgo. Cansou de enfiar canetas nos grandalhões sem molejo.
Ainda seria convocado para a seleção brasileira por Evaristo de Macedo em 1985 para uma série de amistosos fracassados antes das Eliminatórias. Evaristo caiu e Mário Sérgio foi cortado, de novo, por Telê Santana ao reassumir.
Mário Sérgio terminou barrado da Copa de 1982. Dirceuzinho foi. Indesculpável. Mário Sérgio ludibriava com estilo e efeito na batida de bola, era um jogador que valia o preço de camarote no estádio. Vesgo de olhar de lince. Uma ginga do destino fintando a fatalidade mudaria o rumo do avião da Chapecoense que caiu em 2016 e matou Mário Sérgio, sua virtude, demasiada visão.
MARINHO CHAGAS, MENINO GRANDE
por Rubens Lemos
Marinho nasceu para o futebol quando cheguei ao berçário, em 1970. Formou, com o Rei provincial Alberi, o duo de extraclasses cintilantes no ABC a quebrar um jejum de três anos para iniciar a jornada do inesquecível tetracampeonato. O ABC de Marinho com Caiçara de técnico: Erivan; Preta, Edson Capitão, Josemar e Marinho Chagas; William e Correia; Zezé, Alberi, Petinha e Burunga. Era o time de 1970, o time da redenção.
Marinho, o meteoro radioso, iluminou a Frasqueira (torcida do ABC) com seu jogo liberto e ofensivo, moderno e revolucionário em tempos de chumbo. Marinho nasceu para ser cometa da bola e no ano seguinte, no Náutico, tornou-se o melhor de sua posição para sempre em Pernambuco.
Nascia a nova e definitiva versão de Nilton Santos, o lateral jogando para o ataque, subvertendo as ordens táticas, reescrevendo a história no campo, que transformou em floresta para as suas elegantes passadas de gazela.
Do Náutico ao Botafogo em 1972. Primeiro ano, primeira Bola de Prata da Revista Placar, menino de sorriso remanescente das peladas de terra batida, ao lado de craques consagrados como Figueroa, Piazza, Ademir da Guia, Paulo Cézar Caju e Alberi, o seu igual em grandeza e exclusividade dos vesperais potiguares.
Marinho foi para a Copa do Mundo em 1974 e brilhou tal holandês de carrossel vestindo a camisa da retrancada e fracassada seleção do quarto lugar na Alemanha. O mundo o considerou o melhor, em sua posição. Júnior, do Flamengo, declarou e declara que gostava de imitá-lo.
O esporte em Natal é dividido em antes e depois de Marinho. Sempre afirmei com ele vivo, confirmo agora e não discuto mais. Do Botafogo, a estrela loira do ex-Maracanã, a “bruxa” alegre, tornou-se obsessão do cartola tricolor Francisco Horta, da famosa Máquina do Fluminense que deu ao alvinegro três craques de seleção só para ficar com Marinho: Rodrigues Neto, Gil e Paulo Cézar Caju.
Quando Pelé seguiu para o Cosmos de Nova Iorque, para ensinar futebol a ianque apaixonado por basquete e beisebol, 150 entre 100 boleiros sonhavam vestir a camisa branca do clube mais rico do planeta. Depois de Pelé, por lá desfilaram Cruyff, Beckenbauer, Chinaglia e Marinho.
Entre 1981 e 1982, Marinho conquistou sua terceira Bola de Prata e o Campeonato Paulista pelo São Paulo de Oscar, Dario Pereyra, Everton, Renato, Mário Sérgio, Serginho e Zé Sergio.
Já estava na fase do prazer. Suas incursões pelo meio-campo rendiam passes precisos, arrancadas em direção ao gol e patadas que sacudiam o Morumbi inteiro. A biografia de Marinho é universal. Ele, adorado pelo mundo afora.
Nos últimos dias de vida, em julho de 2014, estava mais criança e feliz, pelas proximidades da Copa do Mundo em sua terra. Se dizia embaixador de uma função que não lhe rendia um mísero centavo.
Marinho participava de eventos bem menos condizentes com sua história. Lançava camisas, frequentava troca de figurinhas onde era o centro das discussões e apresentava uma lucidez luminosa.
O destino, meia-armador malandro, levou Marinho para João Pessoa. Cercado de carinho paraibano, teve uma crise, sangrou e morreu. Seu organismo de touro já não resistia.
Marinho faz parte de um escrete incompatível com caixões. Marinho é desse time. Não quis vê-lo morto. Ele está vivo em fotos, gols memoriais e no sorriso triste e maroto de quando nos víamos.
Marinho Chagas, anarquista das nuvens é embalado por Clara Nunes e Paulo Gracindo em Brasileiro, Profissão, Esperança, espetáculo baseado em crônicas de Antônio Maria e canções compostas com Dolores Duran Marinho, brasileiro, profissão e esperança (perdida). “Dorme, Menino Grande”, é o poema de Antônio Maria ao descanso e paz de Marinho Chagas. É epitáfio no seu túmulo, chão do esquecimento. Marinho Chagas, 66 anos faria neste 8 de fevereiro. Para mim, ele sempre será festa.
A PRIORIDADE
:::::::: por Paulo Cezar Caju ::::::::
(Foto: Nana Moraes)
No aeroporto, na fila para embarcar, a jovem avisa que passageiros com cartões Gold, Diamante, Star e outros vitaminados têm prioridade. Em seguida, as poltronas traseiras, depois as dianteiras.
De cara, parece organizado mas quando você entra no avião o corredor está sempre congestionado porque quem já acomodou-se ao fundo volta no contra fluxo para ir ao banheiro ou pedir uma água para a aeromoça ou pegar um livro esquecido no compartimento dianteiro, afinal sua poltrona estar marcada no início da aeronave não significa que a sua bagagem também estará.
Nem sempre há vagas. Do avião para o Metrô. O trem estaciona na estação e quando as portas abrem-se é um salve-se quem puder. Sobra cotovelo e falta educação. Do lado de dentro, uma jovem sentada em um assento destinado aos idosos nem se importa com uma senhora, em pé, com um bebê no colo.
Eu reclamo e digo que a prioridade é da senhorinha. Mas ela age como os jogadores de futebol: coloca os fones no ouvido e liga o dane-se. Paro na Igreja do Rosário. Preciso rezar, entender esse mundo tão estranho.
Na saída, sou abordado pelo coroinha, que pede uma selfie: “Meu pai te ama!”. Volta correndo para missa e só reforça a minha tese de que o mundo anda muito estranho!
Em casa, à noite, ligo a tevê e vejo um jogador do Vasco, rosto feliz, dizendo que a desclassificação da Taça Guanabara não foi ruim porque o foco, a prioridade, olha ela aí de novo, é a pré-Libertadores.
Isso é sério?
Na minha época eu queria ganhar tudo, até amistoso contra time de farmacêuticos. E o torcedor, como fica, não é mais prioridade???
Campeonato Carioca virou laboratório?
É sério que seremos obrigados a continuar vendo esse festival de horrores?
É sério que ninguém vai tomar uma atitude para o esvaziamento dos estádios?
É sério que o Flamengo contratou Ceifador e Júlio César e tirou a chance de garotos?
Sinceramente, apostaria mais na garotada. A diretoria do Flamengo precisa entender que no futebol nem sempre a prioridade é dos mais velhos. Mais ainda, precisa entender que o slogan certo não é “craque se faz em casa”, mas “craque se mantém em casa”.
E para finalizar o meu querido Botafogo também priorizou a Copa do Brasil ao Estadual…….. kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
LOS LARIOS
por Zé Roberto Padilha
O nome que melhor traduz a triste Taça Guanabara, um fracasso de público e de bom futebol, chama-se Los Larios. Com tanta vergonha do que tem para mostrar a sua torcida, o Fluminense foi se esconder atrás de uma moita em Xerém, distrito de Duque de Caxias. Para jogar daquele jeito, seria melhor que o gandula e sua lanterna não devolvessem a bola. Ou mesmo ela, cansada de maus tratos, caneladas e chutões, tenha se escondido, mesmo correndo os riscos de pegar uma febre amarela. Ao final da competição, pouco adiantou se esconder: ele mesmo, seu time, tratou de desaparecer das semifinais.
Sou ponta esquerda do tempo em que o Fluminense disputava, e ganhava, a Taça Guanabara jogando no Maracanã e na Rua Bariri. Tinha clássico suburbano também em Ítalo Del Cima e na Rua Teixeira der Castro.
Identificados com a equipe que representava seu bairro, enchiam o seu alçapão, formavam a zaga com Renê, Moisés, Alfinete e Paulo Lumumba e tome gente xingando a gente colada no alambrado a cada escanteio. E aí ajeitávamos a bola, caprichávamos na cobrança, para mostrar o nosso valor. Havia desafios, embates, juízes acossados, torcedores saindo para o ladrão e quem ganhava sempre era o futebol e suas paixões coladas aos ouvidos da gente.
Já Los Larios, é terra de ninguém. Ninguém torce por ninguém em Xerém. Tigres? Só um foi visto naquela mata atrás do gol. Sábado passado, contra o Macaé, apenas 654 torcedores tricolores levaram uma renda de R$ 12.420,00 para os cofres do clube. Quantia que nem paga o salário do massagista, embora o Gerônimo merecesse mais. Mas e o Maracanã, por que não jogamos por lá?
(Foto: Hector Werlang)
A FIFA ofereceu ao futebol brasileiro um presente de grego. Ainda com sua maioria habitante abastecida pelo Bolsa Família, vivendo no Minha Casa, Minha Vida e se equilibrando com um salário mínimo, a entidade maior do futebol mundial reformou nossos barracos com piscina, salão de festas, lounge e ar condicionado central. Que poucos conseguem quitar sequer a primeira parcela do condomínio.
Melhor, então, deixar o barraco trancado, ligar o rádio porque o Canal Premiére é mais caro que o ingresso, e torcer para que na Taça Rio Los Larios seja, enfim, um pesadelo tão distante quanto sua distância das Laranjeiras. Distância do que jogavam Pedro e Washington, Sornoza e Rivelino, Ibanez e Edinho. Dos números de torcedores que acompanhavam nosso time, pagavam nossos salários e eram recompensados com um futebol à altura das tradições do Fluminense FC.
O EMPATE, O PIANISTA E UM PUNHADO DE EMPANADAS
por Marcelo Mendez
“Só sobraram restos
E eu não esqueci
Toda aquela paz
Que eu tinha…
Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado
À meia-noite, à meia luz
Pensando!”
Seguia a minha vida em 1978. A tal Copa do Mundo, idem.
O empate na primeira partida contra a Suécia meio que desanimou os corações em samba dos meus iguais brasileiros. Minhas observações, acerca dos adultos que me cercavam, me davam a certeza disso.
No enorme quintal da Avenida das Nações, entre as quatro casas que ali estavam, eu vivia rodeado de primos e primas, além dos meus tios e da minha bisavó Benedita a quem chamávamos carinhosamente de “Mãe Dita”.
Meu primo Tine, o mais velho dos primos, trabalhava muito e não me parecia se afetar com as coisas do escrete canarinho. Estava mais preocupado com o seu Santos, assim como seu irmão, meu outro primo Zé Carlos, que já trabalhava em seu ateliê como alfaiate. Zé era craque de bola, gente boa e quem mais me suportava. Adorava ficar enchendo seu saco enquanto ele costurava aquele monte de ternos, calças e bainhas.
Aparentemente, a vida no quintal dos Mendez seguia uma normalidade, minhas primas estudando, trabalhando. Mas foi a prima mais nova, Marlene, quem mais me chamou atenção naqueles dias.
Com 16 anos em 1978, minha prima estudava e ficava no quintal ajudando Tia Leonir com as coisas da casa. Também ajudava minha mãe, cuidando de mim e de minha irmã e escutava um disco cuja musica que mais gostava, tinha esses versos, já citados.
Eu já sabia ler e ao ver na contracapa do bolachão, descobri que a canção se chamava “Meu Mundo e Nada Mais”, cantada por um cara de nome Guilherme Arantes, que aparecia na capa do disco em uma rua deserta, com uma roupa preta, olhando para um piano solitário.
Eu achava a música linda, mas a impressão que eu tinha do moço que cantava era de que ele estava muito triste e precisava de uns primos para ajudá-lo.
“Se eu vir ele um dia, vou dar um abraço nele…” – pensava.
Demorou para vê-lo, mas isso é outra história…
Fato é que, naquele momento, não foi possível eu ajudar o moço triste do piano solitário, colocado no meio da rua.
Uma outra coisa ia acontecer na segunda rodada daquela Copa, que me marcaria fortemente. Era o jogo Brasil x Espanha e o resultado final, não sei se importa muito.
Outras coisas, além de placares, interessam para a vida.
A Descoberta da Espanha
Em 1978 eu já tinha um amigo do peito. Era o Kleber.
Ele morava na casa ao lado da minha, junto com seus pais e seu irmão Marcos, três anos mais novo que ele. Nossas conversas se davam através de um muro, que vencíamos com o auxílio de uma cobertura para o registro da água, que ficava em nossos quintais. Subíamos ali e batíamos altas horas de papos.
Kleber não podia sair muito dali, seus pais trabalhavam e ele e o irmão ficavam aos cuidados da dona da casa que eles moravam de aluguel, uma senhora muito brava, de voz forte e enrolada, de nome, Ângela.
“Venga ticos, ta na hora”
Não sabia na época que aquilo era sotaque. Para mim, ela falava errado e comentei isso com meu pai, certo dia. Ele me corrigiu;
“Ela é espanhola, de um lugar que se chama Espanha.”
“Hummm… tá bom”
Levou uns dias para eu ir la na enciclopédia Barsa que a Tia Leonir havia comprado, para saber o que diabo era Espanha. Quando soube, deduzi que deveria ser um lugar de gente bem brava, visto que a Dona Ângela pouco sorria e o marido dela menos ainda. Me pareceu um lugar o qual eu não queria estar.
Eis que de repente, ao perguntar para o Zé Carlos sobre o próximo jogo do Brasil, vem a minha surpresa:
“Será contra a Espanha, Marcelo. E temos que vencer…”
Réquiem para a Emoção. “Vá chamar…”
Do dia do jogo, me lembro que o céu pouco sorriu para nós.
Uma bruma pesada de junho, em um dia de cor acinzentada, com uma garoa grossa e uma manhã fria, diferente de todo o sol lindo do primeiro jogo, apareceu para saudar o dia do jogo no Parque Novo Oratório.
Não havia tantos programas de esportes na TV, as comunicações eram bem precárias e os boletins todos se davam pelo rádio. Meu tio João ouvia a todos, meu Pai estava bastante apreensivo, mas não pelo jogo.
Outras coisas aconteciam na Argentina, coisas que não cabem nas recordações de um menino de 8 anos, que depois viriam a fazer parte da vida de um moço, de um homem de outro tanto punhado de anos, e que me fizeram ter toda a saudade de voltar a ser menino.
A hora do jogo se aproximava e o nosso quintal enchia de gente. Primos, tios, amigos, viriam para ver o jogo conosco. Nessa hora, minha mãe me chamou e recomendou:
“Vai lá no quintal do Kleber e chama ele e o Marco para ver o jogo aqui, Marcelo”
Feliz da vida, eu fui. Mas eles não estavam lá…
A Descoberta das Empanadas!
Chegando na frente da casa, não havia campainha, nada do tipo. Chamei como sempre fazia:
“Kléééééééberrrrrrrrrrrrrrr!!! Marquiiiiiiiiiiiiiinhuuuuuuuu!!!”
No término do meu berro, Dona Ângela saiu:
“Que queres?! Como grita!!”
Meio encabulado, respondi:
“Minha mãe mandou chamar o Kleber e o Marco pra ver o jogo la em casa…”
“No quero saber de juego! Tampouco me importa. Eles não estão em casa, não tem ninguém, só yo”
Nunca vou entender o que deu em mim naquele momento. Eu era uma criança de 8 anos, na frente da casa de um vizinho, chamando um outro amigo… Era muita coisa para pensar, passados 40 anos não sei se consigo chegar à conclusão alguma. Mas arriscarei-me:
Por puro coração de criança (creio eu…) eu olhei para o fundo dos olhos daquela senhora espanhola e perguntei:
“E a Senhora?”
Ela ficou parada, bastante surpresa:
“Yo o que, Tico?”
“A Senhora num vai ver o jogo? Pode ir la em casa comigo…”
A mulher ficou com a voz embargada, com olho meio que marejado, não conseguiu mais ficar brava, nem nada do tipo. Me disse que seu marido e sua filha estavam trabalhando, que Kleber e Marcos foram com os pais na casa de um outro parente, que não queria ir na casa de ninguém e então eu falei:
“Ah, então posso ver com a Senhora aqui”
Ela não conseguiu me falar não. Segurou o que me pareceu um choro, aceitou minha proposta desde que eu avisasse minha mãe que eu lá estaria. Deixei recado com meu Tio Marinho que estava indo lá para casa. Entrei, então, em sua cozinha.
Um cheiro forte e muito bom vinha dalí. Olhei para a mesa e tinha uma travessa de algumas coisas que eu achava que era um punhado de pastéis. Ela ligou sua Tv e quando me viu olhando para o prato, me ensinou:
“Son empanadas, queres?”
Quis…
O Jogo? Ah, claro… O Jogo:
Foi uma porcaria!
Um 0x0 enfadonho, com o zagueiro Amaral tirando um gol da Espanha de cima da linha, o que não a deixou muito feliz e para falar a verdade, pouco importa. O bom da Copa foi outra coisa.
Por 90 minutos, comendo a melhor empanada da minha vida, eu e aquela senhora espanhola rimos, brincamos, torcemos, nos divertimos, como se o mundo fosse de fato algo muito bom. Aquela tarde me marcou fortemente para tudo que vivi depois em minha vida e eu procurei guardar a lembrança com carinho, por saber que ela não se repetiria.
Acabado o jogo, voltei e minha mãe não entendeu muito, mas ficou tudo ótimo.
Pouco tempo depois, mudamos para nossa casa nova que havia ficado pronta e não falei mais com Dona Ângela. Ela não me chamou mais para comer empanadas, também não a convidei mais para ver jogo na minha casa. Como que por magia, a vida nos reuniu aquela tarde, porque aquilo era o que tínhamos para viver.
“Só sobraram restos
Que eu não esqueci
Toda aquela paz
Que eu tinha
Eu que tinha tudo
Hoje estou mudo
Estou mudado…
(Guilherme Arantes, “Meu Mundo e Nada Mais”)
Vivemos.
E ao escrever essa parte da minha vida com as Copas, concluo definitivamente, que esse troço de futebol é de fato, bom pra caralho…