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OBRIGADO, CORINTHIANS!

por Marcelo Soares


Escanteio, todos se calam. Não foi a primeira vez que ficamos acuados durante o jogo. Em alguns lances de perigo tememos sofrer o gol. Mas ao chegar no fim da partida, sabendo que ali havia uma oportunidade de virarmos aquela situação a nosso favor, todos se uniram.

Alguns preferem não olhar, outros erguem seus braços em forma de prece. A bola sobe e…
Antes de tudo isso acontecer diante de mais de 40 mil torcedores, quero contar algo pra você.

No ano de 2003, fui ver o time de coração do meu pai. Não entendia muito bem o que acontecia mas sabia que após Liedson balançar a rede quatro vezes e ouvir a explosão da torcida, aquele time se tornaria o meu também.

Há 35 anos, o meu avô levava seus filhos pela primeira vez para ver o seu time do coração, com eles a história foi diferente. O time não venceu e a tristeza tomou conta de parte daquele momento.

Porém por trás de tudo isso se passa uma aventura que você não faz ideia. As dificuldades da época para se conseguir chegar até o estádio eram grandes. Tombos, arranhões, chuva e o cansaço eram na maioria das vezes presença confirmada.

Foram tantas as histórias vividas entre pais e filhos e o que mais encanta é ver que filhos se tornaram pais e pais se tornaram avôs. Dizem que só se aprende a ser filho quando se é pai é só se aprende a ser pai quando se torna avô.

E todos esses aprenderam uns com os outros a ser Corinthians.

Aprenderam a apoiar uns caras completamentes desconhecidos que chegam para defender seu time, passam confiança para eles e dão força total, até mesmo nos momentos de raiva não largam quem está vestindo a camisa do seu time.

Muleta se torna mastro de bandeira, andador vira apoio pra ter força pra empurrar o time e cadeira de rodas um simples assento na arquibancada.


Dentro da Arena Corinthians em Itaquera, tende aparecer muitas pessoas querendo estragar a festa, geralmente estão de verde e branco ou vermelho, branco e preto. A força da torcida faz com que isso se torne praticamente impossível.

Depois de tantos jogos e tantas histórias, viver esse clássico era importantíssimo.

Muitas mudanças acontecem em cada uma das três gerações presentes no estádio porém os percalços até chegar ao jogo naquele dia pareciam muito com os de 35 anos atrás.

Chegar em cima da hora e subir o barranco foram alguns dos problemas.

O mais velho, que já foi o de mais vigor, hoje precisa de ajuda. O mais novo se encanta com a ajuda dos filhos devolvendo o favor que o avô fez inúmeras vezes para eles.

A sensação ao chegar na arquibancada e ver aqueles caras que mal conhecemos mas que nos representam como ninguém é inexplicável.

Como se fosse o Paolo Guerrero no Japão, Romarinho na Argentina ou até mesmo Tupãzinho em 1990, Rodriguinho nesse momento de êxtase aproxima-se desses momentos, proporcionando algo maravilhoso.

Mais de 40 mil pessoas e milhares de histórias ímpares, mas sem dúvida a melhor história a ser relatada foi do encontro entre três gerações unidos por uma só causa.

Escanteio, todos se calam. Alguns preferem não olhar, outros erguem seus braços em força de prece. A bola sobe e…

Muito obrigado, Corinthians!

Joãozinho

O BAILARINO DA TOCA

entrevista: Matheus Rocha e Omar Franco | texto: Matheus Rocha | vídeo: Léo Souza

Em um mundo cada vez mais politicamente correto – para não dizer: “mais chato” – há certas malandragens de anos atrás que ainda seriam válidas. Não digo a malandragem que burla a regra ou que tenta desestabilizar emocionalmente o adversário. Me refiro à malandragem que leva em conta a atenção do adversário. Aquele lateral cobrado para o atacante esquecido pela defesa, aquela cobrança de falta ensaiada cheia de criatividade ou ainda aquela falta batida de forma mais rápida enquanto o adversário discute com outrem do jogo… Sempre alguém se lembra desse tipo de lance. Mas raros são os casos em que este tipo de lance decidiram campeonatos. Digo mais, decidiram campeonatos internacionais.


Nenhum outro exemplo é tão marcante quanto daquela noite de 1976, em Santiago no Chile, onde dois times estrangeiros decidiam a Copa Libertadores daquele ano. Um time argentino e um time brasileiro. Um time brasileiro com atacantes jovens e brilhantes, como Palhinha e Joãozinho contra um time argentino com uma zaga experiente formada por Passarela e Perfumo, este último considerado por muitos cruzeirenses um dos maiores zagueiros que já passaram pela Toca da Raposa (entre os anos de 1971 e 1974).

Mas poucos se lembram dos dois gols marcados por Nelinho e Eduardo, muito menos dos gols sofridos pelo Cruzeiro. O que todos se lembram é daquele gol antológico, irresponsável, que trouxe a única Taça Libertadores durante a década de 70 para o Brasil. Antes disso, somente o Santos, 13 anos antes, havia ganhado o bi campeonato do troféu mais importante das Américas.

Sabe aquele jogador que merece fazer o gol do título? Devemos voltar meses antes para entender. O maior jogo que o Mineirão já viu em toda sua existência desde 1965, ocorreu naquela Libertadores de 1976 em um confronto histórico entre os finalistas do último Campeonato Brasileiro disputado (1975) Cruzeiro e Internacional pela primeira fase (só classificava um time por grupo), no qual o Cruzeiro ganhou por 5 a 4. Nas palavras de meu pai: “Joãozinho destruiu, foi o melhor em campo. Eu vi ele deixando dois no chão com um só drible!”.

Se pudéssemos dizer que havia alguém que merecesse fazer o gol do título, por que não o melhor jogador do melhor jogo daquela Copa Libertadores? Aos 43′ do segundo tempo, enquanto Nelinho se virava para soltar aquela bomba e o juiz saía de próximo a barreira, Joãozinho colocou – como se fosse com a mão – lá no ângulo. Ouvindo a narração original no rádio do saudoso Vilibaldo Alves gritando seu famoso “Adivinhe!”, seguido da evocação sobre a alma de Roberto Batata – companheiro de ataque de Joãozinho, vítima fatal de acidente de carro pouco mais de um mês antes daquele jogo – realmente é uma narração de arrepiar, de fazer os olhos suarem…


Ali o bailarino azul entrou de vez para a história, com a sua malandragem, avaliando a atenção do goleiro reserva Landaburu (assumiu o posto de titular, após o titular Fillol machucar em dividida com Palhinha no primeiro jogo da final). Joãozinho aprendeu aquilo na base da observação, já que o time do River Plate o ensinou ao empatar com um gol minutos antes com uma cobrança de falta rápida de Alonso e chute cruzado de Urquiza. Ele havia ficado incomodado com aquele empate, daquela forma.

O drible, o zagueiro no chão, agilidade nas pernas e a rapidez no raciocínio. A cobrança daquela falta decisiva resume a história e a cultura do futebol brasileiro. Sim, irresponsável! Mas inesquecível! O resto é história…

 

FELIZ ANIVERSÁRIO, CORINTHIANS

por Mateus Ribeiro


O Corinthians é o maior amor da minha vida, e eu não escondo isso de ninguém.

O alvinegro do Parque São Jorge já me fez chorar, sorrir, xingar.

O Timão é o principal responsável por quase todas as vezes que meu coração ameaçou parar de funcionar. Mesmo assim, o Corinthians continua sendo meu maior, e talvez, único amor.

Eu não consigo expressar através de palavras como o Sport Club Corinthians Paulista é grande na minha vida.

Um dos motivos que virei torcedor do clube foi por ver Tupãzinho, Fabinho e Ronaldo. Esses três foram meus primeiros ídolos. Eu não conhecia nada de futebol, mas gostava daquele visual despojado, gostava daquela combinação de cores. Esses fatores foram mais que suficientes para eu me tornar um adepto do time do povo.

Depois que aprendi a diferenciar um escanteio de um lateral, vieram Marcelinho, Viola, Rincón, Gamarra, Edílson, Luizão, Dida, Sylvinho, Henrique, Célio Silva e tantos outros. Alguns eram craques. Outros, bons jogadores. E tinha a turma que era caneluda, mas que dava o sangue pelo time. Essa última classe é a que mais me identifico até hoje.


Durante muito tempo, sofri muito com a soberania dos rivais paulistas. Após alguns anos, comecei a ficar mal acostumado. Vieram inúmeros títulos estaduais e nacionais.

Faltava a América e o Mundo. Faltava. Em 2012, essas barreiras foram quebradas. E eu ali coloquei na cabça que eu já tinha visto de tudo, e que não conseguiria mais assistir jogos do meu Timão com a mesma emoção. Ledo engano.

Continuo sofrendo, chorando, gritando, respirando e sangrando Corinthians.

E assim quero continuar até o dia da minha morte

O Corinthians é a maior parte de mim. E, no dia do seu aniversário de 108 anos, gostaria de agradecer todos os meus ídolos do passado e do presente.

Gylmar, Cássio, Basílio, Sócrates, Geraldão, Wladimir, Espaaaaaaaaaaaaaaaaaaaalma Ronaldo, Neeeeeto, Marcelinho, Rincón, Vampeta, Ezequiel, Giba, Casagrande, Oswaldo Brandão, Viola, Edílson Capetinha, Chicão, Biro Biro, Rivellino Zé Maria, Danilo, Wilson Mano, Marcelo Djian, Ado, Baltazar, Cláudio, Dinei, Idário, Ruço, Tobias, Zé Elias, Vicente Matheus e tantos ídolos do passado e do presente, meu muito obrigado para todas as pessoas que ajudaram a construir essa historia maravilhosa, repleta de glórias, lutas e vitorias.

Corinthians Grande! Parabéns pelos 108 anos de historia!

NEM SEMPRE COM VELOCIDADE SE CHEGA PRIMEIRO

por Iran Damasceno


Será que já paramos pra pensar que o desenvolvimento estrutural da sociedade, após a “invenção” da roda, não se deu de uma hora pra outra? O que dizer também daquele futebol jogado pelos militares chineses, há 3000 anos a.C., quando se chutavam as cabeças dos inimigos? Pois é, mas aí se trata do primitivismo do que chegaria a ser o esporte mais popular do mundo, que é o futebol.

A essência desse esporte que tanto apaixona ao seu público vem, também, da sua viabilidade porque ele pode ser jogado no quintal da casa, na rua, na escola ou em qualquer espaço onde algumas pessoas possam disputá-lo, assim, diante da sua abrangência cultural e social, ao longo dos séculos, chegamos aqui e podemos observar que hoje em dia é um dos negócios mais rentáveis do planeta, bem como impulsionador de investimentos vários da política, principalmente. Talvez aí possa estar à derrocada, para muitos, desta invenção revolucionária. 


Hoje ele é visto e aceito muito mais pelo seu lado comercial, político, administrativo… do que pela sua arte. Sim, aquela que nos encantava quando nos tempos áureos da paixão de um povo pela sua abrangência e romantismo, ao ponto de aqui no Rio de Janeiro, no “extinto” Maracanã, quando nós íamos aos jogos, diante dos saudosos clássicos entre Vasco, Flamengo, Botafogo, Fluminense, America, Bangu… com mais de cento e cinqüenta mil pessoas e, o que é melhor e fantasticamente falando, vendo em campo jogadores como Zico, Roberto Dinamite, Paulo Cesar Caju, Rivelino, Gerson, Mendonça, Luizinho, Marinho, Arthurzinho…

Era uma festa só. Mas, sem aquele saudosismo peculiar de uma geração que teve, entre erros e acertos, naturalmente, mais acertos do que erros, pelo simples fato de termos construído um romantismo até mesmo nos pés de grandes craques que jogavam um “futebol dos deuses”, comparado pelos “filósofos” da época a um “balé”, devido os malabarismos naturais de pernas e pés habilidosos, que correriam conduzindo uma bola pesada, principalmente quando molhada, em gramados não muito retilíneos e esburacados, entretanto possuíam a habilidade natural das ruas e dos campinhos de várzea, que existiam em abundância, sendo assim, temos muitas certezas com o que vimos e aplaudimos.


Pois é, sem querer desmerecer ao futebol “moderno”, que atingiu o auge da força e da velocidade, não podemos nós, os antigos e testemunhas oculares dos craques de outrora, deixarmos de reparar que toda essa evolução física e tecnológica, passando pela medicina desportiva, pela fisiologia, pela fisioterapia e as demais áreas correspondentes, de lembrarmos que deixaram pela estrada os legados positivos de outras gerações e, indo mais longe ainda, carregaram ou utilizaram o futebol para fins políticos e comerciais, somente, portanto devemos entender, os mais atentos e românticos, que essa velocidade absurda em todos os aspectos citados, talvez tenha nos levado, pelo menos, à reflexão sobre a importância do entendimento de que correr nem sempre nos faz chegar primeiro.

Não sou o Ibrahim Sued, mas deixo o meu “ademã”.

FUTEBOL NO CÉU

por Émerson Gáspari


Confesso que nem sei como aquilo foi me acontecer.

Recordo-me vagamente de algumas coisas: o hospital, o suor escorrendo pelo rosto do doutor, as dores atrozes, a face de minha esposa em prantos dizendo-me algo que não pude ouvir. Tentei me despedir dela, mesmo sem entender direito o que ocorria.

Não sei se consegui balbuciar um “Amo você!” antes de cerrar os olhos. Juro que tentei, com todas as minhas forças. Espero ter conseguido.

Minha esposa e o futebol foram as coisas que mais amei na vida.  

Mas agora tudo ficou muito escuro, frio e ainda mais incerto, neste túnel estreito, longo e angustiante pelo qual atravesso, mesmo sem saber onde vai dar.

É nesse momento que me recordo de minha mãe, recentemente falecida, mas que passou por experiência semelhante, quando foi considerada clinicamente morta em 1968, justamente em razão de meu parto, que apresentara complicações. 

De súbito, o corredor chega ao seu final e à minha frente surge uma claridade intensa, radiante, que ofusca os olhos, impedindo que se veja do outro lado.

Por um instante eu hesito. Até que a coragem sobrevém, tomo impulso e adentro o desconhecido. Imediatamente o cenário se modifica por completo.

Pareço pisar em algodão, pois o chão agora é todo branco e azul, irregular e muito, muito macio. Não vejo nada construído.

A paisagem é de uma beleza incomparável e o “teto”, todo azul, se encontra com o piso, branco-azulado, a uma distância incalculável, naquilo que, creio eu, costumam chamar de firmamento.  Ao longe, árvores frutíferas abrigam pequenos grupos de crianças, todas vestidas de azul e branco, que cantam cantigas de roda, conversam e se alimentam de suas frutas.

Interpelo-me sobre o que aconteceu: será que morri?


Consigo lembrar claramente que estava com inúmeros problemas de saúde, desempregado e em situação difícil, esquecido pelos amigos, afastado dos familiares e que as únicas coisas que vinham fazendo minha vida valer à pena ultimamente, eram o amor incondicional de minha esposa e os textos baratos que eu semanalmente escrevia para o Museu da Pelada, com direito a resenhas formidáveis, depois.

Todavia, tudo isso agora soava deveras distante e irreal para mim.

Decidi me sentar e diante daquele vazio contemplativo, preferi fechar os olhos, atendo-me somente às lembranças do que vivi.

Pela minha mente, toda minha vida passou como num filme interminável. Os primeiros anos – a infância e adolescência – tão felizes, ainda na minha querida terra natal. Meus pais, os amigos, os professores do colégio Divino Salvador, os jogos do meu time, o Paulista de Jundiaí, acompanhados pela rádio Difusora ou no estádio Jayme Cintra.

Depois, os tão sofridos anos na fase adulta; já em Ribeirão Preto: a dura acolhida, a faculdade não completada, a fome, as oportunidades profissionais negadas, a triste desilusão com as pessoas, a morte dos meus avós e pais, o câncer de minha esposa.

Meio século de vida recordado em pormenores.

As alegrias, tristezas, conquistas, frustrações, amizades, conflitos, doenças, amores…

E me emocionei muito, muito, muito!

Em meu coração, a saudade infinita do amor de minha vida; a primeira vez que a vi, o primeiro beijo, o casamento, nosso convívio tão prazeroso, apaixonado, que chamava a atenção de todos pelo modo singular como nos amávamos.

Além do sentimento de missão inacabada, por não conseguir sequer sobreviver como escritor esportivo e ainda por cima, justamente quando o Museu da Pelada entra na minha vida, perco as resenhas, as amizades, o direito de escrever transmitindo todo o meu saudosismo por um tempo no qual o futebol viveu seu auge.

Permaneci ali, sentado e introspectivo, por um período que não consigo mensurar. 

Ao final, só me restou o sentimento de gratidão pelas experiências que pude ter e por isso mentalmente agradeci ao Criador, desculpando-me pelas vezes em que blasfemei ou não fui um bom filho. Então, abri os olhos e a paisagem permanecia a mesma. As árvores, as crianças ao longe. Foi como se aquele tempo incomensurável que passei recordando toda minha vida, na verdade representasse alguns poucos segundos, no céu. Muito intrigante… especialmente quando olho para baixo e tomo um susto!

Sem que eu houvesse me apercebido antes, vejo que minhas mãos estão menores.

Não apenas elas; mas também meus braços, pernas…todo meu corpo parece pequeno. Infantil, eu diria. Apalpo meu rosto e sinto sua maciez, a ausência de barba. Talvez eu esteja com meus dez anos de novo… mas como e porque?


De repente, as crianças param de brincar e uma delas vem ter comigo. É um garotinho mais ou menos da minha idade (aliás, todas parecem ter uns dez anos, também). 

Ele se aproxima e com um sorriso sincero, me convida:

– Venha com a gente! Já está na hora!

Sem fazer a mínima ideia do lugar para onde vão, obedeço. Até porque, não quero ficar sozinho. Ele percebe as dúvidas pairando em minha cabeça e começa a me explicar, no caminho:

– Percebi que você ainda está confuso. Não tenhas medo! Aqui, somos todos felizes; não há fome, guerra, doenças.

– Mas porque somos crianças? – pergunto, angustiado.

– A idade é mera ilusão! O ancião, o velho, o adulto, o jovem e a criança nada mais são que o mesmo ser, em épocas diferentes. Habitam o mesmo corpo, que apenas se modifica, entende? Aqui, somos crianças, pois é justamente nessa idade que possuímos o coração mais puro, livre de inveja, raiva, preconceito, ganância, avareza, competitividade, vaidade, ódio. Só temos espaço no peito, para o amor.

Confesso que estremeci com as palavras do meu amiguinho. Lembrei-me de que, em vários textos que escrevi em vida, aconselhei as pessoas a fazerem o mesmo que eu fazia: deixarem uma foto da infância sempre à mão para se perguntarem todos os dias: “Onde foi que me perdi de mim e como faço para reaver o coração que eu tinha?”.

Escrevia isso no fundo, por observar que a vida mundana prostituía nossos mais tenros sentimentos, transformando-nos em seres humanos piores, com o tempo. Isso lá podia ser chamado de “evoluir”?

– Você não precisa ficar triste, aqui! Todos nós temos uma vida celestial feliz e plena. E não sentimos tédio, pois costumamos vir para cá, todos os dias! – diz meu agora entusiasmado colega, apontando para frente.

Então olho e mal posso acreditar no que meus olhos testemunham: no meio daquele chão de nuvens, há uma imensa depressão, oval, com uma espécie de degraus em toda a volta, sendo que, bem no centro daquela cratera, existe uma superfície lisa. Boquiaberto, pergunto:

– É um teatro de arena?

– Não! É nosso campinho de futebol! – ele responde, já descendo alguns degraus.

Só daí, reparo nas traves (coloridas, como o arco-íris) e nas demarcações do campo (em branco) contrastando com o “gramado” (inteirinho em azul claro).

Juntamo-nos então, às centenas de garotos, todos atentos ao “campo”, onde um joguinho parece prestes a começar.


Surgem dois times mirins, um de azul e outro de branco. Todos descalços; aliás, como nós. Ninguém parece usar sapatos, no céu. E o jogo começa! Noto que não há xingos.

Não dão pontapés, nem ao menos cometem faltas. Jogam realmente muito bem! Melhor inclusive, do que eu costumava ver ultimamente na TV, quando era vivo.

Percebo na equipe branca, um garotinho quase ruivo, que parece se multiplicar, correndo, incansável, por todos os lugares do campo. E o reconheço:

– Cruyff?!

– Não sei! Mas esse aí não para em lugar algum; só falta querer jogar de goleiro! – esclarece-me o companheiro ao lado.

Então observo os demais garotos do time branco. O goleiro é o único que usa roupinha preta e só pode ser o Yashin, porque realmente é excelente debaixo dos três paus.

Há um loirinho bem alto, que atua ali atrás e sabe sair jogando como ninguém. Questiono meu parceirinho de arquibancada:

– É o Beckenbauer, não é?

– Não sei! Não conheço nenhum deles, pelo nome. Você o conhecia?


Noto que meu amigo não é exatamente um entendido de futebol e por isso, me ponho a lhe explicar um pouquinho de cada um. Interessado, ele me pergunta se conheço os demais, também. Olho mais um pouco e vejo um bem gorduchinho, cabelo penteado para trás, que chuta forte, com a perninha esquerda, gorda e curta.

– Só pode ser o Puskas… seu apelido era “canhãozinho pum”, lá na Terra.

Meu coleguinha solta uma gostosa gargalhada e pede:

– E quem são os outros?

– Olha; aquele branquelinho ali, que corre pela direita, muito rápido, driblando sem parar, com certeza é o Stanley Matthews. Já o garotinho negro, atarracadinho, na área, creio que seja o Eusébio. Ah… tem ainda aquele outro loirinho, que joga atrás, ao lado do Beckenbauer… é Bobby Moore, com toda certeza! Agora estou entendendo: é uma seleção mundial, formada por jogadores que já se foram… apesar de que tem gente aí no meio, que ainda não havia morrido, quando vim para cá… como é possível isso?

Ele me explica:

– Na verdade, todos que aí estão já se despediram da Terra. Acontece que nossos dias são contados como os dias de Deus, não como no calendário terrestre, entende? Você, por exemplo, está aqui, faz apenas um ou dois dias. Mas na Terra, isso deve equivaler a dez, vinte anos. Compreendes agora?

– Puxa – respondi surpreso – por isso, quando estava recordando minha vida, tive a sensação de que aquilo durara muito menos tempo do que na Terra, então!

– Sim, isso mesmo! Aqui, algumas coisas são diferentes: além do tempo, não existem vários idiomas, porque o céu pertence a todos, ninguém é dono de um território, um país. Note como os meninos dessa “seleção mundial” mesmo, que você falou, conversam tranquilamente, uns com os outros, em campo.

– Tem razão, amigo!

– E o outro time? Conheces alguém, também? – prosseguiu ele, curioso.

Fixo os olhos naquele gramado celestial (que loucura!) e começo a prestar atenção no time azul, agora. Aliás, um azul bem escuro, parecido com o manto de Nossa Senhora. Meu Deus! É a cor do uniforme reserva da Seleção Brasileira. Foi com ele que conquistamos nossa primeira Copa do Mundo. Será?

De repente, irrompe lá de trás, a figura de um garoto negro, alto, driblando os outros meninos na maior segurança… é Domingos da Guia, o “Divino Mestre”. Ele então se livra de todos e quando sai da área, entrega para um companheiro, que recebe o passe na maior categoria e começa a descer pela esquerda, atravessando o meio de campo.


– É Nilton Santos, o “Enciclopédia”!

– Ri, ri, ri… diverte-se de novo, meu amiguinho celestial.

– E aquele ali, negro e elegante, que recebeu a bola de cabeça erguida e fez um passe cheio de curvinhas é o Didi “Folha-Seca”.

– Ri, ri, ri… cada apelido gozado!

Nisso, noto que a bola vai parar no cantinho, para onde corre um garoto caboclinho, de perninhas tortas. Ele dribla para a direita e seus marcadores vão caindo sentados, um após o outro. Formam até uma pequena fila, antes de serem driblados.

– E esse doidinho, quem é? Ele é o que melhor dribla aqui; ainda bem que o chão de nuvens é fofo, senão a garotada ia se machucar, de tanto tombo que leva, com ele.

Pus a mão no ombro dele e respondi:

– Esse foi o maior driblador que o mundo já teve, querido. Chamava-se Garrincha e tinha os apelidos de “Anjo das Pernas Tortas” e de “Alegria do Povo”.


– Aqui ele é o que traz mais alegrias, mesmo… veja só como todo mundo se diverte, com os dribles dele.

Lancei um olhar mais apurado pela plateia e percebi que muitas meninas assistiam, também. O público mirim era variado: havia crianças loiras, morenas, negras, ruivas, amarelas, vermelhas, albinas…  parecia até uma amostragem de todos os povos, ali reunidos, igualzinho eu costumava ver, quando era “vivo”, nas Copas do Mundo.

Porém, ninguém estava lá para se exibir, nem portava aqueles insuportáveis celulares. Em campo, também não havia juiz, muito menos VAR, porque ali – segundo meu amigo – ninguém julgava ninguém. “Que Maravilha!” – pensei comigo.

Volto minha atenção para a equipe azul: percebo facilmente que o goleiro é Gylmar e que o garotinho que corre pela lateral direita, com pinta de capitão, só pode ser Carlos Alberto Torres.

De repente, um dos “brasileirinhos” carrega a bola pelo meio e se livra da marcação de um rival fortinho, de pernas grossas, que logo identifico como sendo Obdúlio Varela. Trata-se de um moreno miudinho, de estilo de jogo clássico. Acredito ser Zizinho. Quando ele levanta a pelota para a área de trivela, tenho convicção disso.

A redonda chega até um garoto negro, espremido entre Bobby Moore e Beckenbauer. Súbito, ele se joga para trás e golpeia a bola com o peito do pé direito.

– Gente, esse é o Leônidas! Tá dando uma bicicleta!

Meu parceiro me conta que dois novatos, que chegaram ainda hoje ao céu, vão entrar em campo, agorinha mesmo: um deles, bem baixinho, cabeludo, começa antes e na primeira bola, desembesta a correr e a driblar, dando trabalho para a zaga.

– Parece que se chama Dieguito: é tudo o que sei! – revela meu acompanhante.

– Só pode ser o Maradona!


Então, a jogada prossegue. A bola vem pelo alto na área e ele, não a alcançando com a cabeça, soca-a para dentro da meta. Mas faltou malícia, pois todo mundo vê e o gol acaba não valendo. Tive ali a certeza de que era o próprio e ri, balançando a cabeça.

– O que foi? – pergunta meu amigo.

– Nada! – desconverso e indago sobre o outro que iria entrar.

– É aquele da equipe azul, ali: dizem que se chama Dico.

Olho para o garotinho negro, magrinho e não acredito no que vejo:

– Pelé! Não pode ser… meu Deus!

– Ei, desse aí me lembro, lá na Terra. Também, quem não o conhecia? Era o melhor de todos; o “Rei”! – conclui meu amiguinho, agora entusiasmado.

Então “Dico” (apelido de Pelé na infância) apanha uma bola na intermediária e vai vencendo seus marcadores. Atravessa o meio-campo e aplica chapéus, rente às cabecinhas dos adversários que se interpõe. Invade a área e marca um “gol de placa”.

Foi um jogo simplesmente “divino” – na acepção da palavra – como vocês podem imaginar.  Ao final daquela inusitada pelada, todos nós da plateia nos levantamos e aplaudimos demoradamente.

Ninguém foi molestá-los, querendo tirar “selfie” para postar em alguma rede social, nem pedir a camisola azul de algum craque (sim, porque aqui no céu, todas as crianças usam uma espécie de camisola). Nada a ver com aqueles anjinhos barrocos, com asas e peladinhos, como nos acostumamos a apreciar, pintados em telas, aí na Terra.


Foi daí que, lembrando no nosso mundo, me fiz triste novamente, por relembrar de minha esposa, exatamente quando deixávamos o “estádio”, sabendo que amanhã haveria nova “pelada no céu”, com aqueles craques todos.

– Porque estás triste, se o Paraíso é lugar apenas para alegrias? – questiona meu amiguinho celestial.

– Porque não sei o que é felicidade longe do futebol e de minha companheira! Sem um ou outro, não tenho alegria plena.

Nisso, noto que uma criança se aproxima ao longe, trazendo outra pelas mãos, a qual chora muito. Porém, mesmo em prantos, ela traz consigo um andar suave, que a mim, soa familiar.

Quando se aproximam mais, quase desfaleço de tanta emoção: o jeitinho tímido, a pele morena, o cabelinho de índia, as canelinhas compridas, os dedinhos tortos dos pés, as mãozinhas delicadas, o rosto tão bonitinho, os olhinhos puxados.

– Juciara! É você, minha querida?

E ela, com as lágrimas escorrendo pelo rosto a lhe encharcar o largo sorriso, responde com voz baixinha e meiga, apenas, a frase que mais pronunciávamos nos últimos tempos, um para o outro, na Terra:

– Juntos, juntos, sempre juntos!

Abraçamo-nos com tamanha emoção, que até mesmo os que estavam à nossa volta, se emocionaram também. Por impulso, beijei muitas vezes a sua face e encerrei com um “selinho”. Foi daí que me arrependi, pensando que era pecado e que seria punido.

Mas meu amigo me tranquilizou, rindo e dizendo:

– Não se preocupe! Aqui somos todos, crianças: nossos gestos de carinho são sem maldade, sem malícia. Vivemos o amor mais puro, que vem do fundo dos nossos corações e se sofremos muito lá em baixo, aqui recebemos a dádiva da felicidade eterna. Agora sim, sois felizes para todo o sempre.

Lembrei-me das palavras de Jesus: “Vinde a mim as criancinhas, pois delas será o reino de Deus”. Era exatamente isso que estávamos vivendo, naquele lugar tão bom.

Despedimo-nos com a promessa de nos reencontrarmos no dia seguinte, no mesmo “estadiozinho celestial”. Meu amiguinho me pediu apenas, para que fosse mais cedo, pois queria conversar comigo, antes da partida.

Passei o restante daquele dia, muito feliz ao lado de minha amada. Colhi algumas flores (sim, elas florescem nas nuvens, aqui no céu) e com elas, lhe fiz uma coroa, para adornar sua cabeça.

Ela então me mostrou algo que trouxera consigo, do mundo: um indiozinho fantoche, chamado “Juço”, o qual, talvez por termos tratado como “filho” lá na Terra, havia – sei lá como – podido entrar também, a exemplo dos cães e gatos que algumas crianças carregavam, no céu. Muito interessante!

Outra passagem me veio à cabeça: a de Lázaro, quando questionado pelos outros – então espantados com sua ressurreição – sobre como era a tal vida em outro plano. Ele teria lhes respondido: “É engraçado… não notei muita diferença”.

Pois era mais ou menos assim que eu agora via as coisas, ali: uma espécie de mundo infantil, puro, sem maldade e no qual nossa missão, bem cumprida, resultara na felicidade eterna, sentindo Deus presente, o tempo todo.

Recostei-me ao pé de uma árvore e Juciara acomodou a cabeça em meu peito, sob a noite mais estrelada que já havíamos contemplado. Adormecemos.

Enfim, chegou o dia seguinte e me dirigi com minha Juci, até o “estadiozinho” mais cedo, conforme combinado. Ao descermos os degraus das arquibancadas, notei, entretanto, que os “torcedores” estavam no campo, ainda sem jogadores, pois a partida iria começar só mais tarde, um pouco.

Foi quando meu coleguinha, apontando para nós, levantou-se, dizendo para os demais, que permaneceram sentados:

– Eles chegaram! Aproximem-se amigos, estávamos vos aguardando, mesmo.

Quando terminamos de descer e cheguei ao seu lado, ele me apresentou a todas as outras crianças e disse:

– Este aqui conhece todos os jogadores que atuam em nossa liga celestial, como lhes falei. Por serem “deuses do futebol”, jamais perguntamos nada aos jogadores, por puro respeito. Gostaríamos que você nos contasse sobre cada um deles. Como jogavam lá na Terra, em que times atuaram, quais títulos ganharam, enfim; suas histórias, dentro e fora dos gramados… podeis fazer isso por nós, irmão?

E eu, vendo aquelas carinhas tão simpáticas, ávidas pelas incríveis histórias que só o futebol proporciona e já me sentindo literalmente “nos céus” com aquela situação, respondi a eles, com alegria infinita:

– Queridos! Vou lhes contar todas as histórias que sei e até que elas se esgotem, creio que deverão ter chegado aqui também, dois amiguinhos meus, que saberão lhes contar outras, ainda mais legais do que as minhas.

Foi quando meu amiguinho me perguntou, já ansioso:

– E quem são eles? Assim já nos avisam, quando chegarem às portas dos céus!

Respondi, com um sorriso de satisfação:

– Serginho Pugliese e PC Cajuzinho… esses sim, são “ferinhas” ! Vocês não perdem por esperar! Com eles aqui, poderemos ter algo que vocês vão adorar: o “Museu da Pelada dos céus”…