SÓCRATES, O ÚNICO CORINTIANO QUE ME FEZ CHORAR
por Israel Cayo Campos
Quem me conhece sabe o amor que nutro pelo São Paulo Futebol Clube. Sentimento esse que surgiu desde que me entendo por gente ao ver aquela máquina comandada pelo mestre Telê Santana do início dos anos 1990.
Para quem dizia que o “Fio de Esperança” era um “pé frio”, eu só vi a fase pé quente dele. Seja em campeonatos paulistas, brasileiros, Libertadores da América duas vezes, Recopas, Torneios internacionais e principalmente em duas conquistas de campeonatos mundiais de clubes sobre nada mais nada menos do que os poderosos Barcelona (1992) e A.C. Milan (1993).
Nesse período meu ídolo dentro de campo era Raí, mais conhecido como o “Terror do Morumbi”. Que se não é o maior jogador do São Paulo, e aí podemos citar muitos que pleiteiam tal vaga, foi o mais decisivo nos títulos que me cativaram a tornar-me torcedor do clube, pois o vi em seu auge na fase em que comecei a amar o esporte bretão.
Claro que para um torcedor de verdade, ter um time a se amar não é nada se não existirem rivais a se odiar. Para mim logo dois surgiam: o Corinthians, que a época não ia muito bem dentro do campo, e o Palmeiras, com o timaço montado pela transnacional italiana Parmalat. É claro que escolhi o Palmeiras! Que vencia o São Paulo com maior frequência, e ainda levava nossos melhores jogadores que não iam para a Europa! Antônio Carlos, Cafu (que foi a Europa apenas para não mudar diretamente de clube) e Müller são exemplos.
Depois de meia década de pura felicidade, o São Paulo começava a entrar em ostracismo, Telê por problemas de saúde deixava o clube e o tricolor passou três anos amargando campanhas discretas.
Foi quando Raí, meu ídolo no futebol voltava em plena final do Campeonato Paulista de 1998 (quando o campeonato ainda era um paulistão!) para enfrentar o Corinthians! Na minha cabeça o São Paulo voltaria a ser grande, e aquela conquista em cima do novo time mais odiado na minha mente juvenil me fazia pensar assim.
Entretanto, o título paulista de 1998 foi a única coisa que Raí conquistou em sua volta ao Morumbi, e enquanto isso, o Corinthians vencia dois campeonatos brasileiros, torneios Rio-São Paulo e campeonatos estaduais… Muitos deles passando por cima do tricolor!
Tantas derrotas para o time de Parque São Jorge sacramentaram que minha rivalidade no final dos anos 1990 e início do ano 2000 agora era com o Corinthians. E só Deus sabe quanto ódio senti ao ver o Raí perder aqueles dois pênaltis contra Dida na semifinal do Brasileiro de 1999 contra o Corinthians. Aquilo já passava de simples rivalidade! Era ódio puro!
Até então de Sócrates só tinha ouvido o básico… Que era o irmão do Raí (e não o contrário!), que tinha sido um excelente jogador de futebol usando a camisa do rival, que era chamado de “Doutor” pois de fato era médico formado, o que era uma raridade para os jogadores daquela época, e que era uma das estrelas daquela Seleção que fracassou no mundial de 1982 diante da Itália. Para mim, era estranho alguém com esse currículo ser o (ou um dos) maiores jogadores da história do time que mais me fazia sofrer enquanto torcedor do São Paulo.
Um pouco mais velho, via os tapes das partidas de Sócrates pela Seleção e lia nas minhas coleções de Revista Placar um pouco da história desse jogador.
– 3 títulos paulistas são os maiores troféus desse jogador? Pensava comigo. Não chega aos pés do Raí! Só campeonatos paulistas o Raí tinha cinco!
– Nenhum campeonato brasileiro conquistado? Libertadores? Mundial?Até jogando na Europa o currículo do irmão mais novo é superior! Esses comentaristas esportivos que dizem que ele é melhor que o Raí só podem estar loucos… Pensava eu ainda em minha pré-adolescência!
Com o chegar da minha adolescência e a intensificação das leituras sobre futebol comecei a perceber que a importância do Doutor ia muito mais do que somente pelos títulos dentro de campo. Mesmo sendo um jogador espetacular, Sócrates conseguia despertar a admiração de quem quer que fosse pela sua autenticidade, sinceridade e inteligência!
Mesmo não tendo a melhor relação do mundo com o goleiro Leão, votou a favor da contratação do mesmo para o gol alvinegro e dedicou o título paulista de 1983 a grande atuação do arqueiro na final contra o São Paulo (novamente o São Paulo!) terminada em 1 a 1 no Morumbi. Na frente de todos os jogadores e funcionários do clube.
Por falar em voto, o paraense radicado em Ribeirão Preto foi um dos principais idealizadores do movimento “Democracia Corintiana”. Que tinha como principal ideal que todas as decisões referentes ao time de futebol seriam votadas por todos os funcionários do clube! Do mais humilde ao presidente, todos teriam o mesmo peso de voto! Com isso, os jogadores decidiam se deveriam ou não se concentrar antes dos jogos, quais outros jogadores eram necessários para a melhoria do time (como foi o caso de Leão!), e até como o dinheiro do “bicho” (premiação dada por êxitos alcançados dentro de campo), deveria ser dividido de maneira igualitária entre os jogadores, roupeiros, motoristas e todos os outros funcionários do clube!
Era uma ideia de igualdade de direitos e deveres entre todos em um país que ainda estava na mão de uma ditadura! Obviamente, muitos não foram a favor desse conceito de liberdade, mas o que fazer? O Corinthians era o time mais popular de São Paulo, e Sócrates, o cabeça do movimento era não só um dos maiores jogadores do clube, como da Seleção Brasileira!
Mesmo com alguns reacionários de plantão a atacar essa ideologia com viés marxista em meio ao futebol, e algumas “fichadas” recebidas pelos policiais, o Regime Militar do início dos anos 1980 já não tinha forças suficientes para impedir essa revolução política dentro do futebol, ou seria do futebol dentro da política?
Entretanto, aquele viés revolucionário do “Magrão” (apelido carinhoso recebido a sua elevada estatura, mas estrutura corpórea magra), não se restringia ao clube de futebol que defendia. Buscando a redemocratização parcimoniosa do país ele militou na campanha “Diretas Já”, entre os anos de 1983 e 1984, que visava aprovar as eleições diretas para presidente da república no país por meio da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira que seria votada pelo congresso nacional.
Sócrates convocou o povo as ruas de São Paulo como forma de pressionar a aprovação da lei, participou de showmícios dedicados a divulgar a causa e garantiu que se a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada ele continuaria a jogar no futebol brasileiro, mesmo o Corinthians recebendo boas propostas de clubes italianos para a compra de seu passe! Como a lei não foi aprovada, ele embarcou rumo a Florença para jogar na Fiorentina por uma temporada…
Ao ler tais atitudes, pensava comigo ainda nos anos 2000, quando os salários nem se comparavam aos atuais, mais já eram altos. – Que jogador atualmente teria tal coragem de perder seu pé de meia em prol de um ideal que nem ele sabia se mesmo aprovado, seria bem-sucedido? Nenhum me veio a cabeça!
Eu que sempre fui fã de pessoas revolucionárias começava a deixar meu ódio ao Corinthians de lado e admirar aquela figura. A mesma figura que ouvia meus parentes mais velhos xingarem por ter errado o primeiro pênalti contra a França naquela fatídica quarta de final do Mundial do México em 1986. Ou que criticavam pelo seu já conhecido gosto por bebidas alcoólicas e cigarros!
Continuava a achar o Raí ídolo, mas não poderia deixar uma figura tão emblemática como essa deixada de lado simplesmente por não ter conseguido tantos campeonatos importantes! E afinal, o que é importante ou não, não está na nobreza ou nos valores de um título, mas na própria importância que o seu torcedor dá a aquela conquista, ou não conquista, como foi a Seleção de 1982.
Em 1986, na Copa do México usava uma faixa na cabeça com dizeres a cada jogo. Era uma forma de demonstrar ao mundo todo o quanto as questões sociais eram tão importantes quanto os 90 minutos de bola rolando.
Na primeira partida contra a Espanha, o “Magrão” usava uma faixa em seus cabelos com os dizeres “México sigueen pie”. Em uma clara alusão ao terremoto de mais de 8 graus que devastara parte do país as vésperas do início do torneio. Em outros jogos os textos das faixas atacavam temas ainda recorrentes ao mundo atual. Tais como a fome, o Imperialismo, o racismo e as guerras.
Sócrates aproximava o futebol das questões sociais que mais afligiam os oprimidos no principal torneio de futebol do mundo. Algo admirável e nunca visto por nenhum outro jogador até os dias atuais. Até porque, nos dias atuais é difícil saber o que eles de fato pensam! Pois manifestações de cunho político e social são proibidas pela FIFA, e os assessores atuais impedem que qualquer um de seus agenciados diga algo que venha a causar algum impacto reflexivo a quem os assiste ou segue!
É claro que os milhões de dólares perdidos contam mais que o desejo de mudar o mundo, mas não era assim para Sócrates, que claro, ainda jogava em um futebol que não pagava milhões. Mas já pagava bem mais do que o restante da sociedade recebia, o que o próprio Sócrates deixa bem claro no início dos anos 1980 em entrevista a José Luiz Datena quando este ainda era repórter esportivo da Rede Globo!
Quanto mais lia sobre Sócrates, ou via suas entrevistas na televisão, mais me tornava fã de sua humildade, carisma, inteligência e coragem ideológica. Não cabendo aqui julgar se seus preferenciais políticos estavam corretos ou errados, Sócrates abertamente socialista defendia o partido com quem compartilhava suas crenças ideológicas, mesmo rejeitando desse mesmo partido quando esteve no poder um cargo ministerial.
Por outro lado, aceitou o convite de Fidel Castro para treinar a fraca seleção de Cuba (convite que acabou não se concretizando) com apenas uma condição: a de que receberia um salário igual ao dos demais moradores da ilha, respeitando o ideal de igualdade marxista o qual tinha convicção ser o correto para qualquer sociedade… O homem do melhor passe de calcanhar da história era mais que um excelente jogador de futebol. Era a ovelha negra que dava a cara a bater por seus ideais, ao mesmo tempo que não perdia a capacidade de lutar, mesmo entendendo as diferenciações de mundo ideológico e real. Graças a serenidade do seu brilhante cérebro!
Além do esporte e do engajamento político, Sócrates também se destacava na música, teatro, televisão, literatura e é claro, mesmo não exercendo, na medicina! O que chama a atenção, pois mesmo não sendo leigo no assunto, o Doutor foi deixando a doença chamada alcoolismo o vencer durante toda a sua vida.
É claro, Sócrates não era um super-herói. Não podia sozinho mudar o mundo. Mas também não deixou que o mundo o mudasse! Mantinha os amigos feitos desde sua infância, passando pelos feitos durante seu auge de carreira, até os construídos já em seu último trabalho na tradicional e semanal mesa redonda da TV Cultura “Cartão Verde”.
Tinha seus vícios, adorava uma cervejinha como já dito antes, e aqui não cabe qualquer tipo de julgamento, mas sim um reconhecimento de apesar de ser um ser humano diferenciado em todos os aspectos ainda era um ser humano igual aos demais! Infelizmente, esse vício o levou ao fim da vida em 04 de dezembro de 2011, aos 57 anos de idade.
E eu, que acordava de maneira displicente naquela manhã de domingo em que o arquirrival do meu time se sagraria campeão brasileiro, acabei também chorando pela perda de um ser humano tão fantástico! Ainda maior do que foi como jogador de futebol! E olha, hoje (com a maturidade e racionalidade!), reconheço ter sido um espetacular jogador de futebol (estava no Top 100 da FIFA do Século passado)!
Se ele foi melhor ou pior que Raí dentro dos campos? Isso é assunto para um outro texto! Entretanto, aquele triste dia me fez ter uma reação que nunca pensei que fosse acontecer… Chorei muito pela perda de um ex-jogador corintiano, que faz uma falta danada nesse mundo onde as pessoas estão cada vez mais vazias e medíocres em todos os aspectos!
JOGOS INESQUECÍVEIS
por Mateus Ribeiro
São Paulo x Corinthians (Semifinal do Campeonato Brasileiro 1999).
Clássicos são emocionantes na maioria das vezes. Se o clássico em questão valer algo grande, a tendência é que a emoção alcance níveis estratosféricos. E foi isso que aconteceu no dia 28 de novembro de 1999.
São Paulo e Corinthians se enfrentaram pela primeira partida da semifinal do Campeonato Brasileiro de 1999. De um lado, um São Paulo que vinha de uma década fantástica, com títulos nacionais, continentais e mundiais. Do outro, o Corinthians, que naqueles dias, vivia a melhor fase de sua história. Como se isso não bastasse, grandes nomes do futebol como França, Marcelinho, Rogério Ceni, Rincón, Ricardinho, Raí, Edílson, Jorginho, Dida e muitos outros estavam em campo. Não se poderia esperar algo diferente de um grande jogo.
A partida foi um lá e cá sem fim, do primeiro ao último minuto. Os treinadores deram uma bica na tal da cautela, e ambos os times atacavam sem medo de ser feliz.
O Corinthians saiu na frente, com gol do zagueiro Nenê. Alguns minutos depois, Raí, acostumado a ser carrasco do Corinthians, acertou um chute que nem dois Didas seriam capazes de defender. Eu, que já havia ficado muito chateado pelo tanto que Raí judiou do meu time do coração (acho que já deu pra perceber que torço para o Corinthians) em 1991 e 1998, senti um filme passando pela minha cabeça. Estava prevendo o pior.
Para a minha sorte, dois minutos depois, Ricardinho aproveitou um lançamento e colocou o Corinthians na frente de novo. Meu coração estava um pouco mais aliviado, e eu conseguia respirar. Até que Edmílson tratou de empatar a partida, e jogar um banho de água fria na torcida do Corinthians. O frenético e insano primeiro tempo terminou empatado em dois gols, e com muitas alternativas para ambos os lados. Eu tinha certeza que o segundo tempo seria uma loucura. E realmente foi.
Logo no início, Edílson deixou Wilson na saudade, e caiu dentro da área. Pênalti para o Corinthians. Na batida, o jogador que eu mais amei odiar na minha vida inteira: Marcelinho. Bola de um lado, goleiro do outro, e o Corinthians estava novamente em vantagem.
Alguns minutos depois, pênalti para o São Paulo. De um lado, um dos maiores jogadores da história do São Paulo. Do outro, um goleiro gigantesco, que estava pegando até pensamento em 1999. O Resultado? Nas palavras de Cléber Machado, “…Dida, o rei dos pênaltis, pega mais um…”.
Naquelas alturas, eu já estava quase tendo uma parada cardíaca. Teve bola na trave, bola tirada em cima da linha, e tudo mais que os deuses do futebol poderiam preparar para fazer meu coração parar.
Até que quando o jogo estava se aproximando do fim, mais uma surpresa. Desagradável, é lógico. Mais um pênalti para o São Paulo. Eu já achava que aquilo fosse perseguição. Meu coração, desde sempre, nunca foi de aguentar fortes emoções. Tanto que no segundo pênalti, fiquei de costa para a tevê, sabe se lá o motivo, com meu chinelo na mão. E o chinelo foi um personagem importante, já que o monstruoso Dida defendeu o pênalti do gigante Raí mais uma vez, e eu arremessei meu calçado na árvore de Natal, e destruí o adorno que enfeitava a sala da minha casa.
Antes do apito final, Maurício (que substituiu Dida) ainda fez uma grande defesa, garantindo a vantagem para o jogo de volta.
Um jogo emocionante, que consagrou Dida, e de certa forma, foi uma espécie de vingança minha contra Raí, que em muitas oportunidades me fez chorar. Vale ressaltar que o craque são paulino é o rival que eu mais admirei durante minha vida.
A vitória me deixou feliz, é claro. Porém, além dos três pontos e da vantagem para o jogo da volta, quase uma década depois, o que me deixa feliz (e triste) é ver que naqueles dias as torcidas dividiam o estádio, os times se enfrentavam em pé de igualdade, e os craques ainda passeavam pelos gramados.
Um dos dias mais emocionantes e insanos da minha vida. Agradeço aos grandes jogadores que me fazem lembrar daquele domingo como se fosse ontem. Agradeço também, você que leu até aqui, e dividiu essas lembranças comigo.
Um abraço, e até a próxima!
Aguinaldo
reverência ao rei
entrevista: Paulo Escobar | vídeo: Jhonny Jamaica | edição de vídeo: Daniel Planel
Se hoje em dia os goleiros contam com luvas emborrachadas que variam de acordo com o tempo, roupas que amortecem as quedas e bolas cada vez mais leves e macias, os arqueiros da década de 60 precisavam se virar para defender as pancadas sem luvas e com bolas de couro pesadíssimas. É o caso de Aguinaldo Moreira, goleiro “raiz” do Santos nos tempos de Pelé, que recebeu a equipe do Museu no Parque São Jorge para um papo descontraído.
Jhonny Jamaica, Paulo Escobar, Aguinaldo Moreira e Ruth Bessa.
– Se eu tivesse os aparatos que os goleiros têm hoje, eu estaria na Seleção! Hoje tem luva para sol, noite, chuva… Nem preparador de goleiros a gente tinha! – disparou.
Apesar de ter feito muito sucesso debaixo das traves, Aguinaldo revelou que seu sonho era ser ponta-esquerda, assim como muitos meninos da sua geração. O motivo é mais do que nobre: todos se inspiravam no ensaboado Canhoteiro.
Quando tomou coragem para realizar uma peneira se decepcionou com a concorrência:
– O professor perguntou quem era ponta-esquerda e todos levantaram a mão. Acabei indo para o gol mesmo, que foi a posição que sobrou.
As primeiras experiências não foram nada boas e Aguinaldo cansou de buscar a bola no fundo das redes antes de começar a operar os primeiros milagres. Despontou na Portuguesa-SP, mas foi no Santos que ganhou projeção nacional.
No alvinegro praiano teve a honra de disputar a posição com Gylmar dos Santos Neves, bicampeão mundial pela Seleção, e atuar ao lado de Pelé. Foi Aguinaldo, inclusive, quem carregou o Rei na comemoração do milésimo gol.
– Goleiro tem que ser maluco, né? Passei por baixo dos repórteres e coloquei o Pelé no ombro. Foi coisa de instinto! Ele ficou com um medo danado de cair! – lembrou, seguido de uma risada.
Antes de pendurar as luvas, defendeu o Vitória e se tornou preparador de goleiros quando encerrou a carreira. Pelas suas mãos passaram Leão e Zetti, no Palmeiras, Carlos, Waldir Perez e Ronaldo, no Corinthians, e Rogério Ceni, no São Paulo.
Hoje em dia, aos 74 anos e uma vida quase inteira dedicada a evitar os gols, passa os seus muito ensinamentos aos goleiros da base do Corinthians.
Viladônega
BOM DE BOLA E TELA
entrevista e texto: Paulo Oliveira | edição de vídeo: Daniel Planel
Viladônega de Souza Rodrigues jogava pelada debaixo de uma ponte no bairro de Jequiezinho, em Jequié, cidade do sudoeste baiano a 365 quilômetros de Salvador, quando foi descoberto pelo médico e diretor de hospital Sebastião Azevedo. Sócio benemérito do Vasco, Azevedo moveu céu e terra para levar o menino de 12 anos para fazer um teste no infanto-juvenil do clube pelo qual torcia.
Primeiro, o médico procurou os pais do garoto, Adélia e Expedito Rodriguez, que só concordaram em deixar o pequeno craque ir para o Rio de Janeiro, depois que Azevedo prometeu que ele não deixaria de estudar. Pesou também o prestígio que o doutor tinha na cidade. Sendo assim, Viladônega botou a pouca roupa que tinha em uma mala de papelão e pegou um avião.
– Foi a aeromoça que me levou à casa da família de Sebastião Azevedo, que morava na Praia de Botafogo. Quando cheguei lá, cabreiro, ligaram a televisão para eu assistir. No interior da Bahia não tinha tevê naquela época. Quando ouvi a Ângela Maria falar em um programa “vou acender o cigarro”, fiquei doidinho procurando a caixa de fósforo. Três dias depois fui levado para São Januário! – conta o meio-campista, que pisou pela primeira vez no estádio em 1954.
ENCONTRO COM BELLINI
Ainda é bem nítida a cena de sua chegada no clube carioca. Os aspirantes treinavam e os jogadores do time principal assistiam na arquibancada. Foi aí que o menino de nome incomum foi apresentado ao zagueiro Bellini, esboçando timidamente um “Como vai, senhor Bellini?”. Tempos depois quando fez uma brincadeira com o defensor, o bicampeão mundial de futebol retrucou:
– Quando chegou aqui me chamava de senhor, agora está me gozando! – revela o ex-atacante.
Na peneira para o time infanto-juvenil havia 18 times, 198 jogadores. Apenas três foram aprovados: o volante Maranhão, o lateral esquerdo Edílson e Viladônega.
Nascido em 1942, em Euclides da Cunha (BA), o meio-campista passou pelas categorias juvenil, aspirante e profissional do Vasco. Ainda era adolescente quando estreou no time principal em um jogo contra o Peñarol, no Uruguai, no qual a equipe cruzmaltina venceu por 2 a 1. Na época, os técnicos, segundo Viladônega, evitavam estreias de jogadores da base no Maracanã para não queimar os guris.
Foi no juvenil, aos 16 anos, que Vila, como também era conhecido, conquistou o único título pelo Vasco. A decisão contra o Flamengo, na Gávea, nunca foi esquecida:
– Cruzaram a bola e sem querer ela bateu na minha cabeça e entrou. Um a zero contra o Flamengo de Gérson! – celebra.
Villadônega participava de excursões internacionais, jogando entre os titulares. Participou de um torneio no México, onde ressalta a atuação do goleiro Ita. Na volta, foi convocado para a seleção brasileira amadora que disputaria o Pan-Americano de 1959, em Chicago, nos Estados Unidos. Estavam entre os convocados Gérson, Beirute, Germano e Maranhão.
Os brasileiros venceram quatro das seis partidas, incluindo a goleada de 9 a 1 sobre o Haiti. Perderam para os Estados Unidos (5 a 3) e empataram com a campeã Argentina (1 a 1). Foram vice-campeões. A medalha de prata, perdeu. Restou uma medalha de bronze entregue na cerimônia de encerramento da competição, uma das duas que o craque guarda consigo. A outra é do primeiro campeonato brasileiro de futebol amador (1961) que, de acordo com Villa, foi disputado por seleções estaduais.
BRIGAS ENTRE RIVAIS
O baiano foi efetivado como titular pouco antes de vencer a idade de aspirante. Ele dividiu o campo com Lorico, Da Silva e Pinga, no qual se espelhava. De seu ídolo ouviu o conselho para nunca dar pancada, pois quem jogava no ataque não precisava bater em ninguém.
Nos anos 50 pouca gente seguia a recomendação daquele que viria a ser o quarto maior artilheiro da história do Vasco. Muitas vezes, a rivalidade terminava em pancadaria. A briga entre jogadores como a que houve entre o Almir (Vasco) e Pavão (Flamengo) ficou famosa. E foi após pancadaria generalizada, no ano da inauguração do Mineirão, que a carreira de Viladônega entrou em declínio.
A transferência para o Atlético (MG), que lutava para ser bicampeão, aconteceu em 1963. A princípio por empréstimo, mas efetivada após ele marcar um golaço contra o Cruzeiro.
“Tive a sorte de fazer um gol do meio da rua, no campo do Cruzeiro. O goleiro adversário chutou, a bola bateu no chão, subiu, eu peguei de primeira, do meio de campo. A redonda viajou, viajou, viajou, rodou, pegou carona no vento e foi lá dentro. Ganhamos de 1 a 0.” – narra.
Além do bicampeonato, Villadônega foi o artilheiro do campeonato mineiro com 12 gols em 22 jogos. De seus companheiros de time, o meio-campista lembra de Bueno (cabeça de área), Peres, Marcelino (lateral), Nilson (centroavante) e Bougleaux (autor do primeiro gol da história do Mineirão). Dentre os adversários, sobram elogios para Tostão e Dirceu Lopes. Eles valorizam a conquista do título.
SUSPENSÃO DE UM ANO
No dia 24 de outubro de 1965, aconteceu o primeiro superclássico no Mineirão, que havia sido inaugurado há pouco mais de um mês. Na versão do atleticano “o juiz roubou” e provocou um tumulto generalizado em campo:
– O Atlético não podia perder. O ponta direita recebeu um lançamento e ajeitou a bola com a mão. Ele cruzou para dentro da área e o juiz marcou pênalti. Foi uma correria. Todo mundo queria pegar o juiz achando que ele roubou. Perdemos de um a zero. Eu não bati em ninguém, mas toquei no capacete de um guarda, ele caiu e o soldado não pode ficar sem capacete. O chefe do policiamento era da diretoria do Cruzeiro e fez carga contra mim. Aí eu fui suspenso um ano: eu, Nílson e uma porrada de gente! – conta
No site cruzeiropedia.org a história é diferente. Ele conta que a superioridade do adversário deixou o Galo tonto e os jogadores alvinegros irritados. Aos 35 minutos do primeiro tempo, Tostão abriu o placar após receber passe de Marco Antônio.
Na segunda etapa, Wilson Almeida invadiu a área e foi derrubado por um carrinho do lateral Décio Teixeira. O juiz Juan De La Pasión Artés. O autor do texto prossegue:
“Vander agrediu o juiz, que pediu proteção à Polícia Militar. Como ela não atendeu prontamente, outros termocéfalos (cabeças quentes) se animaram. Virou linchamento. O treinador Marão invadiu o gramado e também bateu no árbitro. Só aí os soldados saíram de sua letargia para proteger a vítima. Seguiu-se uma batalha campal entre jogadores emplumados, inclusive reservas, e policiais. Artés expulsou o time inteiro do Atlético e pôs fim à partida.”
Parte do período da suspensão, Viladônega continuou a receber o salário, mas depois, conta, pediu rescisão por não estar sendo útil ao time. Enquanto estava no Atlético, o jogador fez um curso de aprimoramento na Escola Politécnica, sem saber que isto seria de grande valência no futuro.
ACIDENTE NA ESTRADA
O último clube de Villa foi o URT (União Recreativa dos Trabalhadores), de Patos de Minas. Após uma partida contra o Tupi, o ônibus que transportava os jogadores virou na estrada.
– No meio do caminho, um animal atravessou na pista. O motorista desviou bruscamente e o veículo capotou três vezes. Os vidros caíam em cima da gente, eu imaginava todo mundo ensanguentado. Alguns se feriram, mas nenhum de forma grave. Eu só tive escoriações, graças a Deus! O motorista passou dois dias desacordado! – relata.
No final da temporada, o URT dispensou todo mundo e não pagou a ninguém. Vila, que estava há 11 anos sem visitar a família na Bahia, escreveu pedindo dinheiro para retornar. Ainda passou por Pontalina (GO) para ver um amigo que levara para fazer um teste no Vasco. Tinha esperança de encontrar um time em Goiás, mas ela acabou quando soube que o parceiro desistira do futebol e estava trabalhando de motorista.
No final dos anos 60, o reencontro com a família se deu em Itapetinga, cidade para a qual o pai tinha se mudado. Ainda tentou continuar jogando no Bangu local, mas a liga municipal não permitia jogadores profissionais entre amadores. Largou de vez o futebol, recusando convites para ser treinador da seleção municipal e de clubes locais.
– Nunca quis ser técnico. O cara que paga entrada para ir ao estádio, principalmente no interior, acha que tem o direito de xingar todo mundo e eu nunca gostei disso! – justifica.
ARTISTA PLÁSTICO
O curso de aprimoramento na Escola Politécnica não chegou a ser concluído, mas permitiu que Viladônega, que desenhava desde criança, aprendesse novas técnicas. Longe da bola, passou a fazer a decoração da cidade para festas como o São João e a extinta micareta, além de serviços particulares.
A arte aproximou Vila do pedreiro e escultor autodidata Júlio de Souza Barbosa, o São Félix, cujas obras estão espalhadas por praças da cidade e pela Matinha, área verde onde fica o zoológico de Itapetinga.
São Félix foi assassinado a facadas e pedradas em 2010, aos 83 anos, por um casal de adolescentes que acreditaram no boato espalhado por um radialista de que ele guardava grande quantia em dinheiro em casa. O escultor pedia ajuda ao ex-jogador para acertar a proporção de suas obras.
Aproveitando convite do filho de São Félix, Cabo Barbosa, e a presença do repórter do Museu da Pelada/Meus Sertões, Vila voltou à Matinha, hoje fechada ao público para se adequar à legislação ambiental. Foram oito anos longe das obras que ajudou a criar.
– São Félix era gozador, engraçado e gostava de piadas. Enquanto enchia a massa, eu ia cortando, modelando. Ele não estudou arte. Tinha um talento natural. – conta.
Viladônega também é o autor de um painel no muro do Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE), na rua Macarani. Feito com tinta óleo, o quadro retrata uma paisagem imaginada pelo artista para a cidade, cuja economia está fincada na criação de gado leiteiro e de corte. A concessionário prometeu pagar R$ 1.000 pelo mural, mas cinco meses depois da conclusão não tinha feito a quitação.
Além do que recebe pelas decorações que faz, o ex-jogador recebe aposentadoria de um salário mínimo mensal.
RESENHA
Ao falar em valores, o assunto volta a ser futebol. No tempo em que Viladônega se destacava nos gramados, o salário de atleta era baixo. De tudo o que ganhou na carreira, ele comprou uma casa simples para o pai, que casou quatro vezes, e um aparelho de medição para o velho Expedito continuar trabalhando como arquiteto.
Para ele mesmo, não comprou nada:
– Fiz o barraco onde moro há 15 anos com o dinheiro que ganhei como artista plástico! – revela
Se não fez fortuna, o meio-campista guardou histórias, que conta com prazer. Lembra de um Vasco x Santos, no qual Pelé virou o jogo no último minuto. Cita o nome dos companheiros – Orlando, Coronel, Sabará, Almir, Vavá, Pinga e Barbosinha – com o mesmo prazer que fala dos adversários, como Babá, do Flamengo.
Conta casos divertidíssimos sobre o goleiro Barbosa (veja o vídeo), que era chamado de Tio pelos jogadores mais novos e era viciado em “Biotônico Fontoura”.
Outro que faz parte de seus “causos” é Laerte, amigo inseparável de Sabará. Os dois moravam na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro.
– Uma passagem que morro de rir até hoje é do meio de campo Laerte. Nas excursões do Vasco para o exterior, todo mundo comprava presentes para a família e mostrava de noite para os companheiros no hotel. A sensação da época era o rádio de pilha. Aí o Laerte apareceu com um arco e flecha imenso, dizendo que tinha comprado para o Veinho, como ele chamava o filho. “Mas Laerte, você não está vendo que isso não vai caber na mala”, disse um jogador. Ele falou assim: “Vocês são burros”. Foi lá e quebrou o arco. Depois disse: “Chegando no Brasil, boto esparadrapo. Quando o Veinho for brincar, pow, quebra. Aí eu falo: Tá vendo, eu não compro mais nada para você” (risos).
O volante Laerte, segundo Viladônega, gostava muito de faroeste. Um dia convidou Sabará para ir ao cinema. Quando o filme estava no meio, chamou o amigo para ir embora. O ponta-direita tentou fazer ele mudar de ideia, mas o amigo disse haver esquecido que tinha visto o filme há muito tempo. Sabará ficou retado.
O craque do passado lembra com saudades do tempo que morou em São Januário, no alojamento debaixo da arquibancada. Seu jogo inesquecível, no entanto, foi Atlético x Cruzeiro, no dia 15 de setembro de 1963. Era o 11º jogo do campeonato e o último do primeiro turno, no Estádio Independência, e ele fez o gol da vitória.
– O Atlético venceu por 1 a 0 e arrancou para o bi! – enfatiza
A DESPEDIDA
Em data que não soube precisar, Viladônega Rodriguez conta que o Vasco foi fazer um amistoso em Itapetinga e enviou para ele uma camisa oficial e o convite para dar o pontapé inicial da partida. Em agradecimento pela camisa, o Vila deu ao emissário dois cágados que tinha no quintal. Falou também que o convite estava aceito.
No sábado seguinte, pouco antes do jogo começar, foram buscá-lo em casa, mas ele não estava:
– É que eu tinha uma pescaria marcada e não podia faltar! – justifica.
O GÊNIO QUE DRIBLOU O MUNDO
por Émerson Gáspari
Imaginem vocês, alguém que possua a seguinte distrofia física: a bacia, descolocada seis centímetros de seu prumo, com uma perna mais curta do que a outra, fazendo-o mancar. Pernas tortas, sendo um dos joelhos virado para dentro e outro para fora, causando uma inclinação que altera o próprio centro de gravidade dessa pessoa para um dos lados. Imaginaram?
Agora me expliquem como um sujeito desses pode se tornar um atleta profissional de ponta por duas décadas, apanhando muito – justamente nas pernas – convivendo com artroses, dores e infiltrações, sem perder o dom de divertir multidões pelo mundo todo e ter a capacidade de se tornar o maior driblador de todos os tempos?
Esse fenômeno da natureza tem nome e existiu: Manuel Francisco dos Santos, nosso querido Mané Garrincha, carinhosamente apelidado também de “Alegria do Povo”.
Nascido em 23 de outubro de 1933, Mané viveu em Pau Grande, distrito de Magé/RJ.
Na prática, um vilarejo com uma centena de casinhas simples, espalhadas pelo meio da mata e dos rios, lugar aprazível para um garoto crescer feliz, caçando passarinhos (garrinchas) e jogando peladas com os coleguinhas. Seu jeitão desligado e engraçado conquistava a todos e se prolongou por toda a sua vida.
Próximo de sua casa havia um platô (apelidado de “Barreira”), no qual fizeram um campinho de futebol careca e estreito, por fazer fronteira com um imenso barranco.
Foi ali, naquele arremedo de terra, que nasceria o gênio que desequilibrou o mundo.
Por jogar como meia bem aberto, Mané permanecia rente à lateral durante a maior parte dos jogos e desse modo, aprendeu naturalmente à driblar seus marcadores em um espaço mínimo, sem deixar que a bola (e ele) rolassem ladeira abaixo.
Conforme foi crescendo e participando de times amadores da região, passou a despertar a atenção de todos pela incrível habilidade no drible e acabou fixado na ponta-direita.
Garrincha trabalhava numa tecelagem e como diversão, incluiria agora os constantes namoricos e o bate-papo com os amigos num boteco da vizinhança. Mas era o futebol que o diferenciava dos demais jovens, tornando-o famoso naquele povoado e região.
Há histórias fabulosas dessa época, desde uma em que o lateral Atinha se contundiu seriamente ao cair após tentar pará-lo na violência; passando por outra na qual ele deixou a bola e correu sem ela, arrastando toda a defesa pra fora do gramado, voltando à seguir para apanhá-la; e até mesmo a da goleada na qual marcou um gol de placa, saindo de sua área defensiva e só parando de driblar, dentro do gol adversário.
A fama repentina e o estímulo dos amigos, o faria tentar a sorte em alguns clubes profissionais do Rio. Num deles, o da “Estrela Solitária”, fez sucesso, sendo aprovado.
O que para muitos seria difícil, para Mané aconteceu naturalmente.
Treinar num clube grande como o Botafogo não era para qualquer um. Quando o viram chegando pela primeira vez em General Severiano, alguns maldosamente duvidaram que um “manco” pudesse jogar futebol direito. Além disso, o atleta incumbido de marca-lo seria Nilton Santos, estrela maior do time e que acabaria por se tornar mundialmente conhecido como “Enciclopédia do Futebol”.
O primeiro teste acabou sendo um duelo equilibrado – ao contrário das lendas que se
espalhariam depois – cujos lances se sucederam em ritmo frenético.
No primeiro deles, Garrincha recebeu uma bola e a dominou, parando diante de Nilton Santos, o qual partiu em sua direção, esperando desarmá-lo. Acabou driblado por fora e Mané disparou em direção à linha de fundo, com Nilton a persegui-lo, até que emparelhassem.
Então o ponta de repente estancou, ambos se encararam mais uma vez e o lateral resolveu investir com mais firmeza, sendo driblado da mesma forma. O “duelo” seguiria assim, com um levando vantagem em certas ocasiões, enquanto em outras, acontecia o desarme. Equilibrado, mas um dos feitos de Mané acabou sendo passar – numa de suas investidas – a bola entre as pernas de Santos (como ele era chamado, na época).
Definitivamente, não era pra qualquer um.
Desse modo, ao final do treino, por recomendação do próprio “Enciclopédia” e do capitão da equipe Geninho, além é claro, do impressionado técnico Gentil Cardoso, os dirigentes se apressaram em fazê-lo assinar o primeiro contrato, em junho de 1953.
O Botafogo pagou quinhentos cruzeiros ao Serrano (equipe de Petrópolis) pelo passe dele, dinheiro equivalente ao valor de uma simples bicicleta na época e acertou com Mané, dois mil reais por mês, em seu primeiro ano de contrato.
Estrearia diante do Bonsucesso e após o time estar perdendo por 2×1, empatou o jogo cobrando um pênalti com a maior tranquilidade, liderando a reação com três gols na goleada de 6×3 para o Fogão. No último deles por sinal, acertou um tiro cheio de efeito, sem ângulo, da linha de fundo, vencendo novamente o goleiro Ary.
Os gols passariam a se suceder e as goleadas da equipe idem, a partir dali.
Na goleada de 3×0 em cima da Portuguesa/RJ, fez mais dois. No clássico diante do Flamengo, uma vitória tranquila por 3×0 e mais um dele. Seguiria nessa toada pelos jogos restantes do campeonato carioca, destacando-se os dois que fez em cima do Bonsucesso, novamente (vitória por 2×0), todos os três sobre a Portuguesa/RJ (3×0), além de outros três, na goleada de 6×0 disparada no Bangu de Zizinho. Naquele sábado, no Maracanã, a festa seria completa, com direito a gol olímpico dele (o primeiro) e até mesmo um gol marcado pelo “compadre” Nilton Santos.
Ao todo, assinalou 20 tentos em 26 jogos. Nada mal, para um principiante que iniciara tarde no profissional, com quase 20 anos de idade.
O Botafogo tinha apenas em Nilton Santos e Garrincha, nos anos que se seguiram, figuras que podiam ser consideradas craques. Mesmo assim – e apesar de um jejum de títulos cariocas que vinha desde 1948 – a equipe seguiu fazendo boas campanhas, com a popularidade de Mané crescendo muito em razão de seu estilo empolgante, no qual exibia farto repertório de dribles, alguns até, desmoralizantes.
Seu “modus operandi” consistia em aproximar-se do marcador em velocidade e de repente, estancar diante dele, oferecendo-lhe a bola num gesto provocativo. Então, colocava-a numa distância tal, que o adversário pensava ser possível roubá-la. Até que finalmente se atrevia a dar o “bote” e Mané, mais rápido, puxava a redonda e saía pela direita, deixando-o para trás, com extrema facilidade, muitas vezes provocando-lhe um tombo e as gargalhadas da torcida.
As excursões ao exterior que o clube realizava, renderam muito sucesso e dinheiro, tendo Garrincha como atração, especialmente quando se metia a driblar os gringos de cintura dura. Era um verdadeiro acontecimento e numa dessas excursões, nasceu o “olé” gritado pela torcida a cada um de seus dribles, como se fosse uma tourada.
Sua ingenuidade provocava casos hilários, como na partida diante do Reims, em Paris, em que o alvinegro vencia por 5×1 e o técnico Zezé Moreira gritou para o time se poupar, prendendo a bola nos seis minutos finais. Pois Mané confundiu tudo: pegou a pelota e não a largou mais, driblando os adversários e depois recuando, não passando nem mesmo para os próprios companheiros. Terminaria a partida com a posse da bola e a torcida o aplaudindo de pé.
A mesma confusão ele fez, quando o pobre Zezé quis ensiná-lo a ser mais objetivo nas jogadas. De cada dez lances em média, levava vantagem em uns oito. Problema era que a zaga adversária tinha tempo de se recompor e assim, rechaçar parte dos cruzamentos que ele executava. Zezé chamou-o ao gramado a sós e, colocando uma cadeira na ponta, explicou-lhe para que passasse por ela depressa e cruzasse logo para a área, sem ficar “enfeitando o pavão”, como se dizia.
Obediente a seu modo, Mané apanhou a bola, parou diante da cadeira, enfiou-lhe a bola por entre as pernas “apenas” uma vez e só então partiu rápido para a ponta, de onde cruzou, para desânimo de seu treinador.
Zezé nem falava mais nada: só pegava no pé, quanto às farras do ponta, com a mulherada. Mesmo casado, Garrincha não sossegava. Ao todo, teve doze filhos, entre esposas e namoros. Isso sem falar nas “moças-de-família” com as quais se envolvia.
Mas não perdia oportunidade de ficar com as filhas e de estar em sua terra natal. Assim que os jogos do Botafogo terminavam no Rio, ele se mandava para Pau Grande e ficava por lá, no boteco com os amigos, ouvindo discos em casa ou mesmo disputando peladas e até jogos por algum clube amador da região. Simples, jamais se deu conta de sua fama e sua popularidade entre os conterrâneos só fazia aumentar.
Até que em 18 de setembro de 1955, convocado pela Seleção Brasileira, estrearia com a “amarelinha”, no empate de 1×1 diante do Chile; a partir de 1957, passaria a fazer partidas mais regulares pelo selecionado nacional e finalmente em 1958, ganharia a condição de titular incontestável, se tornando dono da camisa “7”.
Mas voltemos aos amistosos: aos poucos, o time da “Estrela Solitária” foi acumulando vitórias estrondosas em jogos internacionais e as excursões iam se sucedendo: em 22/5/55, 4×1 no Tenerife, em 14/6/55, 5×2 na Dinamarca, em 19/6/55, 6×1 na Holanda, em 29/6/55, 4×0 no Torino, em 07/02/57, 6×1 no Honved, em 09/7/57, 4×0 no Sevilla. Nessas partidas (e em muitas outras) Mané foi destaque, marcando um ou mais gols.
Em 1956 o Botafogo procurara reforçar seu plantel, visando conquistar mais títulos e a chegada do célebre meia-direita Didi foi fundamental para que o futebol de Mané crescesse ainda mais, com os passes e lançamentos que recebia do “Príncipe Etíope”.
Mas a equipe chegaria mesmo ao seu ideal, na temporada seguinte, no Carioca/57.
Nele, o Botafogo realizou ótima campanha e fez a finalíssima diante do favorito Fluminense, que “cantava a vitória” antecipadamente.
Só que aquele domingo, 22 de dezembro, reservava muitas surpresas para o Flu, que não contava com a infernal atuação da dupla Garrincha-Paulo Valentim. E eles acabaram com o jogo, impondo ao tricolor, a derrota mais dilatada numa final de Campeonato Carioca em todos os tempos.
O Maracanã mal podia acreditar no que via: Mané aniquilou com a ala esquerda do rival, criando inúmeros lances de perigo, vários deles, aproveitados pelo artilheiro. Logo aos três minutos, Valentim abriu a contagem.
E aos 35 ampliou, após Garrincha – que vinha humilhando seu marcador Altair – ludibriou Clóvis e Pinheiro e encobriu Castilho, com Paulinho completando para as redes. Ele mesmo aumentou para 3×0 e assim terminou a primeira etapa.
No segundo tempo o “show” prosseguiu. Paulo Valentim marcou outros dois, totalizando cinco. Garrincha deixou o seu, aos 12 minutos: recebendo lançamento de Pampolini, ele venceu Clóvis e bateu em diagonal, ao entrar na área.
No último gol alvinegro então, aprontou um verdadeiro “salseiro” na zaga inimiga, antes de entregar de bandeja para Paulo Valentim. Final da contenda: 6×2 e o time saiu de campo, carregado pela torcida.
Assim era o futebol de Garrincha: ele jamais desejou ser a “vedete” do time. Jogava para a equipe, servia aos companheiros e parecia se divertir, fazendo seus marcadores de bobo. A torcida é que se divertia!
Mané era um sujeito tão desligado, que sequer sabia o nome de quem iria marca-lo; não que fosse menosprezo, mas pura inocência, mesmo. A um repórter que o questionou sobre isso antes de uma partida, ele respondeu:
– Não sei o nome dele, não: escreve aí que é um tal de João.
O apelido ficou para todos os marcadores de Mané, a partir daí. Os “Joões” sofreram muito com os dribles do nosso herói, enquanto ele jogou.
Talvez até estivesse se referindo a João Berruga, zagueiro que melhor o marcara – segundo ele mesmo dizia – nos tempos de mocidade, em Pau Grande.
Um felizardo, diga-se de passagem, pois Mané infernizou muitos zagueiros por aí.
Que o digam os soviéticos, na terceira partida da Copa do Mundo de 1958.
A situação era a seguinte: sem Pelé (contundido) e Mané (afastado por ter driblado demais a zaga da Fiorentina, num gol em amistoso!), o Brasil precisou recorrer a eles, no jogo que valia a nossa classificação para as oitavas (15/6/58).
Eles desmantelaram o temido “futebol científico” apregoado pelos russos em três minutos de partida, apenas. Garrincha foi o mais espetacular deles, sem dúvida.
Nos vestiários, o técnico Vicente Feola explicou a Mané, qual sua missão em campo: “Mané, você recebe a bola e dribla o seu marcador. Quando aparecer o segundo, você o dribla também e corre para a linha de fundo. Uma vez lá, quero que cruze com força para trás, no pé do Vavá, que vai estar entrando de frente, pronto pra finalizar… alguma dúvida? E o ponta, sem maldade, respondeu: “Mas o senhor já combinou tudo isso com os russos também, ‘seo’ Feola”? Era mesmo de uma ingenuidade absurda.
Mas em campo…
Em campo, com a bola começando a rolar, Didi lançou Garrincha, que gingou à frente do lateral Kuznetsov, fazendo-o cair pela primeira vez. O russo se recompõe. Mané aguarda. De novo, investe sobre ele e o dribla para dentro, ultrapassando-o. Mas freia e o deixa se recuperar. Então, o dribla novamente, desta vez, para os dois lados e penetra pela diagonal, sob a escolta de Voinov e Krijeviski, que acabam vencidos. Mané acerta então uma “tijolada quente” no poste esquerdo do “Aranha Negra” Yashin, já batido no lance. Ou seja: na “primeira volta dos ponteiros”, os inimigos já estavam desmoralizados.
Mas Mané queria mais: no minuto seguinte, tabelou com Pelé, que acertou um chute no travessão. Mais um minuto e afinal, Vavá abre a contagem para o Brasil.
Pensam que ficou nisso? O “pânico” foi ainda maior aos 12 minutos, quando Zagallo cobrou um escanteio bem aberto pela esquerda: a bola caiu no bico da grande área e Mané driblou em zigue-zague, nada menos do que os quatro defensores russos que tinha pela frente. Yashin, maior goleiro do mundo de todos os tempos, se arrojou para evitar o pior.
O Brasil estava começando, sem saber, a ganhar sua primeira Copa do Mundo. Com Garrincha, é claro!
Na volta para casa, com a Taça Jules Rimet conquistada, o cartaz de Garrincha ganhou notoriedade também no mundo e o Botafogo prosseguiria com suas intermináveis excursões – especialmente pela Europa – tomando parte de alguns torneios – e assim, reforçando o plantel, com o dinheiro obtido. Apenas o Santos de Pelé mostrava-se páreo para a equipe no país, naquela época. Foi um período que marcou o “auge” do futebol brasileiro, sem dúvida alguma.
Nessa época, os adversários usavam de diversos expedientes, na tentativa de parar Garrincha. Alguns apelavam em geral para as faltas e até acabavam expulsos, especialmente quando se tratavam de equipes menores.
As maiores, geralmente com atletas de maior recurso técnico, promoveram grandes duelos em suas laterais, contra Mané.
Os três “Joões” mais conhecidos de Garrincha, foram Altair do Fluminense, Jordan do Flamengo e principalmente, Coronel, do Vasco. Até porque eram os rivais diretos do Botafogo, no Rio de Janeiro. Há boas histórias contra esses times, tendo o “Anjo das Pernas Tortas”, como protagonista, inclusive.
Numa delas Pinheiro, zagueiro do Flu, se contunde ao tentar marcar Garrincha. Ao invés de se aproveitar disso, ele chuta a bola para fora, para que o colega de profissão seja atendido, num gesto que é aplaudido por todo o Maracanã. Até então, ninguém havia visto um gesto de esportividade como aquele. Assim era Mané Garrincha.
Já o lateral rubro-negro Jordan, era considerado por ele, como seu marcador mais leal.
A vítima preferida de Garrincha atendia pelo apelido de Coronel. Explique-se: o Vasco armava um esquema diferenciado na vã tentativa de parar Mané. Criaram uma marcação batizada de “fila”. Ela geralmente começava com o centroavante ou o ponta-esquerda bem recuado, dando combate assim que Garrincha recebia a bola.
Em média ficavam quatro adversários aguardando sua vez, um atrás do outro, para enfrentá-lo. Pacientemente, eram atendidos pelo “torto”. A torcida adorava, é lógico. E lá iam os marcadores se esborrachando pelo chão, um a um! Mas houve um dia, em que Garrincha exagerou e marcou talvez o gol mais bonito de sua carreira.
O Botafogo vencia o jogo, obrigando o Vasco a atacar. Foi daí que a zaga botafoguense roubou a bola e executou um passe longo para Garrincha, que estava um passo atrás da linha do meio-campo, pela direita.
Mané recebeu o primeiro combate de Coronel, mas gingou o corpo para a esquerda e saiu pela direita, lépido, agora pela meia-direita, em direção à grande área. No meio no caminho, topou com Orlando, que viera para a cobertura. Livrou-se dele, aplicando outro drible desmoralizante, mas adiantou demais a bola e o goleiro Miguel saiu desesperado, na esperança da defesa.
Feito um raio, Garrincha chegou primeiro e gingando novamente para a direita, saiu do goleiro também, que desabou com as pernas abertas. Acabou alcançando a bola, já bem próxima da linha de fundo. O zagueirão Bellini, experiente, correu pelo centro da área e optou por colar na trave, para fechar-lhe o ângulo de chute. Mané, de posse da bola, finge arrancar para o meio da área e ficar com a meta escancarada. Bellini então cai na cilada e desencosta da trave momentaneamente.
Neste exato instante, Garrincha chuta de direita, no mínimo vão que se abre, entre ele e o poste. Tremendo golaço e a torcida foi à loucura.
Mais uma das muitas diabruras de Mané Garrincha em campo. Mas e fora dele?
Mané era um cidadão pacato, simples, brincalhão, que se comportava feito moleque nas concentrações; não deixava ninguém em paz, brincando com os companheiros, o tempo todo. Se o goleiro Manga queria um bife, por exemplo, ele apanhava a travessa com carnes e berrava para ele, na outra ponta da mesa:
“Você quer o bife ‘expresso’?”. E atirava a bandeja, rente à mesa, em sua direção: pelo caminho, a travessa ia colidindo com pratos e talheres dos jogadores e espalhando os bifes por todos os lados, causando gargalhadas aos montes.
Mesmo os mais sérios e experientes, ele não poupava: se “passava a mão” em Didi, por exemplo, para tirá-lo do sério, ouvia do companheiro constrangido, o sermão merecido: “Não faça isso, Mané! Veja, não fica bem para mim, que tenho mais idade, sou casado, um chefe de família”. Garrincha instantaneamente ficava sério, abaixava a cabeça e pedia desculpas, aparentemente envergonhado.
Assim que Didi virava as costas, repetia o gesto, provocando-o novamente, enquanto os colegas de elenco morriam de rir. Como “consertar” um “meninão” desses?
Certa vez, em viagem pelo exterior, mal o Botafogo se instalou num hotel e ele simplesmente sumiu. Já sabendo de suas travessuras, Zezé Moreira teria apanhado um
táxi e mandado seguir para a “zona do baixo meretrício” , com o intuito de busca-lo e à tempo, inclusive, de ver Mané combinando, na calçada, o valor de um “relax” para dali a pouco.
Ao vê-lo descendo do táxi, todavia, Garrincha teria gritado: “Aí hein, seu Zezé… até o senhor por aqui?!”. Segundo a lenda, Zezé Moreira, envergonhado, teria entrado no veículo novamente e mandado o taxista retornar para o hotel.
Numa outra oportunidade, valendo-se de que o goleiro Manga não sabia ler, apanhou um jornal do saguão do hotel em que se encontravam e fingindo estar lendo, disse ao amigo: “Puxa, Manga! Você viu o que este jornalista escreveu à seu respeito? Que você só quer farra, não treina, nem quer nada com nada”. Pouco depois, o tal jornalista chegou ao hotel para fazer a cobertura do Botafogo e foi difícil segurarem Manga, que queria dar uma lição no cidadão, enquanto Mané morria de rir, escondido.
Os apelidos que ele criava para todo mundo com quem convivia, eram impagáveis.
Várias histórias do Botafogo – sobretudo de Garrincha – foram contadas pelo saudoso jornalista Sandro Moreyra. Outras, não.
A melhor de todas, para mim, talvez seja a que teria ocorrido numa partida diante do São Cristóvão, na qual, após uma tremenda arrancada de Garrincha – perseguido de perto pelo árbitro Amílcar Ferreira – ele resolve frear de maneira brusca.
Tão brusca, que o juiz acaba escorregando e leva o maior tombo, levando a galera ao delírio. Nervoso, Amílcar se levanta e –dedo em riste – foi logo avisando Mané: “Mais um drible desses e te boto pra fora!”. Assim era Mané Garrincha, “Alegria do Povo”.
Por outro lado, as atuações do ponta impressionavam quem nunca o havia visto jogar e surpreendiam muitos adversários. Seu estilo imprevisível era ajudado, em parte, por seu problema físico. A tal inclinação de seu corpo para um dos lados, fazia com que partisse sempre para o lado direito, com a vantagem de pelo menos um segundo em relação ao seu marcador. Isso, naquela corrida de 15, 20 metros, era considerável.
Mas nem sempre era assim.
Na Copa de 1962, no Chile, com a contusão prematura de Pelé, Mané tomou para a si a responsabilidade de jogar por ele e pelo amigo. Foi daí que, nas partidas diante da Inglaterra e Chile, abandonaria sua característica de jogar pela direita, geralmente rente à lateral.
Completamente diferente do jogo de estreia diante do México, quando se manteve ali o tempo todo, levando terror à zaga mexicana. Há inclusive uma foto colhida, dessa partida, em que ele, sozinho, avança com a bola na área diante de oito adversários que o cercam, além do goleiro, atentíssimo ao lance. Um deles, inclusive já está caído, driblado. Algo surreal.
Mas a contusão do Rei o faria atacar por todos os lados e de todas as formas, após o empate sem gols diante da Tchecoslováquia.
No complicado compromisso frente à perigosa Espanha, ele ainda se manteve em seu setor, sendo decisivo para o triunfo de virada, com dois cruzamentos precisos para Amarildo marcar os gols.
Já contra os ingleses, começou o “show”: corria por todos os lados do campo e não dava ouvidos à Aymoré Moreira, que lhe pedia para guardar posição. Se nem Bobby Moore conseguia contê-lo, o que dizer dos demais zagueiros? Viraram fantoches nas mãos – ou, melhor dizendo – aos pés de Garrincha.
Aos 32 minutos, aproveita um centro na área e abre a contagem de cabeça, fato raro, em se tratando dele. A esforçada Inglaterra empatou pouco depois e assim acabou o primeiro tempo.
No segundo, Vavá desempata após uma falta muito bem cobrada por Mané, com tamanha força, que estoura no peito do goleiro e ricocheteia para Vavá desempatar.
Agora são 14 minutos; Mané de novo está pelo meio e recebe uma bola de Amarildo. De fora da área, emenda um chute de curva, que entra no ângulo de Springett.
Pronto: a Inglaterra está derrotada e começa o “baile” inglês, onde Garrincha vai tirando os ingleses para dançar: Norman, Wilson e especialmente Flowers, vítima de uma fofoca mentirosa soprada no ouvido de Garrincha na véspera, dando conta de que o pobre lateral haveria dito que iria pará-lo, sem dificuldades. Na verdade um truque para mexer com seus brios e fazê-lo arrebentar com a zaga inglesa. E foi o que acabou acontecendo.
O desafio seguinte seria contra os donos da casa, os chilenos, na semifinal. Pois ele não tomou conhecimento do adversário e “passou o trator” pela defesa inimiga.
Logo no começo, abriu a contagem, com um chute de canhota. O treinador chileno resolveu deixar três jogadores na cobertura, para marca-lo. Não adiantou.
Mais um gol de Mané (de cabeça!) encurta o caminho para a vitória. O Chile desconta, mas no início da etapa complementar, Garrincha se livra da marcação e centra para Vavá ampliar. O Chile diminui de novo e tenta envolver o Brasil, na base da correria.
Mas aí nossa Seleção era mais time e Vavá faz 4×2.
No final, após ser agredido com um tapa no rosto, Garrincha revida a agressão do lateral Rojas, com um chute nos fundilhos e acaba expulso pela primeira vez em sua carreira. Desorientado, demora-se para deixar o gramado e é alvejado por uma pedra na cabeça, arremessada pela torcida. Fica magoado com isso.
Mas Paulo Machado de Carvalho mexe seus pauzinhos e obtém uma espécie de “efeito suspensivo” para que ele jogue a final.
Mesmo febril, ele entra em campo e prende os marcadores adversários com suas jogadas de efeito, abrindo espaços para que os outros atacantes liquidem a fatura. Final de jogo e o Brasil é bicampeão mundial. Graças principalmente, a aquele verdadeiro “Chaplin” do futebol.
O ano de 1962 ficaria marcado para sempre, como a apoteose da carreira de Mané. Foi uma temporada pródiga de conquistas e que culminaria com aquela que é considerada
talvez, a maior atuação em sua carreira: a final do campeonato carioca, contra o Flamengo.
Logo no início da temporada, no dia 03 de janeiro, o Glorioso enfrentou o Santos, num jogo de “entrega de faixas”, com destinação de parte da renda para fins beneficentes.
Foi um “jogão”, reunindo a nata do futebol brasileiro da época. De um lado Pelé, Pepe, Coutinho, Zito, Mauro, Calvet, Lima. Do outro, Manga, Nilton Santos, Rildo, Didi, Quarentinha, Amarildo, Zagallo e ele. Deu 3×0 Fogão, com direito a novo “show” de Mané Garrincha.
Momentos antes dessa partida, aliás, ele recebeu um moderno Simca-Chambord, então o veículo nacional mais luxuoso na praça – ali mesmo, no gramado – fruto de um concurso promovido pela revendedora Simcar e o Jornal dos Sports, para eleger o jogador mais querido do Rio. Foi durante este concurso que angariou o apoio da grande intérprete Elza Soares, com a qual viveria uma história de amor por dezesseis anos.
Do início ao final daquele ano, tudo foi perfeito para Garrincha e para o Fogão.
E, se o ano se iniciara com uma goleada de 3×0 em cima do poderoso Santos, se encerraria ainda melhor, com placar igual, sobre o Flamengo, no dia 15 de dezembro, após belíssima campanha, na grande decisão do campeonato carioca.
Público de praticamente 159 mil pessoas no Maracanã, naquele sábado inesquecível!
Flávio Costa monta um esquema no qual Gérson é escalado como falso ponta-esquerda, com a principal tarefa de dar o primeiro combate a Mané.
O Flamengo começou tentando tomar a iniciativa, mas foi logo surpreendido pela grande superioridade técnica do adversário e pela atuação histórica de seu camisa 7.
Aos 10 minutos, após uma ação ofensiva fracassada do rubro-negro (o qual, aliás, jogava com a vantagem do empate debaixo do braço), Amarildo executa um longo passe para Mané, próxima da lateral, já em seu campo de ataque.
Ao invés de parar e encarar seus marcadores um a um, Garrincha prefere arrancar em altíssima velocidade, deixando Jordan para trás e passando ao lado de Vanderlei que chega atrasado, enquanto Fernando deixa a meta em desespero, mas é tarde: o “torto” já invadiu a área pela direita e bate rasteiro, à queima-roupa: 1×0. E no próprio impulso de sua incrível disparada, Garrincha acaba saindo pela linha de fundo e saltando por sobre os fotógrafos postados atrás da meta. Sua felicidade transborda. A vantagem do Mengo se desfizera em meros 10 minutos.
Depois disso o que se viu foi o talento ante o desespero. Por um lado, um time perdido em campo, tentando ombrear na base da raça, mas sem condições visíveis para isso. Do outro, uma equipe que tocava a bola consciente e que acionava sua estrela maior, toda a vez que queria fustigar o adversário.
Por alguns instantes – enquanto Amarildo se contunde, deixa o gramado e ao voltar, tenta trocar sem sucesso de posição com Garrincha – o Flamengo ainda tem descanso.
Todavia, passada essa breve interrupção, se restabelece a superioridade alvinegra e o segundo gol parece mera questão de tempo e capricho, apesar de Amarildo ainda não estar 100%, o que na teoria significaria o Fogão ficar momentaneamente com dez.
Na teoria, porque com Garrincha endiabrado, quem na prática estava em vantagem era o Glorioso.
Tanto isso era verdade, que aos 34 minutos, o Flamengo desperdiçou nova descida ao ataque e na recomposição, o Botafogo desceu com Ayrton, que serviu Edson. O meia não teve dúvidas: acionou Garrincha pela direita. A torcida se inflamou.
Mané arrancou e já ao lado da risca da grande área, aprontou um carnaval pra cima de Jordan e Gérson (ninguém segurava o homem!). Ao invés de chegar ao fundo, prefere atirar com violência para dentro da pequena área, surpreendendo o goleiro Fernando que se atira ao chão, mas não alcança a bola e também do zagueiro Vanderlei, que aparvalhado, quase tromba com o goleiro e acaba levando uma bolada na cara, pois a redonda havia tocado no solo e ganhado altura.
A bola explode no rosto do pobre zagueiro e vai para as redes, entrando no ângulo: 2×0 Botafogo. A torcida do Flamengo se cala. A do Botafogo começa a pedir “mais um”, antevendo uma goleada.
E a goleada se materializaria logo após o intervalo: passava dos dois minutos de jogo naquele segundo tempo, quando Zagallo desce pela esquerda e centra para Quarentinha que mesmo marcado, acerta um voleio magnífico. A bola explode no peito de Fernando, que não consegue segurar e no rebote, Garrincha liquida a fatura: 3×0 e a torcida não se contêm mais, aos gritos de “É, campeão!”.
Somente aí o Flamengo “acordou para o jogo”, abortando os inofensivos cruzamentos para a área e passando a jogar com objetividade. Com o Botafogo já desinteressado na partida e Garrincha aparentemente satisfeito, o rubro-negro criou algumas chances de perigo, parando na trave e em algumas defesas de Manga.
Mas não passou disso e o caneco levantado pelo Botafogo fez jus a uma campanha das mais formidáveis, encerrando com “fecho-de-ouro”, uma temporada perfeita.
Ao todo, a equipe de General Severiano realizou 66 partidas em 1962. Venceu 46, empatou 12 e perdeu apenas oito. Fez 147 gols e sofreu 65. O artilheiro do time foi Amarildo “Possesso” com 37 gols. Garrincha marcou 18, fora os tantos que proporcionou em assistências fabulosas, para os companheiros.
Aliás, muita gente se beneficiou com os passes e cruzamentos de Mané, ao longo de sua carreira. Quem precisava se firmar no time, quem sonhava com uma transferência durante alguma excursão do Glorioso pelo exterior, costumava recorrer a Garrincha nessas horas, pedindo sua ajuda com assistências “na manteiga” para que fizessem os gols necessários e assim, atraíssem os holofotes da imprensa e conseguissem seus intentos.
Pergunte quantos deles deram um único tostão para o “Anjo das Pernas Tortas” como gratidão pela ajuda concedida?
Mas Mané jamais cobrou nem ficava magoado. Aliás, mesmo em campo, quando era atingido com violência pelos adversários, não reclamava: levantava-se, arrumava o “meião” e prosseguia, sem piruetas espalhafatosas, nem gestos desnecessários. Parecia conformado até, com seu destino de apanhar.
O estilo de jogo de Mané atraía os marcadores e contribuía para esse tipo de situação. Aos poucos, no entanto, as seguidas contusões e principalmente o desgaste daquele corpo torto cobravam seu preço: desenvolveu uma artrose crônica nos joelhos desgastados pela dura vida de atleta profissional, impondo-lhe a necessidade de uma cirurgia que ele procurava evitar.
E tome Garrincha no “estaleiro”, tentando poupar o que ainda lhe restava de saúde nas pernas, precisando jogar apenas uma vez por semana, enquanto a necessidade do Botafogo era maior: duas ou até três vezes, no mesmo período.
As excursões, fonte importante de receita da agremiação para manter o melhor elenco possível, exigiam isso. Em algumas oportunidades, Mané submeteu-se a infiltrações no joelho, que tiravam a dor por um período, mas definitivamente não resolviam o problema, possibilitando apenas que ele jogasse.
As dores só faziam crescer. O joelho inchava, sofria derrames, até.
Foi um período difícil no relacionamento entre o clube e o atleta. O compadre Nilton Santos procurava sempre ajuda-lo e às vezes acabava até indo à Pau Grande, para convencê-lo a voltar, evitar alguma punição ou interceder por ele junto ao clube.
Com o tempo, Garrincha passou a exigir pagamentos maiores. Em certos casos, queria equiparar-se a prêmios que Pelé recebia no Santos.
Parecia justo, pois Mané, assim como o Rei, era a atração maior de seu time e dessa forma, o valor cobrado por apresentação numa turnê, crescia. E o Fogão (geralmente após uns dias de ausência de Mané nos treinos, emburrado e escondido em sua Pau Grande) acabava cedendo e pagando o que ele reivindicava com justiça.
Mas suas atuações em alto nível já não eram reeditadas, pelo problema físico. Após driblar a cirurgia por algum tempo, acabaria operando, depois do médico lhe garantir que, se ela não resolvesse o problema, ao menos não o agravaria.
E foi o que aconteceu: operado, o problema acabou não sendo solucionado e Mané entrou numa fase complicada de desentendimentos constantes com o clube, não participando de muitos jogos e treinos e já com 32 anos, acabaria indo para o Corinthians, que ofereceu um bom valor por ele, no início de 1966: 220 milhões de cruzeiros.
Mas no Parque São Jorge, Mané não conseguiria reeditar suas atuações dos tempos de Botafogo, clube pelo qual marcou nada menos do que 245 gols em 614 partidas.
Embora fosse o jogador mais famoso do elenco (que contava com o novato Rivellino em suas fileiras), Garrincha pouco pôde fazer pelo Timão.
Após uma estreia frustrante em 02/3/66, perdendo por 3×0 para o Vasco no Torneio Rio-SP, ele atuaria em mais alguns jogos naquele mesmo mês, fazendo gols diante do Cruzeiro e do São Paulo.
Mesmo atormentado pelo problema nos joelhos, acabaria sendo o único no elenco, convocado para a Copa de 1966. Após uma campanha decepcionante da Seleção, pela qual marcaria seu último gol (de falta, sobre a Bulgária) e depois sofreria sua única derrota pelo Brasil (3×1 para a Hungria), Garrincha retornou ao Timão e realizou suas últimas partidas pelo clube.
Numa delas, levou um pontapé no joelho, desferido por Zito, que chegou a ser acusado de encerrar a carreira de Mané. Não é verdade: a carreira de Garrincha já se arrastava e continuou se arrastando, mesmo após ele deixar o Corinthians, com passe livre no final daquela temporada, após apenas treze partidas disputadas.
Começaria então, uma peregrinação por clubes do Brasil e até do exterior. Retornou ao Brasil no finalzinho de 1968, para atuar pelo seu time de infância, o Flamengo.
Entretanto, sua passagem pela Gávea foi semelhante à do Corinthians e o Mengão decidiu usá-lo mais em partidas amistosas pelo interior do Brasil, numa excursão cujo objetivo maior era tornar o clube ainda mais popular pelo Norte e Nordeste.
Atuaria quinze vezes ao todo, marcando quatro gols. Deixou o rubro-negro depois de seis meses e rodou pelo Brasil, buscando talvez, reencontrar o futebol do passado, sempre em clubes mais modestos.
Terminou no Olaria, em 1972, realizando dez partidas. Seu único gol pela equipe (e o último de sua carreira profissional) foi marcado aqui em Ribeirão Preto, no confronto diante do Comercial (22/5/72), num empate de 2×2. Foi aos 20 minutos do segundo tempo, quando ele apanhou uma rebatida da defesa e fez o segundo do Olaria.
Atuaria os 90 minutos da partida e ao final, recebeu um troféu em agradecimento por sua presença naquele amistoso. Retribuiu agradecendo a todos, sempre com seu sorriso sincero no rosto. Nem precisava.
Em dezembro de 1973, realizou-se no Maracanã o “Jogo da Gratidão”, no qual um combinado brasileiro enfrentou outro, estrangeiro, num Maracanã com casa cheia, tudo para ajuda-lo financeiramente. Ele atuou por trinta minutos e fez o publico se transportar no tempo, ao driblar o zagueiro Bruñel como nos velhos tempos, apesar de já ser um quarentão aposentado.
Ao final, com o dinheiro arrecadado, pôde comprar uma casinha para cada uma das filhas, outra para ele, um carro usado e fazer sociedade numa churrascaria.
Depois disso, o “Alegria do Povo” rodou o Brasil, atuando em times de todos os rincões deste país. Times modestíssimos, sem tradição, mas que tinham interesse em tê-lo em suas fileiras, uma partida que fosse.
Simplório, Garrincha não costumava rejeitar convites e cumpria sua missão de levar alegria às comunidades mais distantes.
Por um bom tempo, atuou ao lado de craques do passado, na badalada equipe de veteranos do Milionários, o qual se apresentava por todo o Brasil, em jogos festivos. Djalma Santos talvez tenha sido seu maior companheiro em campo, nessas partidas.
Mas além de sua limitada condição atlética e o peso da idade, o alcoolismo aos poucos começavam a comprometer sua saúde, minando seu fígado e pâncreas.
Até que em 20 de janeiro de 1983 viria a falecer, vítima de cirrose hepática. Tinha apenas 49 anos de idade.
Ao todo, alegrou a torcida em 771 partidas, nas quais assinalou 301 gols (incluindo os jogos não oficiais) além de outras centenas, que proporcionou aos companheiros nas equipes pelas quais passou.
Garrincha serviu até mesmo de inspiração para o saudoso compositor e poeta Vinícius de Moraes, que em 1962 compôs um soneto denominado “O Anjo das Pernas Tortas”.
Por isso tudo e muito mais, este texto visa homenagear o mestre dos dribles, que jamais deixou que os pontapés dos adversários o fizessem abdicar de seu futebol moleque, alegre, mambembe, até.
Feito um palhaço de circo obrigado a fazer a plateia sorrir mesmo quando está triste, Mané aceitou muitas vezes apanhar em campo, apenas por mais um drible debochado, pela alegria incontida provocada na multidão que o assistia. Sem ele, o espetáculo perdeu sua própria razão de ser para muita gente, inclusive para mim.
E é por isso que eu sempre repito meu querido Mané Garrincha: maldosamente, muitos te consideravam um aleijado, um bêbado, um matuto. Outros ainda, um inconsequente, um atrevido, um tolo. Nada disso.
Para mim e para a esmagadora maioria da torcida brasileira e mundial, você foi, é e sempre será um gênio driblador; simplesmente o jogador mais espetacular que este apaixonante esporte chamado futebol já conseguiu produzir.